segunda-feira, 17 de maio de 2021

César do Inso, " Céu, Espírito e Luz". Um elo quase perdido da Tradição Espiritual e Irenista Portuguesa.

César do Inso foi um escritor do final do séc. XIX, começo do XX, que, embora tendo publicado em jornais e em livros (e ignoramos o impacto) está hoje completamente ignorado devendo contudo ser apreciado como um elo valioso da Tradição espiritual Portuguesa. Se pesquisarmos na web referências a ele só encontramos um documento na Torre do Tombo, o da carta de outorga  a Augusto César Correia do Inso da posição de Primeiro Oficial da Contadoria da Junta do Crédito Público, 1887, passada pelo rei D. Luís. Regista-se ainda que a sua vida terrena decorreu entre 1841 e 1919. A base de dados dos livros existentes nas bibliotecas públicas portuguesa, a Porbase, menciona dos seus livros: Agronomia elementar ao alcance de todos os lavradores. 1890. Ceo, Espírito e Luz : digressão do pensamento em busca da verdade. 1900. O duello e a guerra. Conferencia. 1900.  Os perigos de guerra, 1902. Os amigos da guerra. 1904. Guerra á guerra. Conferencia. 1904. Nesta última obra vemos na página final menção de outros trabalhos, publicados nos jornais Revolução de Setembro (1840-1901) e no Diário da Manhã, além de ter feito uma conferência em 1902 na Liga da Paz Portuguesa (1899-1917).

Já após deste artigo ter a sua primeira redacção, consultando finalmente a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira na livraria Antiquária do Calhariz, no coração da Lisboa alfarrabista, fundada por Arnaldo Oliveira e continuada por José Manuel Rodrigues e agora mais até por sua filha Catarina (redigindo com periocidade um catálogo), ficamos a saber que Augusto César Correia do Inso nasceu em Alter do Chão em 22-XI-1841 e, completado o liceu, estudou Teologia no Seminário, formou-se como engenheiro Agrónomo, em Santarém e   serviu 30 anos como funcionário público, aposentando-se em 1901. Foi secretário da Liga da Paz Portuguesa e, além de escritor  e "distinto conferencista", colaborador do Diário de Notícias e do Correio da Manhã, rumando para os planos espirituais em 18-IV-1919.

Constatamos assim ser um amante e conhecedor da natureza, da agricultura terrena e celestial, bem como do pacifismo. Provavelmente em  publicações do irenismo ou pacifismo, na época ligadas à Liga da Paz Portuguesa, a Tolstoi, ao Anarquismo, ao Naturismo, ao Esperanto e a certas espiritualidades, encontraremos colaborações suas,  menção dos seus livros, relatos das suas conferências... 

Deixando para outra ocasião o seu irenismo (da palavra grega irene, paz), ou pacifismo, entremos antes na sua obra maior, Ceo, Espírito e Luz: digressão do pensamento em busca da verdade, publicada em Lisboa na Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, então sita num dos principais corações livreiros de Lisboa, o Largo do Camões, nº 5 e 6. 

Num in-4º de 253-5 páginas, narra uma imaginária viajem aos mundos subtis e espirituais, explicando duplamente a sua génese:  fora publicado  um resumo da parte inicial em nove folhetins do jornal Correio da Manhã, e escrevera tal digressão imaginária em casa durante um mês, quando estivera a recuperar de uma partida de brincalhões perigosos ao cair num buraco de obras, disfarçado, verberando a crueldade humana patente ainda frequentemente nessa Lisboa de 1900. Conseguindo erguer-se sozinho da cova ("pude, louvado Deus!"), «quando cheguei a casa levava a cerola e a meia alagadas em sangue. Vendo-me entrar, lívido como um cadáver, toda a minha família me interrogou ansiosamente. - Não se assustem, respondi-lhes com calculada serenidade: tirem-me lá esta calça.».  Ficamos assim a saber que era casado e tinha filhos. E que foi tratado durante os 38 dias que esteve em casa pelo Dr. Leão de Oliveira, «cujos primores de humanidade não são menos relevantes do que a sua elevada competência médica.»
Ora a viagem imaginada que descreve com um espírito guia aos
mundos do além contém bastante sabedoria, seja política, científica, filosófica e religiosa e embora nos diga "que foi durante o tempo em que estive de cama, que escrevi a maior parte deste trabalho, sem outro auxiliar senão o da minha reminiscência", cremos que a sua reminiscência não é a da vida ante-natal mas a de leituras várias, na época de ocultismo e espiritismo, mencionando apenas Camille Flammarion e, quanto a propósito de ser crédulo ou incrédulo, o escritor Joaquim de Oliveira Martins, nomeadamente as últimas páginas do seu livro A Inglaterra de Hoje (Cartas de um viajante), 1893. E se as lermos observamos Oliveira Martins apreciar o sucesso obtido pelo recém fundado Exército da Salvação, assente numa religiosidade básica (a que O. Martins chama incorrectamente mística) democrática ou para todos,  bem necessária já que nas igrejas protestantes de então só entrava gente respeitável. E depois criticar em seguida o sucesso do espiritismo, que considerava fruto da tendência animista e supersticiosa, e pouco filosófica e metafísica, dos ingleses entra numa abordagem semelhante da Teosofia e lamenta não ter conseguido entrevistar Annie Besant. Embora céptico,  através de um interlocutor, Oliveira Martins admite nas últimas páginas que se sabe pouco dos mistérios da vida. Talvez César do Inso tenha resolvido responder-lhe...

Quanto ao que César do Inso intuiu por ele próprio, o que terá meditado e deduzido ou então visto não será fácil deslindarmos, mas como é obra invulgar, impressa um só vez na tipografia da rua D. Pedro V, 84 a 88, vamos transcrever e comentar brevemente algumas partes nas quais se aventura a especular ou imaginar os aspectos da vida nos mundos subtis e espirituais,  utilizando  um diálogo com um espírito já mais evoluído, no qual propõe as suas hipóteses e, graças à resposta do espírito já em tais planos, apresenta propostas, no fundo como frutos duma hipotética clarividência.

Como todos desejaríamos saber mais sobre a vida depois da morte, sobretudo para poderemos fazer já nesta vida terrena que ela venha a ser melhor, ou para sabermos o que podemos fazer pelos que já partiram, para as suas almas estarem melhor, mais luminosas ou mais unidas  ao Bem, ao Amor, à Verdade, à Divindade, pesquisemos das belas passagens ou antevisões oferecidas por ele as com mais possibilidade ou credibilidade.

«Na Terra os sentidos são apenas 5 ou 6 quanto muito; os do Espírito, nesta divina morada são talvez dez, elevados a um tal grau de intensidade, que nem saberias medir-lhe o alcance.» 

Que quatro outros admite, onde os foi buscar? Sabemos que há a clarividência, a clauriaudiência, o sentir interior psico-energético, o sentido da unidade com o que nos rodeia.Será a eles que se refere?

 Muito pacifista ou irenista, César do Inso escreve a dado momento: «Oh! a guerra, o supremo prazer dos grandes heróis terráqueos, é o maior flagelo com que Deus castiga os povos que se desviam do caminho da justiça.»

Parece mais correcto pensar-se que são os terrenos que se castigam a si próprios e que a Divindade está acima de tal, ainda que interiormente nas almas dos seres se possa manifestar quando eles estão em situações que o justificam. Mas não há um Deus castigador. Quanto muito à uma Providência Divina, assente em leis e harmonias e que se exerce naturalmente, na Índia, de certo modo, denominando-se o Karma, a causa-efeito, a Roda da Vida, na cultura ocidental tipificada de certo modo no arcano X, a Roda da Fortuna... 

                                                           
No 2º cap. pág. 30: «Como eram a própria alma e não tinham corpo ou matéria que dirigir, os Espíritos obedeciam instantaneamente à vontade que esta ou aquela ordem de motivos formulava no seu seio. Creio que tinham o dom da rapidez eléctrica, pois desapareceram como por encanto».
Eis-nos num facto, num senti
do de movimentação instantânea e também numa ideia verdadeira, a de que a decisão mental se cria por motivos ou motivações interiores e que ela obriga os espíritos, ou é acompanhada pelos espíritos já que foram estes que a geraram. Acerca dos polos da matéria e da luz, escreve na pág. 50: «A Matéria é o quid com que tudo se fabrica, se organiza, se cria na terra. A pedra, a água, o ferro, a carne, a terra, o sangue, a árvore, os ossos, olhos, os nervos... tudo é matéria. Da matéria vem tudo: com ela tudo se fabrica, para ela tudo volta.
No império dos Gloriosos Espíritos que acabamos de admirar, a matéria é substituída pela Luz. Tudo é Luz. Da Luz vem tudo: com ela tudo se fabrica, para ela tudo volta.
Por isso são de Luz os Espíritos, era de Luz o grandioso templo, cujas maravilhas, as portas que – eram uma das maiores – acabavam de esconder dos nossos olhos, encerrando-se!
Mas por ser tudo de Luz, não vades imaginar que era tudo idêntico, ou pelo menos igual.» E eis-nos com um valioso ensinamento para procurarmos perseverar mais na meditação até a Luz se manifestar, e para estarmos mais conscientes dela em nós e na nossa aura-irradiação no dia a dia e no aqui e agora...


A obra está cheia de páginas muito luminosas e de bons questionamentos, e assim na pág. 55 podemos ler e imaginar: «E as ordens de seres espirituais que vivem nos Planetas e nas Estrelas inumeráveis que povoam, aí! É absolutamente impossível conjecturará-las sequer a nossa inteligência!
Ó Astros radiantes! Em qual de vós, continuam, e se completam os entes que nos foram caros; os que amámos de todo o nosso coração, os que mais admirámos pela sua virtude ou saber? (...)
Em que consiste a vossa civilização, ó habitantes dos mundos desconhecidos? Será a civilização compatível com a vossa natureza? Sois vós seres civilizáveis, ou progressivos?
Sentis também no íntimo da vossa alma, uma como força misteriosa, impelida e alumiada por esse luzeiro imarcessível que se chama o Ideal e que vem do Infinito?»

O reconhecimento da importância do coração-amor surge poderosa:  «Amor! Amor! Tu és a mais pura emanação de Deus; porque és o elo que prende e liga entre si, no universal conjunto, as peças que constituem o mecanismo do Infinito que nós exprimimos numa palavra só: - Universo.»


E depois de ter recebido uma visão de uma pomba-fénix: símbolos da inocência e imortalidade, altamente iluminadora, propõe um bom exercício de alargamento de visão: «Suponde que uma fada transformava uma pomba em um brilhante com igual figura e tamanho e o colocava sobre uma coluna, no meio de um salão alumiado por milhares de luzes. Pedi à vossa fantasia, que vos deixe supor um aparelho, onde fossem recebidas simultaneamente todas as cintilações que se observassem de cada ponto do salão: pedi-lhe do mesmo modo que vos deixe imaginar uns olhos que pudessem apreciar nitidamente aquela impressão. Pois quem dissesse que um tal deslumbramento era a imagem da pomba celeste, faria uma limitadíssima ideia da realidade que tinha diante dos meus olhos».
Quanto à nossa aspiração de maiores experiências ou revelações, "aqui e agora, já", o seu guia acalma-o: «Não é para os ouvidos terrenos que o Divino Maestro compôs as sublimes melodias que constituem a música ideal, a música que cantam os Anjos nas esferas de Luz, onde vivem os espíritos que o Amor vai conduzindo pela eternidade fora, até à sua presença e quem sabe se até à absorção na Sua própria essência».  E no "quem sabe se", interroga-se bem, para além de dar uma certa orientação clarificadora aos que desejam ou se esforçam  por ouvir interiormente vozes ou música...

Uma pintura dos mundos espirituais por Bô Yin Râ
São repetidas as menções dos Anjos e demais entidades, ou ainda ao beijo da morte iniciática que eles podem dar,  tal como:«Os anjos são invisíveis aos nossos olhos. Sentem-se, ouvem-se dentro da nossa própria alma; mas não se vêem; não se podem ver senão em circunstâncias que me não é permitido conjecturar [provavelmente faltou-lhe tal experiência...]. Já os vimos em forma de pontos luminosos, é verdade; mas em forma de pontos luminosos, é verdade; mas que são pontos luminosos para a forma dos anjos, as criaturas mais sublimes do Universo? Ainda assim foi a influência maravilhosa da Pomba-Phoenix, o seu esplendor supersensível que permitiu aquela visão, quase imperceptível. Mas as almas não são também anjos?
- Chegam a sê-lo, e algumas terás tu talvez admirado, que tenham já essa categoria. Depende o fenómeno de circunstâncias em que não posso agora entrar». Boas interrogações, que anos depois Fernando Pessoa equacionou e em apontamento escrito deixou...
Quanto aos grandes ideais que moviam as melhores almas do séc. XIX, tal como entre nós a Geração de 70 e particularmente Antero de Quental, o espírito guia de César Inso explicará num texto muito valioso: «A liberdade, a igualdade e a fraternidade constituem o viver comum dos Espíritos. Não que seja uma liberdade, uma igualdade e uma fraternidade, como as que debalde procurais na Terra; que essas nem no Céu são possíveis.
Aqui somos todos iguais, mas é perante o Amor que mutuamente nos votamos: e este Amor é como o ideal da mais pura e santa fraternidade.
Somos todos iguais perante a Verdade que se oferece à nossa contemplação, perante o Bem que fraternalmente se distribui à nossa vontade; perante os gozos e venturas da alma, que temos a liberdade plena de procurar em todos os pontos do Céu que melhor se adaptem ao desenvolvimento que cada um trouxe da Terra; perante o afecto enfim do Supremo Ordenador do Universo, que a todos faculta igualmente os tesouros da sua generosidade inesgotável.»

Para concluirmos a nossa pequena ressurreição dum ser bem luminoso, o César do Inso, oiçamo-lo sobre o valor do debate:    «-Não, meu amigo, respondeu a Visão, Espírito ou Anjo, a discussão não é inimiga da Verdade nem da Justiça; nem tão pouco incompatível com a natureza dos Espíritos, mas tão somente com determinado grau de desenvolvimento.
No Céu, co
mo na Terra, a discussão é um dos melhores instrumentos que a inteligência pode empregar para conquistar a Verdade. Não me refiro, é claro, a toda a amplidão do Céu mas simplesmente a determinadas regiões. A discussão é desnecessário, ou para melhor dizer, impossível, na região onde o Espírito toca o último grau (?) do seu desenvolvimento. Aí, a Verdade sacia toda a ânsia de saber, porque só aí brilha em toda a sua plenitude; é a região contemplativa, onde a alma criada parece confundir-se com a Força Criadora.
Sim! O último termo da viagem do espírito pelos espaços é
a absorção no seio de Deus, que em relação à Verdade é como mar do vosso planeta, em relação à água. Do mar sai toda a água que forma as nuvens e que banha a terra: ao mar volta outra vez, pelo seu pendor natural, como o filho que procura a mãe.
Assim da Divindade. Dela parte toda a Verdade que o Espírito anda procurando; a ela volta (como filho que procura a mãe) absorvendo-o no seu seio infinito».
Realcemos a hum
ildade com que César do Inso especula, ou mesmo coloca um ponto de interrogação, e saibamos nós aspirar mais ao Oceano (samudra) Divino de Amor e Verdade, por exemplo na Índia com Sri Ramakrishna tão vivenciado como Sat Chit Ananda, Ser- Verdade, Consciência e Felicidade, algo que tanto necessitamos nestes tempos de tanta manipulação, violência e opressão... 

Realcemos, para concluir, alguns aspectos ou psico-morfismos da Tradição Espiritual Portuguesa expostos por César do Inso (muita Luz e Amor para ele): aspiração à Divindade pelo amor devocional, a adoração e a contemplação; hesitação quanto à sobrevivência individual do espírito na eternidade ou fusão no seio da Divindade no término evolutivo; comunhão afectiva com os antepassados, grandes seres, mestres e anjos, no que outrora se designava como corpo místico da Humanidade ou da Igreja e hoje se pode  equiparar ao Campo de consciência, energia, informação que nos interliga, mais ou menos emaranhada e limpidamente. Que haja muita Luz e Amor nas nossas almas e ambientes e na Humanidade em geral!

Sem comentários: