Miguel Torga, na sua tão valiosa obra DIÁRIO, no vol. XII, publicado em 1975, escreveu uma entrada para o dia 18 de Agosto de 1975 (há 46 anos precisamente) com algo de profético na sua crítica e advertência quanto à manipulação das consciências, bastante demitidas, confundidas ou assustadas, por poderes e interesses mais ou menos perversos que controlam as máquinas dos Estados. Oiçamo-lo com um coração vivo e grato pela sua vida e demanda...
«Albufeira, 18 de Agosto de 1975 – Observo esta fauna drogada, hirsuta e piolhosa, que é hoje o pão nosso obrigatório em todos os meios cosmopolitas. Rapazes e raparigas, deitados à entrada do túnel que dá acesso à praia, ali estão de um lado e do outro, aos magotes, a fazer e a vender bugigangas, a ensaiar a veia numa flauta, a coçar a guedelha, e a pedir esmola. A arremedar os chineses das gravatas e os cegos das romarias. Estranha juventude, que começa por impugnar a noção de singularidade individual – todos com as mesmas barbas, as mesmas cabeleiras, as mesmas gangas e os mesmos blusões, não se distinguem uns dos outros -, e acaba por estender a mão contestatária à caridade burguesa. Infinitamente mais capaz de se estender entre si do que a do meu tempo – no descampado dos valores é fácil a unanimidade -, feliz na sua preguiça e no seu desregramento, solar, de tropismos, sem dramas de nenhuma natureza, sentimental e sexualmente liberta, apenas motivada pelas mais estritas necessidades, longe de mim o propósito de a julgar. Mas inquieta-me pensar que o seu modo de vida, repartido entre a indiferença e o prazer, possa ser a prefiguração tosca de uma futura sociedade, certamente mais higiénica, embora igualmente abúlica e hedonista. Uma sociedade já não abandonada a si própria, como estes bandos de marginais, mas confiada à tutela providencial de um Estado oligárquico e esclarecido. É que os admiráveis mundos novos de amanhã, mais do que na perversão dos poderes, vão-se preparando na demissão das consciências.»
Há certamente alguma generalização excessiva da visão redutora da juventude contestatária de então, e por isso mesmo Torga se desculpa de parecer estar a criticá-la nessa descrição algo caricatural, mas de facto ele sente os perigos que se avizinham se não houver consciências que assumam a resistência às opressões dum sistema que se apresenta como uma nova ordem mundial, um admirável mundo novo, que assenta numa obediência abúlica das pessoas, controladas e manipuladas para a sua sobrevivência minimamente hedonista e maximamente digitalizada, artificializada e medianizada, e garantida providencialmente por Estados oligárquicos, isto é, dependentes de grandes corporações, interesses, instituições e blocos, que não têm qualquer sensibilidade e visão de fraternidade e auto-sustentação mundial, antes se encontram em conflituosas opressões de vários povos menos alinhados com tal ordem financeira e ideológica e que internamente nada valorizam os direitos humanos e a dignidade e autonomia esclarecida da pessoa.
Sabemos como Miguel Torga nos últimos anos da sua vida (desencarna em 1995) foi bastante crítico dos desvios que se estavam a operar pelos governos e partidos em relação aos ideais democráticos, fraternos e libertadores que se abriram com o derrube da ditadura do Estado Novo.
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