domingo, 9 de maio de 2021

Das exigências do diálogo e do ensino filosófico, por Sant' Anna Dionisío. "Diálogo no Jardim" da Estrela, sob a estátua de Antero de Quental

Sant'Anna Dionísio (1902-1991) foi um ensaísta, jornalista, polemista e professor liceal, licenciado em Filologia Germânica (1924, dissertação sobre Nietzche) e em Filosofia (1926, dissertação sobre Bergson), pela famosa Faculdade de Letras do Porto, fundada e orientada (1919-1928) por Leonardo Coimbra. Destacou-se enquanto discípulo dos antigos filósofos gregos (tendo traduzido algumas obras), de Antero de Quental e do seu professor Leonardo Coimbra, manifestando uma busca constante de conhecimento e de comunicação, tendo por isso, além das aulas,  dado à luz vários livros e colaborado em jornais, em especial o 1º de Janeiro e o Diabo, e revistas, tais como a Águia (onde foi nos últimos números ainda co-director com Agostinho da Silva), Prisma, Seara Nova, Tempo Presente, Mundo Literário, Revista 57, Nova Renascença

Tendo sido professor liceal em Guimarães, Funchal, Vila Real e  Lisboa, na capital exerceu o seu magistério no D. João de Castro e sobretudo no Pedro Nunes, ao lado do Jardim da Estrela,  publicando em 1960, quando já tinha mais de trinta anos de escritor (1º título Cépticos, 1929), um opúsculo in-4º de 16 páginas intitulado Diálogo no Jardim,   no qual, esclarecendo como se deve dialogar e interrogando-se quanto à filosofia poder ser objecto de pedagogia, delineia duas linhas de força da tradição espiritual portuguesa, a que ele pertenceu discretamente: a da busca  do diálogo despertante ou presentificante autêntico e a da relação mestre a discípulo, na qual o mestre desperta, intensifica ou ilumina este, cabendo depois ao último aprofundar e perseverar as luzes geradas nos diálogos e eventualmente partilhá-las. 

Neste Diálogo no Jardim serão mencionados tanto Leonardo Coimbra, directa e indirectamente ("sei de ciência certa", referindo-se a algumas experiências, pois Sant'Anna conviveu com ele), como Antero de Quental, quanto ao seu anseio confessado de ter um verdadeiro discípulo.  Mas como o Diálogo, com quatro interlocutores, se desenrola no Jardim da Estrela, junto à escultura de Antero de Quental (reproduzida em fotografia em folha preliminar) há várias referências a ela e a ele, sendo ainda assinalada a presença do som ritmado dum liceu próximo, o Pedro Nunes, onde curiosamente fiz eu o sexto e sétimo ano do Liceu in illo tempore. Mais tarde, quando ensinava Agni Raj Yoga no restaurante Suribachi no Porto, dialoguei muito com Sant'Anna Dionísio em sua casa, nos últimos anos da sua vida na Terra física, tendo ainda feito algumas pequenas peregrinações com ele, duas das quais com a Dalila Pereira da Costa, no Minho e no Douro.

Oiçamos então desse invulgar folheto, recentemente adquirido numa livraria alfarrabista portuense, a Candelabro de Luís Moutinho,  as passagens mais valiosas quanto a possibilidade do diálogo pedagógico e filosófico dar à luz uma intensificação auto-consciencial, metafísica e espiritual, começando com a descrição do cenário inicial:

                            DIÁLOGO DO JARDIM

«Três homens relativamente novos, passeiam na alameda de um jardim conversando. É uma manhã luminosa de meados de Junho. Através da folhagem do arvoredo, entreve-se a massa de mármore de uma bela basílica, com o seu grande zimbório recortado no azul. Um pouco cansados talvez da demorada conversa deambulatória, os interlocutores deixam a alameda e vão sentar-se num recanto de penumbra, junto da estátua do Poeta-Filósofo. É nesse momento que surge um companheiro que os três conversadores parecem esperar e festivamente saúdam. Interlocutores: António, Afonso, Luís e Abel (Luís é o que acaba de chegar). (...)»

                                 

    «António. -  Neste momento, o assunto que eu estava a tentar esclarecer era simplesmente este: o de que a arte de de discutir requer uma severa disciplina que envolve, em primeiro lugar, o saber ouvir e não interromper senão quando o pensamento que se nos opõe se possa dizer bem definido.

Luís. - Por esse princípio, nunca se devia interromper ninguém que se nos opusesse, - e todo o diálogo se tornaria solilóquio.

António. - A verdade é que tu mesmo estas a verificar o malefício de toda a interrupção extemporânea ou intempestiva. Precisamente no momento em que eu tentava demonstrar em que consiste essa disciplina, tão rara, de saber ouvir, cortaste-me o fio com um comentário sardónico, que a inutilizou. Ora isto é o que se verifica constantemente em todas as conversas que falham.

Luís. - Queres então dizer que toda a conversa, para ser proveitosa, deverá submeter-se rigorosamente a uma espécie de regimento?

António. - E porque não? Uma discussão é uma partida que requer o devido vagar, os devidos períodos de silêncio, as devidas esperas do trabalho dialéctico do opositor.»


Mais à frente, após ter distinguido o ensino da filosofia e o ensino liceal ou secundário da filosofia, e de ter advertido que «em qualquer conversa, mesmo na mais desperta, há sempre uma certa dose de automatismo verbal a corroer constantemente a substância sincera do objecto da discussão», volta à questão de a filosofia autêntica, ou "superior reflexão metafísica" poder ser ou não "objecto de uma didáctica" e, depois de aludir a Agostinho da Silva e a Leonardo Coimbra (crítico do progresso cousado ou coisificante), reconhecerá «que o único progresso» bem substancial e todavia sempre precário) que concebo é o que se poderá chamar afinamento da consciência de problematização [e, acrescentaremos, de silenciosa sensibilidade subtil-espiritual) e esse, segundo julgo, não se pode obter senão pela oferta de experiência e esclarecimento que se faz e terá de fazer sempre com relativo espírito de gratuitidade, de geração para geração, sob pena de colapsos análogos aos dos dois ou três primeiros séculos da Idade Média».

Valorizando a demanda filosófica em todo a pessoa, desde o pastor da serra da Estrela, admitindo mesmo que uma maiêutica especial poderá trazer à fala sensibilidades e intuições das crianças, confessará contudo que «não obtive ainda, infelizmente, da minha experiência docente, já longa, sinal algum de ter influído a fundo no destino intelectual de alguém, dentro das dezenas de cursos e centenas de ouvintes que tenho tido. Essa satisfação íntima não a tive ainda, e não sei se a terei. São obras do ocaso e não do querer. Um discípulo é sempre uma avis rara; para não dizer uma graça. Quantos espíritos dados, com seriedade profunda, ao magistério, não têm vivido sem lhes ter sido dada tal «graça»! É ver o caso de Antero, aqui presente. Vejam o seu silêncio. Um dos mais íntimos pesares, com nitidez traduzido em algumas das suas confidencias do fim da vida, foi o de não ter tido a ventura de encontrar um ou dois discípulos, que sobre si tomassem a tarefa de cristalizar o inefável do seu pensamento discursivo espalhado e perdido em tantas conversas de noctâmbulo. É o próprio Eça quem o diz, no seu contributo para o In-Memoriam.

Afonso. - Mas, afinal, aonde queres tu ir com a tua divagação?

Luís. - Quero chegar a este ponto: que, embora não tenha tido, conforme desejas saber, uma prova patente de que o magistério da filosofia seja «decisivo» no destino deste ou aquele, dentro os que tenho tentado esclarecer ou despertar, sei de ciência certa que tal magistério, se for feito com intensidade, exerce uma discreta e verídica acção de presença.»  

Concluirá assim afirmativamente quanto à questão fundacional, pois: «Se ninguém ensinasse, nem quisesse ajudar a esclarecer, nem oferecesse a sua reflexiva experiência aos que vão emergindo do limbo da Vida e da Ingenuidade, o homem em breve se tornaria uma criatura taciturna como tantos seres que vivem a seu lado, sobre a terra, à superfície da terra e nas estranhas da terra». 

E admitirá ainda, face às dificuldades de acordos nos diálogos: «Será caso para se pôr termo a todas as discussões? Teremos de viver como as pedras dos montes ou, conforme diz a gente ingénua e vulgar, como Deus com os anjos; - isto é, em perfeito silêncio? (...) Os seres humanos entendem-se como podem. O desentendimento sempre foi e será uma necessidade dialéctica para novo esforço de entendimento.»    

Sant'Anna Dionísio fechará o seu breve diálogo ao modo socrático, quando já publicara três livros sobre Antero de Quental e dois sobre Leonardo Coimbra,  com um nota paisagística de que ele foi um artista, seja como continuador do Guia de Portugal, de Raul Proença, seja nos livros, editados pela Lello no Porto, consagrados aos Norte de Portugal, mais concretamente com uma pequena impressão anteriana e do Jardim da Estrela: «A pouca distância, ouve-se o rumorejar da população escolar do Liceu, no breve intervalo das aulas. Luís afasta-se nessa direcção. Os outros interlocutores levantam-se e dirigem para os lados do pavilhão do pequeno lago, deixando a sós o Poeta-Filósofo, na sua branca imobilidade, recortada no verde escuro do montículo de musgo que lhe serve de fundo».

                                                        

Quanto à estátua de Antero, por Barata Feyo, Sant'Anna Dionísio dirá ainda: «A presença da estátua branca de Antero parece que vos inclina hoje mais ainda que de costume para o devaneio poético». E talvez mais brincando, apesar de amante da Grécia, «sabemos que tens, como Antero, aqui defronte, todo embrulhado no seu pesado roupão, uma espécie de pudor de elefante.»
        
   "Aos pés do mestre" significa humildemente  curvar-nos sobre os que nos antecederam, nomeadamente os mestres, e intuirmos as comunhões correctas que com eles devemos cultivar, num caminho de realização humana e espiritual humilde e amorosa, sábia e corajosa, com aspiração, criatividade ou luta pelos ideais de maior justiça, fraternidade e liberdade, coroados intimamente com o despertar espiritual e o amor divino.

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