sexta-feira, 21 de maio de 2021

Glossário sânscrito de termos espirituais e de Yoga Vedanta: 2º, Ananta, Infinito...

Pintura de Bô Yin Râ

     Ananta, infinito, ilimitado, eterno, ininterrupto, perene. Eis uma das aproximações descritivas de Brahman, a Divindade ou o Espírito Absoluto, Primordial. Tanto pode ser enquanto infinito no espaço e no tempo que dele brotaram, como em Si mesmo, como no que se possa predicar Dele, pois tudo transcende, mormente a frágil mente humana tão condicionada pelo cérebro e o corpo físico. Em tal sentido podemos constatar a existência de uma teologia apofática e negativa atingida ou confessada tanto no Vedantā indiano como em místicos cristãos, tais Eckart, Nicolau de Cusa, pela qual Deus ou o Absoluto está para além da relação predicativa, e "não é isto, nem aquilo", pelo que o melhor é nada se predicar e menos ainda se tentar definir Dele.  

Este "não é isto, nem aquilo", é na Índia o “Neti, neti”,  e é quase um mantra, ou frase de poder espiritual, desde que surgiu pela primeira vez expresso no Avadhuta Gita, 1.25, atribuído a Datatreya: «tattvamasy ādivākyena svātmā hi pratipāditaḥ / neti neti śrutirbrūyād anṛtaṁ pāñca bhautikam», ou seja, «Tu és Isto", assim falaram do  Eu próprio (espiritual) os livros sagrados. Não isto, não isto, diz a tradição escrita do que provém dos cinco elementos.»
Ao longo dos séculos muitos meditaram nesta
complementaridade da afirmação positiva Tat Twam Asi, Tu és Isto-Ele (o Espírito), e  a negativa Neti, neti, "não és isto, não és isto", o que de material te constitui ou te rodeia. E, em termos práticos, caminhar na vida ou na rua repetindo, sentindo e assimilando este mantra é até uma boa forma de dissipação de identificações e atracções mundanas e logo de intensificação da auto-consciência.

No século XX  Ramana Maharish (1879-1950, em cima na fotografia, à esquerda)  foi um mestre que realizou bem tal realidade última e infinita e que recomendava o vichara, auto-conhecimento interrogativo constante, "Quem sou eu, quem sou eu", baseado no discernimento do atmam (espírito] e do neti neti, aos seus discípulos, em Arunachala, onde o seu centro ou ashram ainda mantém tal tradição viva e onde estive em peregrinação e sadhana (práticas espirituais) duas vezes, a primeira com carta de recomendação do Kavi Yoga Shudhananda Bharati, já então com 80 e tal anos, mas que vivera alguns anos em jovem com Ramana Maharishi.

A meditação no espaço infinito, ou ainda na fonte oceânica primordial de onde todas as possibilidades de manifestação consciencial e energética emanaram ou brotaram, denominado já no nível dos elementos subtis o Ākāśa luminoso, e que podemos contemplar olhando o céu, é ainda outro método recomendada pelos mestres dos Upaniṣadas e do Vedānta, tanto mais que a sua transparência e luminosidade quase ilimitada tem a a similitude de infinidade com o próprio Absoluto ou Brahman.  

 "O que nós contemplamos, nos tornamos", é um ditado popular por muitos mestres dedilhado...

Na valiosa Taittiriya Upanishad. 2. 1, foi dito, realçando-se o coração como sendo  a porta: «Aquele que conhece Brahman como verdade, conhecimento e infinito (satyam jñānam anantam) no lugar secreto (guha) do coração e no espaço celestial mais longínquo ou elevado, obtém qualquer desejo em comunhão com Brahman, a Inteligência em si mesma».

Este versículo Taittiriya Upanishad é muito valioso pois assinala a união entre o microcosmos e o macrocosmos e diz-nos que pela experiência interior contemplativa descobrimos, vemos, sentimos e realizamos tanto o mais íntimo como o mais longínquo e de um modo unificador. Quem pratica a meditação, a aspiração amorosa e  a contemplação recebe tais graças de quando em quando. Já os grandes ou verdadeiros mestres, estabilizados no Espírito interior e Divino, desfrutam-na quando querem e em níveis bem mais profundos e amplos que os das pessoas penas no caminho..

É  bem provável que alguns cientistas, físicos, astrónomos ou amantes do cosmos e dos mundo distantes, graças às belíssimas imagens e até filmes de galáxias, constelações e estrelas maravilhosas possam desse convívio e contemplação do macrocosmos ter algumas experiências e intuições do infinito consciencial em  que vivemos e em que temos o nosso ser essencial, que não é isto nem aquilo, nem corpo, personalidade ou ego... 

                                            

No Astavakra Gita, texto clássico da filosofia não dual Vedanta, que traduzi e comentei em 2007, encontramos alguns versículos que utilizam esta palavra e conceito, e que são poderosos: II.23: «Em mim, Oceano Infinito (maya anantam aham bhodau, ou no oceano sem limites que eu sou). quando se ergue o sopro da Inteligência Cósmica (cittavate) logo se produzem as várias ondas de mundos».  24.: «Em mim, Oceano consciencial infinito, ao cessar o sopro da Mente Cósmica, para infelicidade do negociante que é o Eu incarnado (jiva), o barco do universo afundar-se-á.» 25.: «Em mim, Oceano Infinito, maravilha das maravilhas, as ondas dos eus individuais erguem-se, chocam, jogam e desaparecem de acordo com as suas naturezas específicas.»

Nestes versículos realça-se a  natureza pura e infinita   do Ser primordial e que quem se mantém mais como observador do que identificado ao corpo e ao ego, consegue mais sentir e realizar esta dimensão consciencial divina que está subjacente à multiplicidade tão ilusória do universo. E que, embora ela seja o suporte ou o acume de cada indivíduo, se torna bastante mais difícil de ser realizada ou vivenciada no mundo moderno, com tanta agitação de informação e desinformação, com tanta obrigação e opressão, pelo que bem de temos de invovar e aprofundar a Paz, o  Om  Shanti, Shanti, Shanti....  

No cap. XVII, do Astavakra Gita refere-se  como pessoa mais capaz de vivenciar Brahman, a consciência infinita e beatífica, aquela que de mente vasta (citta udara) não se deixa prender nas atracções e aversões, tão desenvolvidas nos dias de hoje.  Já no cap. XVIII, por exemplo, valoriza-se a capacidade de silêncio, de afastamento da agitação exterior, afirmando-se mesmo: «Para o ser silencioso (muni) que vê com o olho espiritual o Espírito imperecível (Atman aksaya) e livre de tristeza, onde está (ou o que importa) o conhecimento, o universo, eu sou o corpo ou o corpo é meu?»

A este ver com o olho espiritual no versículo 78 faz-se corresponder o ser de visão firme, aquele que não se deixa perturbar nem amedrontar pelas forças contrárias ou opostas.

Concluamos esta breve, breve entrada do Glossário de termos espirituais em sânscrito com a lembrança que Infinito diz-nos também que não tem nem princípio nem fim, nem alfa nem ómega, que o Ser divino sempre foi, é e será, e é esta a dimensão mais desafiante para o ser humano enquanto espírito....

Possamos nós, senti-lo, sê-lo e vivê-lo mais, em sabedoria, coragem, verdade e amor, diariamente, com persistência e em especial ao levantar e ao acordar, em uníssono ou comunhão invocadora dos mestres e dos nomes-faces da Divindade: Aham Brahmasmi anantam anandam Eu sou um com a Divindade, infinita, beatífica; ou ainda meditando com amor e gratidão o famoso Sat Chit Ananda (este já no nosso glossário), ou como vem na Taittiriya Upanishad, 2.11   Satyam Jnaanam Anantam Brahma, a Divindade, ou seja, o Espírito é Ser verdadeiro, Consciência inteligente e Harmonia beatífica..

Ornamento por Bô Yin Râ: Jivatman...

segunda-feira, 17 de maio de 2021

César do Inso, " Céu, Espírito e Luz". Antevisões sobre a vida depois da morte, por um elo quase perdido da Tradição Espiritual e Irenista Portuguesa.

César do Inso foi um escritor do final do séc. XIX, começo do XX, que, embora tendo publicado em jornais e em livros (e ignoramos o impacto) está hoje muito olvidado mas que deve ser reconhecido como um elo valioso da Tradição espiritual Portuguesa. Se pesquisarmos na web referências a ele só encontramos um documento na Torre do Tombo, o da carta de outorga  a Augusto César Correia do Inso da posição de Primeiro Oficial da Contadoria da Junta do Crédito Público, 1887, passada pelo rei Dom Luís. Regista-se ainda que a sua vida terrena decorreu entre 1841 e 1919. A base de dados dos livros existentes nas bibliotecas públicas portuguesa, a PORBASE, menciona dos seus livros: Agronomia elementar ao alcance de todos os lavradores. 1890. Ceo, Espírito e Luz: digressão do pensamento em busca da verdade. 1900. O duello e a guerra. Conferencia. 1900.  Os perigos de guerra, 1902. Os amigos da guerra. 1904. Guerra á guerra. Conferencia. 1904. 

Nesta última obra vemos na página final menção a outros trabalhos, publicados nos jornais Revolução de Setembro (1840-1901) e Diário da Manhã, além de uma conferência em 1902 na Liga da Paz Portuguesa, da qual era 1º secretário e que foi importante alfobre de republicanismo, pacifismo e feminismo. Fundada por Alice Pestana em 18 de Maio 1899 e extinguindo-se no começo da 1ª grande guerra, teve grande sucesso, participando nela as personalidades mais avançadas da época, tais Adelaide Cabede, Albertina Paraíso, Beatriz Pinheiro, Branca Gonta Colaço, ou ainda Sebastião de Magalhães Lima, César Porto, Bernardino Machado e Teófilo Braga.

Já após deste artigo ter a sua primeira redacção, consultando a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira na livraria Antiquária do Calhariz, no coração da Lisboa alfarrabista (cada vez menor, lamentavelmente), fundada por Arnaldo Oliveira, como leiloeira também,  e continuada por José Manuel Rodrigues e agora pela filha Catarina (redigindo com periodicidade catálogos), ficamos a saber que Augusto César Correia do Inso nascera em Alter do Chão em 22-XI-1841 e, completado o liceu, estudara Teologia no Seminário, formando-se como engenheiro Agrónomo, em Santarém,   servindo trinta anos como funcionário público e aposentando-se em 1901.  Além de escritor  e "distinto conferencista", colaborara no Diário de Notícias e no Correio da Manhã, tendo rumando para o Céu como espírito de luz em 18-IV-1919.

Constatamos assim ser um amante e conhecedor da natureza, da agricultura terrena e celestial, bem como do pacifismo, e provavelmente podemos encontrar em  publicações do irenismo ou pacifismo e de espiritualismo, na época ligadas à Liga da Paz Portuguesa, a Tolstoi, ao Anarquismo, ao Naturismo, ao Esperanto, ao Espiritismo e as ciências psíquicas nascentes,  colaborações suas, ou  menção dos seus livros e conferências...
Deixando p
ara outra ocasião o seu irenismo (da palavra grega irene, paz), ou pacifismo, entremos antes na sua obra maior, Ceo, Espírito e Luz: digressão do pensamento em busca da verdade, publicada em Lisboa na Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, então sita num dos principais corações livreiros de Lisboa, o Largo do Camões, nº 5 e 6.
Num
in-4º de 253-5 pp., narra uma imaginária viajem aos mundos subtis e espirituais, explicando duplamente a sua génese:  publicara  um resumo da parte inicial em nove folhetins do jornal Correio da Manhã, e escrevera tal digressão imaginária em casa, durante um mês, quando recuperava de uma partida de brincalhões perigosos que o fizera  cair num buraco de obras, disfarçado, verberando a crueldade humana patente ainda nessa Lisboa de 1900. Conseguindo erguer-se sozinho da cova ("pude, louvado Deus!"), «quando cheguei a casa levava a cerola e a meia alagadas em sangue. Vendo-me entrar, lívido como um cadáver, toda a minha família me interrogou ansiosamente. - Não se assustem, respondi-lhes com calculada serenidade: tirem-me lá esta calça.».  Ficamos assim a saber que era casado e tinha filhos. E que foi tratado durante os trinta e oito dias que esteve em casa pelo Dr. Leão de Oliveira, «cujos primores de humanidade não são menos relevantes do que a sua elevada competência médica.»
Ora a viagem imaginada que descreve com um espírito guia aos
mundos do além contém bastante sabedoria, seja política, científica, filosófica e religiosa e embora nos diga "que foi durante o tempo em que estive de cama, que escrevi a maior parte deste trabalho, sem outro auxiliar senão o da minha reminiscência", cremos que a sua reminiscência não é a da vida ante-natal mas a de leituras várias, na época de ocultismo e espiritismo, mencionando apenas Camille Flammarion e, quanto a propósito de ser crédulo ou incrédulo, aponta o escritor Joaquim Oliveira Martins, nomeadamente as últimas páginas do seu livro A Inglaterra de Hoje (Cartas de um viajante), de 1893.
Ao l
ermos tais cartas observamos Oliveira Martins a apreciar o sucesso obtido pelo recém fundado Exército da Salvação, assente numa religiosidade básica (a que Oliveira. Martins chama incorrectamente mística) democrática ou para todos,  bem necessária já que nas igrejas normais protestantes só entrava gente dita respeitável ou mais abastada, o Exército da Salvação destinando-se a combater a pobreza, como queria o seu fundador em 1865 William e Catherine Booth. E depois de criticar em seguida o sucesso do espiritismo, que considerava fruto da tendência animista e supersticiosa, e pouco filosófica e metafísica, dos ingleses entra numa abordagem semelhante à Teosofia e lamenta não ter conseguido entrevistar Annie Besant, então um dos grandes vultos do teosofismo. Embora céptico,  através de um interlocutor, Oliveira Martins admite nas últimas páginas que se sabe pouco dos mistérios da vida. Talvez isso tenha impulsionado César do Inso a responder-lhe...

Quanto ao que César do Inso intuiu por ele próprio, o que terá meditado e deduzido ou então visto clarividentemente não será fácil deslindarmos, mas como é obra invulgar, impressa um só vez na tipografia da r. D. Pedro V, 84 a 88, vamos transcrever e comentar brevemente excertos onde se aventura a especular ou imaginar os aspectos da vida nos mundos subtis e espirituais,  utilizando  um diálogo com um espírito já mais evoluído, no qual propõe as suas hipóteses e, graças à resposta do espírito já em tais planos, apresenta propostas-respostas, no fundo como frutos duma hipotética clarividência.

Como todos desejaríamos saber mais sobre a vida depois da morte, sobretudo para fazermos já nesta vida terrena o que a tornará melhor, ou para sabermos o que podemos fazer pelos que já partiram, para as suas almas estarem  mais luminosas ou mais unidas  ao Bem, ao Amor, à Verdade, à Divindade, pesquisemos nas antevisões oferecidas  as que terão mais possibilidade de se aproximarem da realidade no além.
«Na Terra os sentidos são apenas 5 ou 6 quanto muito; os do Espírito, nesta divina morada são talvez dez, elevados a um tal grau de intensidade, que nem saberias medir-lhe o alcance.»
Que quatro outros admite, onde os foi buscar? Sabemos que há a clarividência, a clauriaudiência, o sentir interior psico-energético, o sentido da unidade com o que nos rodeia.Será a eles que se refere?
Muito pacifista ou irenista, César do Inso escreve a dado momento: «Oh! a guerra, o supremo prazer dos grandes heróis terráqueos, é o maior flagelo com que Deus castiga os povos que se desviam do caminho da justiça.»

Parece mais correcto pensar-se que são os terrenos que se castigam a si próprios e que a Divindade está acima de tal, ainda que interiormente nas almas dos seres se possa manifestar quando eles estão em situações que o justificam. Mas não há um Deus castigador. Quanto muito à uma Providência Divina, assente em leis e harmonias e que se exerce naturalmente, na Índia, denominada Dharma como dever ordem e Karma, enquanto causa-efeito, o que gera a roda da vida, na cultura simbólica ocidental tipificada no arcano X, a Roda da Fortuna... 

                                                           
No 2º cap. p. 30 escreve o que viu: «Como eram a própria alma e não tinham corpo ou matéria que dirigir, os Espíritos obedeciam instantaneamente à vontade que esta ou aquela ordem de motivos formulava no seu seio. Creio que tinham o dom da rapidez eléctrica, pois desapareceram como por encanto».
Eis-nos num facto, num senti
do de movimentação instantânea e também numa ideia verdadeira, a de que a decisão mental se cria por motivos ou motivações interiores e que ela obriga os espíritos, ou é acompanhada pelos espíritos já que foram estes que a geraram. Acerca dos polos da matéria e da luz, escreve na pág. 50: «A Matéria é o quid com que tudo se fabrica, se organiza, se cria na terra. A pedra, a água, o ferro, a carne, a terra, o sangue, a árvore, os ossos, olhos, os nervos... tudo é matéria. Da matéria vem tudo: com ela tudo se fabrica, para ela tudo volta.
No império dos Gloriosos Espíritos que acabamos de admirar, a matéria é substituída pela Luz. Tudo é Luz. Da Luz vem tudo: com ela tudo se fabrica, para ela tudo volta.
Por isso são de Luz os Espíritos, era de Luz o grandioso templo, cujas maravilhas, as portas que – eram uma das maiores – acabavam de esconder dos nossos olhos, encerrando-se!
Mas por ser tudo de Luz, não vades imaginar que era tudo idêntico, ou pelo menos igual.» E eis-nos com um valioso ensinamento para procurarmos perseverar mais na meditação até a Luz se manifestar, e para estarmos mais conscientes dela em nós e na nossa aura-irradiação no dia a dia e no aqui e agora...


A obra está cheia de páginas muito luminosas e de bons questionamentos, e assim na pág. 55 podemos ler e imaginar: «E as ordens de seres espirituais que vivem nos Planetas e nas Estrelas inumeráveis que povoam, aí! É absolutamente impossível conjecturá-las sequer a nossa inteligência!
Ó Astros radiantes! Em qual de vós, continuam, e se completam os entes que nos foram caros; os que amámos de todo o nosso coração, os que mais admirámos pela sua virtude ou saber? (...)
Em que consiste a vossa civilização, ó habitantes dos mundos desconhecidos? Será a civilização compatível com a vossa natureza? Sois vós seres civilizáveis, ou progressivos?
Sentis também no íntimo da vossa alma, uma como força misteriosa, impelida e alumiada por esse luzeiro imarcessível que se chama o Ideal e que vem do Infinito?»

O reconhecimento da importância do coração-amor surge poderosa:  «Amor! Amor! Tu és a mais pura emanação de Deus; porque és o elo que prende e liga entre si, no universal conjunto, as peças que constituem o mecanismo do Infinito que nós exprimimos numa palavra só: - Universo.»

E depois de ter recebido uma visão de uma pomba-fénix: símbolos da inocência e imortalidade, altamente iluminadora, propõe um bom exercício de alargamento de visão: «Suponde que uma fada transformava uma pomba em um brilhante com igual figura e tamanho e o colocava sobre uma coluna, no meio de um salão alumiado por milhares de luzes. Pedi à vossa fantasia, que vos deixe supor um aparelho, onde fossem recebidas simultaneamente todas as cintilações que se observassem de cada ponto do salão: pedi-lhe do mesmo modo que vos deixe imaginar uns olhos que pudessem apreciar nitidamente aquela impressão. Pois quem dissesse que um tal deslumbramento era a imagem da pomba celeste, faria uma limitadíssima ideia da realidade que tinha diante dos meus olhos».
Quanto à nossa aspiração de maiores experiências ou revelações, "aqui e agora, já", o seu guia acalma-o: «Não é para os ouvidos terrenos que o Divino Maestro compôs as sublimes melodias que constituem a música ideal, a música que cantam os Anjos nas esferas de Luz, onde vivem os espíritos que o Amor vai conduzindo pela eternidade fora, até à sua presença e quem sabe se até à absorção na Sua própria essência».  E no "quem sabe se", interroga-se bem, para além de dar uma certa orientação clarificadora aos que desejam ou se esforçam  por ouvir interiormente vozes ou música...

Uma pintura dos mundos espirituais por Bô Yin Râ
São repetidas as menções dos Anjos e demais entidades, ou ainda ao beijo da morte iniciática que eles podem dar,  tal como:«Os anjos são invisíveis aos nossos olhos. Sentem-se, ouvem-se dentro da nossa própria alma; mas não se vêem; não se podem ver senão em circunstâncias que me não é permitido conjecturar [provavelmente faltou-lhe tal experiência...]. Já os vimos em forma de pontos luminosos, é verdade; mas em forma de pontos luminosos, é verdade; mas que são pontos luminosos para a forma dos anjos, as criaturas mais sublimes do Universo? Ainda assim foi a influência maravilhosa da Pomba-Phoenix, o seu esplendor supersensível que permitiu aquela visão, quase imperceptível. Mas as almas não são também anjos?
- Chegam a sê-lo, e algumas terás tu talvez admirado, que tenham já essa categoria. Depende o fenómeno de circunstâncias em que não posso agora entrar». Boas interrogações, que anos depois Fernando Pessoa equacionou e em apontamento escrito deixou...
Quanto aos grandes ideais que moviam as melhores almas do séc. XIX, tal como entre nós a Geração de 70 e particularmente Antero de Quental, o espírito guia de César Inso explicará num texto muito valioso: «A liberdade, a igualdade e a fraternidade constituem o viver comum dos Espíritos. Não que seja uma liberdade, uma igualdade e uma fraternidade, como as que debalde procurais na Terra; que essas nem no Céu são possíveis.
Aqui somos todos iguais, mas é perante o Amor que mutuamente nos votamos: e este Amor é como o ideal da mais pura e santa fraternidade.
Somos todos iguais perante a Verdade que se oferece à nossa contemplação, perante o Bem que fraternalmente se distribui à nossa vontade; perante os gozos e venturas da alma, que temos a liberdade plena de procurar em todos os pontos do Céu que melhor se adaptem ao desenvolvimento que cada um trouxe da Terra; perante o afecto enfim do Supremo Ordenador do Universo, que a todos faculta igualmente os tesouros da sua generosidade inesgotável.»

Para concluirmos a nossa pequena ressurreição dum ser bem luminoso, o César do Inso, oiçamo-lo sobre o valor do debate:    «-Não, meu amigo, respondeu a Visão, Espírito ou Anjo, a discussão não é inimiga da Verdade nem da Justiça; nem tão pouco incompatível com a natureza dos Espíritos, mas tão somente com determinado grau de desenvolvimento.
No Céu, co
mo na Terra, a discussão é um dos melhores instrumentos que a inteligência pode empregar para conquistar a Verdade. Não me refiro, é claro, a toda a amplidão do Céu mas simplesmente a determinadas regiões. A discussão é desnecessária, ou para melhor dizer, impossível, na região onde o Espírito toca o último grau (?) do seu desenvolvimento. Aí, a Verdade sacia toda a ânsia de saber, porque só aí brilha em toda a sua plenitude; é a região contemplativa, onde a alma criada parece confundir-se com a Força Criadora.
Sim! O último termo da viagem do espírito pelos espaços é
a absorção no seio de Deus, que em relação à Verdade é como mar do vosso planeta, em relação à água. Do mar sai toda a água que forma as nuvens e que banha a terra: ao mar volta outra vez, pelo seu pendor natural, como o filho que procura a mãe.
Assim da Divindade. Dela parte toda a Verdade que o Espírito anda procurando; a ela volta (como filho que procura a mãe) absorvendo-o no seu seio infinito».
Realcemos a hum
ildade com que César do Inso especula, ou mesmo coloca um ponto de interrogação, e saibamos nós aspirar mais ao Oceano (samudra) Divino de Amor e Verdade, por exemplo na Índia com Sri Ramakrishna tão vivenciado como Sat Chit Ananda, Ser- Verdade, Consciência e Felicidade, algo que tanto necessitamos nestes tempos de tanta manipulação, violência e opressão... 

Realcemos, para concluir, alguns aspectos ou psico-morfismos da Tradição Espiritual Portuguesa expostos por César do Inso (muita Luz e Amor para ele): aspiração à Divindade pelo amor devocional, a adoração e a contemplação; hesitação quanto à sobrevivência individual do espírito na eternidade ou fusão no seio da Divindade no término evolutivo; comunhão afectiva com os antepassados, grandes seres, mestres e anjos, no que outrora se designava como corpo místico da Humanidade ou da Igreja e hoje se pode  equiparar ao Campo de consciência, energia, informação que nos interliga, mais ou menos emaranhada e limpidamente. Que haja muita Luz e Amor nas nossas almas e ambientes e na Humanidade em geral!

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Natália Correia e Antero de Quental: argumento do filme "Santo Antero", de Dórdio Guimarães. Lido e comentado por Pedro Teixeira da Mota

Em 1979 Dórdio Guimarães realizou o filme Santo Antero com argumento de Natália Correia, através das Produções Cinematográficas Manuel Guimarães. A música original foi de Fernando Guerra e os dois intérpretes de Antero de Quental em criança e adulto foram Luís Filipe Rieff e António Rieff, cabendo a Maria Helena Cantos "as mulheres que Antero amou". No folheto de oito páginas de apresentação do filme, editado pelo Governo Regional dos Açores e que me foi oferecido pelo Luís Ferro, Dórdio Guimarães apresenta muito bem a sua visão da relação do cinema e da poesia, e o desafio enfrentado:

 «Creio que o cinema é um acto eminentemente poético. Creio mesmo até que o cinema é a expressão estática mais identificada com a Poesia e por via do seu conteúdo expoentalmente plástico. Nele as imagens ganham um corpo substantivo, o subjectivo objectiva-se, o sonho materializa-se mas tudo através de um trajecto mágico, alquímico, de um real superlativo, de um encantamento exactamente visionado. A palavra poética encontra no real impressionado um registo auditivo, complementar, tridimensionado, a sólida harmonia que nos faz ver todos os ritmos e movimentos sortílegos dos vocábulos. Toda a Poesia é cinematizável porque o cinema é como que uma nova dimensão encontrada da essência que a anima; o Espírito ao alcance dos nossos dedos, melhor dos nossos olhos e sentidos. (...) Antero de Quental não é mais uma figura como outras tantas da fértil história da poesia e literatura portuguesa. Nele se reúne um singular e específico sentimento de portugalidade açoriana ou de insularidade lusíada, de dicotomia mística e racionalista, de religiosidade tradicionalista, de activismo sociológico, de misogenia e altruísmo. Antero, em síntese, preenche boa parcela do senso português, ou seja, de todos nós. (...)», sem dúvida uma boa síntese da alma de Antero...
Destaquemos em Dórdio Guimarães a sua visão bastante espiritual da vida, da poesia e do cinema, reconhecendo no Espírito a essência que anima a poesia, e que o cinema objectiva tridimensionalmente, encantadoramente mesmo. Quanto à síntese caracterológica de Antero de Quental talvez ficasse mais certo  "religiosidade tradicionalista e transcendentalista", já que Antero expandiu-a pela metafisica e o orientalismo, em especial o panpsiquismo e o budismo. Valorize-se ainda a sua exclamação desabafo ou oração final, a fazer-nos lembrar o que correu  pelos humanistas e os estudiosos posteriores em relação a Erasmo: «Que Santo Antero nos valha».

 Quanto a Natália Correia, a argumentista do Santo Antero, filme que ainda não vi, e com quem só falei uma vez (curiosamente sobre Antero), presenteia-nos com uma bela e valiosa «súmula deste meu argumento sobre a vida e obra de Antero» e que foi lida e registada no vídeo que encontra no fim, tendo comentado brevemente a 1ª parte. Eis a súmula da Natália:

                     

«O poeta incinera o seu existente precário no fogo do seu essente, emanação do Eterno. Como, por outras palavras, dirá Unamuno, por Antero passam as primeiras sombras que hão-de adensar-se no "desespero humano" de Kierkegaard. Mas, Antero diverge do filósofo dinamarquês acreditando em alguma coisa pela qual vale a pena existir. E vislumbra-a nas próprias possibilidades do ser cujo drama termina na libertação final pelo bem. Trata-se, como ele diz, dum «espiritualismo realista, enxertado para florir e frutificar no tronco robusto do materialismo». Daí a sua busca incansável das vias que puderam conduzir à bondade social de um socialismo espiritualizado. Mas a materialidade da experiência agride a sua sensibilidade aristocrática. Não o esconde. E crucifica-se na decepção. É outro passo para a santidade em que culmina o seu anseio de dormir no seio profundo do Não-Ser. Afunda-se na noite mística e põe termo à vida para nela se perder, para nela se fundir na substância divina.»

A esta 1ª parte mais filosófica e essencial seguir-se-á uma 2ª acerca da insularidade do poeta, que não transcrevemos mas reproduzimos e lemos. Comentemos então agora brevemente a bela e profunda visão de Antero dada por Natália, outra alma revolucionária e poética açoriana: 

Talvez o que tenha mais decepcionado Antero de Quental tenha sido a pouca fraternidade existente nos meios que conheceu, dado o egoísmo, o partidarismo e a ignorância reinantes, estilhaçando o seu ideal juvenil "da bondade social de um socialismo espiritualizado" que na época de facto vários acreditaram e por ele se esforçaram. Mas também o enfraqueceram contribuindo para a sua decepção as desilusões amorosas e familiares sofridas. Forte porém é a imagem por Natália gerada de que Antero é que se crucificou por tal decepção ou decepções, pois poderia ter reagido de outros modos. E nesse sentido, por exemplo, o seu amigo e prolífero publicista Silva Pinto considerava que à grande bondade de Antero faltou o riso, ou seja, certo desprendimento em relação ao que se passava...

É bem difícil discernirmos quando surge, quanto dura e o que subsistirá no fim e além da vida em relação ao seu anseio de dormir no seio profundo do Não-Ser. Os seus sonetos encaminham-se, e autobiograficamente mostram-nos portanto encaminhando-se para algo disso, ainda que cristianizados por vezes, tal até no coração querer descansar por fim "Na mão de Deus". E talvez possamos considerar ainda as insónias de que sofria, uma condicionante psico-somática importante desta imagem e anseio de repouso e adormecimento. 

Quanto à valiosa frase «Afunda-se na noite mística e põe termo à vida para nela se perder, para nela se fundir na substância divina» tem também de ser bem cogitada para se compreender relativamente a Antero de Quental. Teremos então de observar no conceito caracterizante, clássico até nos tratados místicos, de "noite mística" a indicação da insuficiência que ele "sofreu" longamente de sinais de luz ou de amor do espírito e do mundo espiritual , para não falarmos sequer de Jesus ou de Deus, como sentiram mais alguns místicos, e que Antero só em jovem estudante sentiu e exprimiu em  vários poemas.

 Portanto a visão da Natália Correia de que ao perder-se nessa falta de luz, ao entrar nesse Não-Ser, Antero de Quental acreditava que estaria a fundir-se na substância divina, não me parece que tal fosse muito evidente para Antero. Pensamos mais, até por alguns dos seus sonetos tal como os Nossos Mortos, que Antero acreditava numa sobrevivência individual da alma espiritual e que pelo seu aspirar e lutar pelo bem ao longo da vida, e o desistir desta quando o corpo físico já pouco lhe servia de suporte de trabalho, mereceria uma não  condenação pelos valores ou normas da Ordem Cósmica do Universo, ou se quisermos Deus, que ele tanto interrogara ou demandara tanto, tendo até referido o suicídio como uma solução pouco moral ou digna, mas a que ele não conseguiu escapar....

Cremos que Antero de Quental estava demasiado desiludido da vida, nomeadamente da política e social, após fracasso da Liga Patriótica do Norte, que ele encabeçara contra o imperialismo britânico e que falhara. E demasiado isolado afectivamente, pois tinha só alguns amigos e sobretudo as duas crianças adoptadas, Beatriz e Emília, e que subitamente lhe foram retiradas. Quando dá os dois tiros na sombra de noite em Setembro de 1891, provavelmente fá-lo sem saber bem para onde vai. Porém quais as percentagens da crença em que se quantificariam as suas conjecturas hipotéticas de destino de sobrevivência no além não é fácil discernir-se...

Melhor será aceitarmos que partiu como cavaleiro do Amor ferido, cansado, mas não plenamente derrotado, pois levara sempre «o lema do Bem no seu estandarte» e provavelmente admitindo  uma vida depois da morte e na comunhão do corpo místico da humanidade, em que neste momento passados mais de cem anos da sua morte nós o celebramos, meditamos, ou mesmo oramos e apoiamos-valemos em reciprocidade ao que Dórdio Guimarães exprimira: "Santo Antero nos valha!"

A segunda parte do texto de Natália, que reproduzimos no todo na imagem acima, não transcrevemos mas está lida no vídeo de nove minutos que não foram suficientes para comentarmos senão brevemente a parte inicial. Mas nove minutos nos nossos dias, e anterianos, já é muito para a maioria das pessoa, que preferem empregar o seu tempo de vida na bola, no preço certo e nos noticiários amedrontadores e comentaristas alienadores. Será então para pouca gente, a gens anteriana e dos fiéis do Amor na demanda do Graal do espírito e da ligação divina... Valete Fraters et Sorores!

           

domingo, 9 de maio de 2021

Das exigências do diálogo e do ensino filosófico, por Sant' Anna Dionisío. "Diálogo no Jardim" da Estrela, sob a estátua de Antero de Quental

Sant'Anna Dionísio (1902-1991) foi um ensaísta, jornalista, polemista e professor liceal, licenciado em Filologia Germânica (1924, dissertação sobre Nietzche) e em Filosofia (1926, dissertação sobre Bergson), pela famosa Faculdade de Letras do Porto, fundada e orientada (1919-1928) por Leonardo Coimbra. Destacou-se enquanto discípulo dos antigos filósofos gregos (tendo traduzido algumas obras), de Antero de Quental e do seu professor Leonardo Coimbra, manifestando uma busca constante de conhecimento e de comunicação, tendo por isso, além das aulas,  dado à luz vários livros e colaborado em jornais, em especial o 1º de Janeiro e o Diabo, e revistas, tais como a Águia (onde foi nos últimos números ainda co-director com Agostinho da Silva), Prisma, Seara Nova, Tempo Presente, Mundo Literário, Revista 57, Nova Renascença

Tendo sido professor liceal em Guimarães, Funchal, Vila Real e  Lisboa, na capital exerceu o seu magistério no D. João de Castro e sobretudo no Pedro Nunes, ao lado do Jardim da Estrela,  publicando em 1960, quando já tinha mais de trinta anos de escritor (1º título Cépticos, 1929), um opúsculo in-4º de 16 páginas intitulado Diálogo no Jardim,   no qual, esclarecendo como se deve dialogar e interrogando-se quanto à filosofia poder ser objecto de pedagogia, delineia duas linhas de força da tradição espiritual portuguesa, a que ele pertenceu discretamente: a da busca  do diálogo despertante ou presentificante autêntico e a da relação mestre a discípulo, na qual o mestre desperta, intensifica ou ilumina este, cabendo depois ao último aprofundar e perseverar as luzes geradas nos diálogos e eventualmente partilhá-las. 

Neste Diálogo no Jardim serão mencionados tanto Leonardo Coimbra, directa e indirectamente ("sei de ciência certa", referindo-se a algumas experiências, pois Sant'Anna conviveu com ele), como Antero de Quental, quanto ao seu anseio confessado de ter um verdadeiro discípulo.  Mas como o Diálogo, com quatro interlocutores, se desenrola no Jardim da Estrela, junto à escultura de Antero de Quental (reproduzida em fotografia em folha preliminar) há várias referências a ela e a ele, sendo ainda assinalada a presença do som ritmado dum liceu próximo, o Pedro Nunes, onde curiosamente fiz eu o sexto e sétimo ano do Liceu in illo tempore. Mais tarde, quando ensinava Agni Raj Yoga no restaurante Suribachi no Porto, dialoguei muito com Sant'Anna Dionísio em sua casa, nos últimos anos da sua vida na Terra física, tendo ainda feito algumas pequenas peregrinações com ele, duas das quais com a Dalila Pereira da Costa, no Minho e no Douro.

Oiçamos então desse invulgar folheto, recentemente adquirido numa livraria alfarrabista portuense, a Candelabro de Luís Moutinho,  as passagens mais valiosas quanto a possibilidade do diálogo pedagógico e filosófico dar à luz uma intensificação auto-consciencial, metafísica e espiritual, começando com a descrição do cenário inicial:

                            DIÁLOGO DO JARDIM

«Três homens relativamente novos, passeiam na alameda de um jardim conversando. É uma manhã luminosa de meados de Junho. Através da folhagem do arvoredo, entreve-se a massa de mármore de uma bela basílica, com o seu grande zimbório recortado no azul. Um pouco cansados talvez da demorada conversa deambulatória, os interlocutores deixam a alameda e vão sentar-se num recanto de penumbra, junto da estátua do Poeta-Filósofo. É nesse momento que surge um companheiro que os três conversadores parecem esperar e festivamente saúdam. Interlocutores: António, Afonso, Luís e Abel (Luís é o que acaba de chegar). (...)»

                                 

    «António. -  Neste momento, o assunto que eu estava a tentar esclarecer era simplesmente este: o de que a arte de de discutir requer uma severa disciplina que envolve, em primeiro lugar, o saber ouvir e não interromper senão quando o pensamento que se nos opõe se possa dizer bem definido.

Luís. - Por esse princípio, nunca se devia interromper ninguém que se nos opusesse, - e todo o diálogo se tornaria solilóquio.

António. - A verdade é que tu mesmo estas a verificar o malefício de toda a interrupção extemporânea ou intempestiva. Precisamente no momento em que eu tentava demonstrar em que consiste essa disciplina, tão rara, de saber ouvir, cortaste-me o fio com um comentário sardónico, que a inutilizou. Ora isto é o que se verifica constantemente em todas as conversas que falham.

Luís. - Queres então dizer que toda a conversa, para ser proveitosa, deverá submeter-se rigorosamente a uma espécie de regimento?

António. - E porque não? Uma discussão é uma partida que requer o devido vagar, os devidos períodos de silêncio, as devidas esperas do trabalho dialéctico do opositor.»


Mais à frente, após ter distinguido o ensino da filosofia e o ensino liceal ou secundário da filosofia, e de ter advertido que «em qualquer conversa, mesmo na mais desperta, há sempre uma certa dose de automatismo verbal a corroer constantemente a substância sincera do objecto da discussão», volta à questão de a filosofia autêntica, ou "superior reflexão metafísica" poder ser ou não "objecto de uma didáctica" e, depois de aludir a Agostinho da Silva e a Leonardo Coimbra (crítico do progresso cousado ou coisificante), reconhecerá «que o único progresso» bem substancial e todavia sempre precário) que concebo é o que se poderá chamar afinamento da consciência de problematização [e, acrescentaremos, de silenciosa sensibilidade subtil-espiritual) e esse, segundo julgo, não se pode obter senão pela oferta de experiência e esclarecimento que se faz e terá de fazer sempre com relativo espírito de gratuitidade, de geração para geração, sob pena de colapsos análogos aos dos dois ou três primeiros séculos da Idade Média».

Valorizando a demanda filosófica em todo a pessoa, desde o pastor da serra da Estrela, admitindo mesmo que uma maiêutica especial poderá trazer à fala sensibilidades e intuições das crianças, confessará contudo que «não obtive ainda, infelizmente, da minha experiência docente, já longa, sinal algum de ter influído a fundo no destino intelectual de alguém, dentro das dezenas de cursos e centenas de ouvintes que tenho tido. Essa satisfação íntima não a tive ainda, e não sei se a terei. São obras do ocaso e não do querer. Um discípulo é sempre uma avis rara; para não dizer uma graça. Quantos espíritos dados, com seriedade profunda, ao magistério, não têm vivido sem lhes ter sido dada tal «graça»! É ver o caso de Antero, aqui presente. Vejam o seu silêncio. Um dos mais íntimos pesares, com nitidez traduzido em algumas das suas confidencias do fim da vida, foi o de não ter tido a ventura de encontrar um ou dois discípulos, que sobre si tomassem a tarefa de cristalizar o inefável do seu pensamento discursivo espalhado e perdido em tantas conversas de noctâmbulo. É o próprio Eça quem o diz, no seu contributo para o In-Memoriam.

Afonso. - Mas, afinal, aonde queres tu ir com a tua divagação?

Luís. - Quero chegar a este ponto: que, embora não tenha tido, conforme desejas saber, uma prova patente de que o magistério da filosofia seja «decisivo» no destino deste ou aquele, dentro os que tenho tentado esclarecer ou despertar, sei de ciência certa que tal magistério, se for feito com intensidade, exerce uma discreta e verídica acção de presença.»  

Concluirá assim afirmativamente quanto à questão fundacional, pois: «Se ninguém ensinasse, nem quisesse ajudar a esclarecer, nem oferecesse a sua reflexiva experiência aos que vão emergindo do limbo da Vida e da Ingenuidade, o homem em breve se tornaria uma criatura taciturna como tantos seres que vivem a seu lado, sobre a terra, à superfície da terra e nas estranhas da terra». 

E admitirá ainda, face às dificuldades de acordos nos diálogos: «Será caso para se pôr termo a todas as discussões? Teremos de viver como as pedras dos montes ou, conforme diz a gente ingénua e vulgar, como Deus com os anjos; - isto é, em perfeito silêncio? (...) Os seres humanos entendem-se como podem. O desentendimento sempre foi e será uma necessidade dialéctica para novo esforço de entendimento.»    

Sant'Anna Dionísio fechará o seu breve diálogo ao modo socrático, quando já publicara três livros sobre Antero de Quental e dois sobre Leonardo Coimbra,  com um nota paisagística de que ele foi um artista, seja como continuador do Guia de Portugal, de Raul Proença, seja nos livros, editados pela Lello no Porto, consagrados aos Norte de Portugal, mais concretamente com uma pequena impressão anteriana e do Jardim da Estrela: «A pouca distância, ouve-se o rumorejar da população escolar do Liceu, no breve intervalo das aulas. Luís afasta-se nessa direcção. Os outros interlocutores levantam-se e dirigem para os lados do pavilhão do pequeno lago, deixando a sós o Poeta-Filósofo, na sua branca imobilidade, recortada no verde escuro do montículo de musgo que lhe serve de fundo».

                                                        

Quanto à estátua de Antero, por Barata Feyo, Sant'Anna Dionísio dirá ainda: «A presença da estátua branca de Antero parece que vos inclina hoje mais ainda que de costume para o devaneio poético». E talvez mais brincando, apesar de amante da Grécia, «sabemos que tens, como Antero, aqui defronte, todo embrulhado no seu pesado roupão, uma espécie de pudor de elefante.»
        
   "Aos pés do mestre" significa humildemente  curvar-nos sobre os que nos antecederam, nomeadamente os mestres, e intuirmos as comunhões correctas que com eles devemos cultivar, num caminho de realização humana e espiritual humilde e amorosa, sábia e corajosa, com aspiração, criatividade ou luta pelos ideais de maior justiça, fraternidade e liberdade, coroados intimamente com o despertar espiritual e o amor divino.

sábado, 8 de maio de 2021

Da essência perene da aspiração da poesia do coração e do amor. Um poema.

Este poema foi escrito hoje 8-V-2021, pela tarde. Hesitando depois nas imagens ou iconologia, acabou por entrar a bela fotografia de Isabel Moura partilhada para o grupo no Facebook "Núvens e Céus de Portugal" e, no fim, uma gravura de livro do séc. XVIII, da Tradição Espiritual Portuguesa...

                                       

Quem escreve deseja sempre ser apreciado,
Mas se é ego ou altruísmo é difícil deslindar,
 tal querer ser lido e acolhido, em que futuro seja,
pois imaginamos até do outro lado da vida
    ainda sentir comunhão com as almas leitoras.

Cada poema é mensagem escrita numa garrafa
que lançada no oceano da manifestação
pode chegar ou não a um coração receptivo
e suscitar a comunhão numa emoção.

Quantas vezes não escrevi pensando em ti,
e que, tu me lendo e sentindo tanto a luz,
 os nossos corações se comunicariam
e distâncias intransponíveis se venceriam?

Assim, cada escrito é uma escada para o céu
mas com travessas e ligações à Terra.
É um coração que aspira tanto a Deus
Como às companhias afins frutíferas.

Nestes tempos de tantas ganâncias e opressões,
quando os Estados e financeiros se tornaram bárbaros
é na poesia, luta e meditação que se comunicarão
as almas cultoras da beleza,  do bem e do coração.

Assim não desanimes, esforça-te, persevera,
Sê fiel cavaleiro ou cavaleira do Amor,
capaz de vencer o medo, a morte e a dor,
Como a nós Antero de Quental apelou.

Lanço assim este poema do coração
para que chegue ao teu e o anime
daquela vontade indómita de vencer
 e de realizar os teus mais altos fins.

O que é a poesia no fundo senão
uma íntima aspiração e oração
a que se realize maior união
e a justa paz e iluminação?

 Valete Fraters, Valete Sorores! 

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Um poema oração de Rabindranath Tagore, muito actual, no seu dia de aniversário. Aum...

                                                        

Um poema muito actual em inglês de Rabindranath Tagore (1861-1841) e traduzido para português por Pedro Teixeira da Mota, neste 160 ano do seu aniversário. Possam as forças negativas do egoísmo, ganância e violência desaparecerem cada vez mais da Terra, dos financeiros, dos governos, das empresas e das mentes e corações humanos, graças aos esforços, purificações, aspirações, meditações e bênçãos, dando lugar à fraternidade, à justiça, à compaixão e ao amor divino e à Divindade. Foi publicado pela 1ª vez postumamente em 1942, sendo o 88º dessa selecção então inédita intitulada Poems, com o desenho inicial de Gaganendranath Tagore, e o final deste artigo já da autoria de Rabindranath, que nos últimos anos pintou bastante.


«O mundo está hoje bárbaro com o delírio do ódio,
os conflitos são cruéis e infindáveis na angústia,
tortos são os caminhos, emaranhados seus laços de ganância.
Todas as criaturas apelam por um novo nascimento de ti.
Ó Tu da vida ilimitada,
salva-os, ergue a tua eterna voz de esperança,
Que o lótus do Amor com seu inesgotável tesouro de mel
abra as suas pétalas na tua luz.

Ó Sereno, Ó Livre
na tua incomensurável misericórdia e bondade
faz desaparecer todas as manchas escuras do coração desta terra.

Tu doador dos dons imortais
dá-nos o poder da renúncia
e retira de  nós o nosso orgulho.
No esplendor dum novo nascer do sol da sabedoria
possam os cegos ganhar de novo a sua visão
e possa a vida chegar às almas que estão mortas.

Ó Sereno, Ó Livre,
na tua incomensurável misericórdia e bondade
faz desaparecer todas as manchas escuras do coração desta terra.

O coração do ser humano está angustiado com a febre da inquietação
com o veneno da procura egoísta,
com uma sede que não tem fim.
Por toda a parte países ostentam na suas frontes
a marca de sangue-avermelhado de ódio.
Toca-os com a tua mão direita,
Torna-os um no espírito,
trás harmonia às suas vidas,
trás o ritmo da beleza. 

Ó Sereno, Ó Livre,
na tua incomensurável misericórdia e bondade
faz desaparecer todas as manchas escuras do coração desta terra.

                                      

Nos 160 anos de Rabindranath Tagore. Um poema, com tradução minha, e um vídeo de então.

                                  

 Comemoram-se hoje os cento e sessenta anos do nascimento de Rabindranath Tagore, 7-V-1861 a 7-VIII-1841) o grande poeta, pedagogo, político e espiritualista, de Bengala, criador de uma vasta obra maravilhosa de poesia (Prémio Nobel em 1913), ensaio, música, romance, drama, pintura, educação, história, filosofia e ensino espiritual. Em vários textos deste blogue já o biografamos, referimos, traduzimos e comentamos, e hoje acrescentamos um valioso folheto com uma bela imagem, como  guru (e é no livro Sadhana que mais se manifesta, e do qual transmiti partes do 1º capítulo em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/05/sadhana-de-rabindranath-tagore.html), folheto que trouxe do seu centro educativo, Vishva-Bharati, hoje Universidade, no norte de Bengala, há já quase 30 anos, em 1995, quando estive um ano na Índia e em grande parte em Calcutá, no Ramakrishna Mission Institute of Culture, em trabalhos de yoga e orientalismo.
Contém ele um texto-poema-oração em bengali e em inglês, que  traduzimos para português,  já do fim da sua vida, no qual  resume a sua peregrinação como a de um coração e uma mãos sempre abertas à Divindade, um ser de grande amor, compaixão e devoção... Assim o homenageamos, e invocamos até, a sua imensa sensibilidade, amor e sabedoria nas nossas almas, algo dilaceradas e limitadas pelas situações 
difíceis e tão manipuladas que atravessamos...
Possam as bênçãos divinas e dos mestres inspirarem-nos, protegerem-nos e guiarem-nos...

«Thou hast made me endless, such is thy pleasure. This frail vessel thou emptiest again and again, and fillest it ever with fresh life.
This little flute of a reed thou hast carried over hills and dales, and hast breathed through it melodies eternally new.
At the immortal touch of thy hands my little heart loses its limits in joy and gives birth to utterance ineffable.
Thy infinite gifts come to me only on these very small hands of mine. Ages pass, and still thou pourest, and still there is room to fill.»

«Tornaste-me sem fim, tal é o teu gosto. Este frágil vaso esvaziaste-o uma vez e outra vez, e encheste-o sempre com vida renovada.
Esta pequena flauta de cana verde levaste-a por montes e vales, e através dela sopraste melodias eternamente novas..
No contacto imortal das tuas mãos o meu pequeno coração, numa grande alegria, perde os seus limites e dá à luz  expressões inefáveis.
Os teus dons infinitos vêm até mim apenas nestas minhas pequenas mãos. Passam os tempos, e ainda derramas e ainda há espaço  para encheres».    Aum...