quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Miguel Torga profetiza o admirável mundo novo actual, pela demissão das consciências, exactamente há 46 anos, em Albufeira.

                                               

Miguel Torga, na sua tão valiosa obra DIÁRIO, no vol. XII, publicado em 1975, escreveu uma entrada para o dia 18 de Agosto de 1975 (há 46 anos precisamente) com algo de profético na sua crítica e advertência quanto à manipulação das consciências, bastante demitidas, confundidas ou assustadas, por poderes e interesses mais ou menos perversos que controlam as máquinas dos Estados. Oiçamo-lo com um coração vivo e grato pela sua vida e demanda...

«Albufeira, 18 de Agosto de 1975 – Observo esta fauna drogada, hirsuta e piolhosa, que é hoje o pão nosso obrigatório em todos os meios cosmopolitas. Rapazes e raparigas, deitados à entrada do túnel que dá acesso à praia, ali estão de um lado e do outro, aos magotes, a  fazer e a vender bugigangas, a ensaiar a veia numa flauta, a coçar a guedelha, e a pedir esmola. A arremedar os chineses das gravatas e os cegos das romarias. Estranha juventude, que começa por impugnar a noção de singularidade individual – todos com as mesmas barbas, as mesmas cabeleiras, as mesmas gangas e os mesmos blusões, não se distinguem uns dos outros -, e acaba por estender a mão contestatária à caridade burguesa. Infinitamente mais capaz de se estender entre si do que a do meu tempo – no descampado dos valores é fácil a unanimidade -, feliz na sua preguiça e no seu desregramento, solar, de tropismos, sem dramas de nenhuma natureza, sentimental e sexualmente liberta, apenas motivada pelas mais estritas necessidades, longe de mim o propósito de a julgar. Mas inquieta-me pensar que o seu modo de vida, repartido entre a indiferença e o prazer, possa ser a prefiguração tosca de uma futura sociedade, certamente mais higiénica, embora igualmente abúlica e hedonista. Uma sociedade já não abandonada a si própria, como estes bandos de marginais, mas confiada à tutela providencial de um Estado oligárquico e esclarecido. É que os admiráveis mundos novos de amanhã, mais do que na perversão dos poderes, vão-se preparando na demissão das consciências.»

Há certamente alguma generalização excessiva da visão redutora da juventude contestatária de então, e por isso mesmo Torga se desculpa de parecer estar a criticá-la nessa descrição algo caricatural, mas de facto ele sente os perigos que se avizinham se não houver consciências que assumam a resistência às opressões dum sistema que se apresenta como uma nova ordem mundial, um admirável mundo novo, que assenta numa obediência abúlica das pessoas,  controladas e manipuladas para a sua sobrevivência minimamente hedonista e maximamente digitalizada, artificializada e medianizada, e garantida providencialmente por Estados oligárquicos, isto é, dependentes de grandes corporações, interesses, instituições e blocos, que não têm qualquer sensibilidade e visão de fraternidade e auto-sustentação mundial, antes se encontram em conflituosas opressões de vários povos menos alinhados com tal ordem financeira e ideológica e que internamente nada valorizam os direitos humanos e a dignidade e autonomia esclarecida da pessoa.

Sabemos como Miguel Torga nos últimos anos da sua vida (desencarna em 1995) foi bastante crítico dos desvios que se estavam a operar pelos governos e partidos em relação aos ideais democráticos, fraternos e libertadores que se abriram com o derrube da ditadura do Estado Novo. 

 O que diria ele nos nossos dias? Cremos que não se afastaria dessa linha, e certamente realçaria a necessidade de fortes valores afectivos, cognitivos e éticos e a competência responsável e independente marcarem as actuações sociais e públicas, numa ampla base de diálogo livre pela Verdade e o Bem Comum. Saibamos cumprir a nossa quota parte de discernimento e civismo, como ele tanto exemplificou...

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