NOTA
«Este livro é uma tentativa, em muitos pontos imperfeita, seguramente,
mas sempre sincera, para dar à poesia contemporânea a cor moral, a
feição espiritual da sociedade moderna, fazendo-a assim corresponder à
alta missão que foi sempre a da Poesia em todos os tempos, no Rig-Veda
ou nos Lusíadas, em Tirteu [poeta espartano] como em Rouget de L’Isle [o autor da Marselhesa] – isto é, a forma
mais pura daquelas partes soberanas da alma colectiva de uma época, a
crença e a aspiração. – Partindo desse princípio – a Poesia é a
confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade – o autor, na
rectidão imparcial da sua lógica, havia de necessariamente concluir que
esta outra afirmação – a Poesia moderna é a voz da Revolução – porque a
Revolução é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair
sobre a fonte fatídica do nosso século. Como do seu Deus dizia o
apóstolo antigo, in eo vivimus et sumus, podemos nós com mais razão
ainda afirmar do grande espírito de revolta da nossa idade – nele e por
ele é que somos, por ele e nele é que vivemos. – O ar que a nossa
sociedade respira, a atmosfera turva e agitada, mas vivificante, em que
vai penetrando dia a dia, não é já composta, não, de boas e pacíficas
crenças velhas, de resignação, de obediência, de fé sublime... e cega.
Outro é o ar! Abrem-se os olhos para ler as contradições dos santos,
dos venerandos, dos excelentes livros antigos. Estendem-se as mãos para
palpar, sob os vestidos de brocado dos bons ídolos doutrora, o pau de
que eram feitos... e o ferro também muitas vezes. A quem há dois
séculos fizesse, a metade que fosse, disto tudo, enforcavam-no sete
vezes os Reis, como a réu de lesa-majestade, e os Padres, como a ímpio e
sacrílego, queimavam-no sete vezes setenta vezes. Nós hoje fazemos
tudo isto, e preparamos nossos filhos para poderem fazer o dobro ou o triplo dentro de alguns anos – e temos a modesta humildade de
recusar o nome de revolucionários! e não queremos que nos chamem
revolucionários!
Isto é pasmoso – e pasmosamente curioso! Os nossos
Ministros de Estado fazem e dizem coisas por que ainda há cinquenta
anos seriam generosamente premiados com as masmorras ou a forca. Os
nossos Professores ensinam à mocidade as mais audaciosas máximas de
livre-exame e independência, o que lhes valeria no século passado uma
boa e bem ateada fogueira, convenientemente adornada de cruzes, imagens
e outros símbolos de tolerância clerical. Os nossos Jornalistas, esses
espantariam Danton e Desmoulins, se Desmoulins e Danton pudessem gozar
a inestimável vantagem de ouvir estes mancebos dissertando sobre os
direitos da palavra e a omnipotência da opinião... O Estado, a Igreja, o
Ensino, a Família, a Arte, a Prosperidade, tudo isto exala hoje um
fortum sulfuroso e infernal de heresia e revolução que sufoca – mas
tudo isto cora virginalmente de pejo, geme e se aflige com a
injustiça, se o não comparam pelo menos com os tempos seráficos de
Gregório VII e de Carlos Magno!
Que provam todas estas contradições, esta hipocrisia do
tempo, este maquiavelismo inconsciente da nossa sociedade, senão o
triunfo da Revolução que domina, penetra, arrasta os seus próprios
inimigos e até lhes fornece as mesmas armas com que cuidam feri-la de
morte nos seus combates grotescos de pigmeus?
Prova uma outra coisa
ainda, e mais grave, e tristíssima, porque envolve uma ruína moral. É a
desorganização, o esfacelamento espiritual de uma classe que foi
grande e viva enquanto soube conservar dentro de si a fé e o calor das
ideias revolucionárias e que, em menos de cinquenta anos, jaz caída por
toda a parte, vacilando à mercê de todos os ventos; e, aí mesmo onde
ainda triunfa, perdeu a coragem, a inteligência, a consciência do tempo,
de si e da situação actual da sociedade. Descreu das ideias que a
fizeram grande e forte; atraiçoou a causa por que fora heróica e nobre:
e para logo o espírito da vida a abandonou e a onda santa,
retirando-se, lhe deixou nua a sua praia. Ei-la aí está agora, sem abrigo entre as tormentas do passado e as do futuro, sem coragem em
face dos inimigos que surgem de cada lado, e – o que é pior – sem
inteligência, sem dignidade, ignorante e corrupta. Não há já mão que a
possa salvar. O seu nome é contradição. Contradição de origens e de
tendências. Contradição de desejos e de condições. Contradição de
palavras e de obras. Crê-se revolucionária, é-o pela vontade, mas, sem o
querer, estorcendo-se a cada passo, as suas acções são
revolucionárias! Com os olhos no passado, caminhando como quem recua, é
ela todavia quem abre as estradas por onde a sociedade, que em vão
tenta suster, se há-de precipitar para o mundo desconhecido do futuro. A
sua cobardia actual, a sua ambição egoísta, a sua corrupta avareza,
para tudo dizer, fazem dela uma coisa fatalmente em oposição com as
suas origens, com a situação que ela mesmo criou, com as grandes
tradições, enfim de um passado de ontem e que já hoje a aflige como um
remorso. Metade do corpo quer ir, forceja, precipita-se; mas a outra
metade, como sob a influência de um sortilégio mortal, recusa-se ao
menor movimento. São as forças contraditórias, desencadeadas pela
doença final, que se combatem já sobre esse miserável corpo votado à
morte! Daí a cegueira, a banalidade, o medo, a dilaceração interior que
caracterizam hoje a classe média – a sua condenação.
Quos Deus perdere vult prius dementat. [Quem Deus quer (ou tem) que perder, primeiro torna-o demente.]

Que os meus quase patrícios de Portugal se não aterrem!
Todas essas coisas anárquicas estão a cinquenta e a cem léguas das
nossas terras patriarcais e a mil ou duas mil das nossas não menos
patriarcais inteligências. Sobre outros tectos, sobre outras searas
pairam as nuvens minacíssimas da próxima tormenta! A terra emudece, o
ar solta suspiros misteriosos com o pressentimento da tempestade que se
avizinha! Mas sob os nossos tectos reina o contentamento dos simples;
e, se as nossas searas nos não recusam o pão quotidiano dos crentes,
que nos fazem a nós revoluções, democracias, progresso e leis da
história? O progresso e a história são alguma coisa de turvo de
vertiginoso de incompreensível. Para vivermos livres dos solavancos
horríveis do torvelinho social resolvemos nós o problema de um modo todo nosso e a que, ao
menos, se não negará originalidade – viver fora da história e do
progresso. Era para nós que, há já trezentos anos, Sancho Pança
inventava os seus provérbios. .............


Entretanto o tempo segue impassível o seu caminho e
arrasta-nos a todos com as nossas ilusões ou as nossas evidências, com
as esperanças, as conjecturas e os desejos, que são bóias com que nos
seguramos sobre o mar fundo e escuro que nos levanta e vai
arrebatando. Lá se verá então, no termo fatal dessa onda misteriosa, lá se verá de que banda estavam a razão, a franqueza e a
coragem, e de que banda a ignorância, a má-fé e a cobardia. Lá se
erguerá uma grande voz, dura e amarga para certos ouvidos, chamando a
todos, cada um pelo seu nome, para as recompensas e para as punições...
Todavia a velha sociedade desconjunta-se e, pelas fendas
da jangada rota, já se vê claramente a cor de onda que a mina por
de baixo e a gasta como um corrosivo violento. Essa cor é negra – mas
não é cor de morte. É cor de vida, pelo contrário. De vida para quem,
pelo coração, sabe apreciar o valor desta palavra Liberdade; para quem
mede pela altura de um desejo humano a grandeza da dívida de ventura que
os homens têm direito de exigir ao mundo; para quem, enfim, não
compreende amor de Deus e amor do Próximo imposto, escravo, fatal...
como se o amor pudesse ser, em vez de espontaneidade e livre atracção,
ódio e servidão. – Para os outros todos será cor de morte; mas não
serão já mortos esses tais desde a hora primeira do nascimento?
Falemos dos vivos. Os vivos não são os que levantam
ruidosamente o pó dessas estradas sob as rodas de seus carros opulentos.
Não são também os que falam e se apresentam ante os olhos sensuais da
turba envoltos nas dobras enganosas do manto de lantejoulas das frases
vagas mas brilhantes com que se captam os sentidos de quem não tem
razão nem sentimento. Não são ainda os sábios, profetizando do centro
de suas nebulosas, lançando, em meio das nuvens de palavra, os oráculos
de uma ciência sem fé e sem alma, vendida aos factos, à espera sempre dos acontecimentos, para se inspirar deles na
composição artificial de sistemas, que o Mundo aceita porque o
absolvem, mas que rejeita a Razão porque não são livres. Os vivos,
enfim, não são os que mais o parecem; os ruidosos, os activos que já de
longe se vêem e ouvem: como em tempo de epidemia não está a saúde no
homem que anda, gesticula e corre, encobrindo sob a agitação febril o
veneno do mal que em breve o fará cair extenuado. Tudo isso que por aí
tumultua, freme e enche o ar de ruídos, obedece à excitação da febre
precursora da morte. A vida não é o movimento desordenado: e nos gestos
deles não há harmonia nem ordem. Tudo isso é o gozo e a matéria: mas a
vida é a consciência e o espírito.
Espírito e consciência! eis aí o nome do futuro. Ao
presente (chame-se ele embora Igreja ou Estado, Ensino ou Direito,
Propriedade ou Indústria), ao presente cabem-lhe seguramente os
epítetos de grande, ruidoso, importante e ainda talvez de seguro. Ah!
Porque não havia ele também de merecer o nome de consciencioso e
espiritual? Poupar-se-iam assim à história algumas e bem amargas
tristezas que já lhe estão iminentes! Mas não podia ser. Não se serve
bem a César e a Cristo ao mesmo tempo. Ao pobre, ao deserdado dos bens
do mundo, que lhe deixaria então a Justiça eterna, se até os bens da
alma pudessem ser feudo exclusivo de ingratos opressores? Se até a flor
da verdade, chamada espírito, pudesse também servir para adornar a
coroa usurpada de embusteiros e tiranos? Órfãos, abandonados no grande
deserto social, ficou-lhes ao lado, só e invisível, mas eterna e
irresistível, a Justiça de uma causa que há-de triunfar porque é a causa
da razão e da verdade.
É nestes que reside a Consciência É nestes que habita o
Espírito. Escuros sim e confusos (porque de propósito lhes fazem a noite
em volta) mas lá estão no fundo, bem no fundo do coração dos
oprimidos, esses brilhantes de inestimável preço, que o futuro há-de
polir para a coroa imperial da rainha que se espera, a Liberdade dos
povos! E se o povo parece ignorar, na sua miséria extrema, o tesouro
que tem dentro; se descrê e – embrutecido Esaú – está a ponto de vender
esse morgado de Deus pelo prato de lentilhas que ironicamente lhe
oferece um irmão bárbaro e avarento – não se jubilem excessivamente com
isso os Jacobs das cortes, das sacristias e dos parlamentos! O
contrato odioso não se passa hoje, como outrora, em pleno deserto
arábico, onde a única testemunha que podia intervir, Jeová, tinha o
natural embaraço de ser cego e surdo. Hoje Jeová deixou enfim as
alturas e habita modestamente entre os homens, transformado em alguns
centenares de pequenos deuses bastantemente satisfatórios que vêem e
ouvem melhor do que se fossem deuses grandes. São esses que andam a
pregar ao povo o que o grande antecessor deles, o defunto Senhor dos
Exércitos, não consentiu jamais que Moisés revelasse aos filhos de
Israel = o direito do homem em face do seu semelhante: o direito do
homem em face da Natureza: o direito do homem em face de Deus. = São
esses a quem pertence o futuro – porque o número deles aumenta dia a
dia – porque do céu, que eles prometem, todos podem ver a escada,
solidamente construída de razão e de justiça – porque falam aos pobres,
porque os chamam a si; e os pobres quem os contar no mundo há-de
achá-los tão numerosos como as lágrimas que os ricos têm feito chorar –
porque, enfim, um instinto secreto adverte a todos de que a verdade
está na palavra daqueles homens, para cujo triunfo conspiram ainda os
seus mais ferozes inimigos. Estes é que são os apóstolos de um
Evangelho tão grande que pode conter no seio todos quantos têm pregado
ao norte e ao sul, os Cristos de todas as raças e de todas as cores.
Estes são, finalmente, a Igreja militante da Revolução e, como a Igreja
antiga dos Confessores, os únicos vivos no meio da multidão inumerável
dos que existem. O ponto são, o ponto sensível do corpo tão doente da
nossa sociedade é aquele só, porque o resto, inerte e adormecido, só
acorda um momento para uma vida fictícia com a excitação galvânica,
artificial do prazer ou da ambição. A consciência do homem, a
independência do espírito, a santidade do direito, isso é o que menos
importa a essa turba de especuladores que, desde a Praça do Comércio
até aos Parlamentos e aos Senados, se revolve vertiginosamente no chão
da pátria, como vermes sobre um cadáver, alimentando de putrefacção uma
vida votada a uma impureza incurável.

No meio disto, o que há aí de
humano, de animado, de vital, senão o instinto ardente, o sentimento profundo de dignidade espiritual que, reagindo contra tantas
misérias, dá por alvo aos desejos dos homens a máxima liberdade moral, a
independência da alma, a sua emancipação do jugo dos Dogmas enganosos –
em Política como em Religião, na Economia como na Moral?
Reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da
Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos
tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias (*Nota: Ateísmo social - anarquia individual - é a formula precisa e clara das escolas mais avançadas de França e Alemanha). E escusado citar: Proudhon: a Justiça na Revolução e na Igreja; o Princípio Federativo; Criação da ordem na humanidade, a revolução social e o golpe de Estado.; etc., etc. Quinet: Génio das Religiões, Cristianismo e Revolução Francesa, etc., etc. Renan: Estudos Religiosos; Ensaios de Crítica. Michelet: o Povo; a Reforma; a Renascença, Bíblia da Humanidade, etc. Dolfus: Cartas Filosóficas, Revelação e Reveladores; etc. Taine: Críticas. Littré: Palavras de Filosofia positiva; Conservação, Revolução e Positivismo; etc. - e os alemães, H. Heine: da Alemanha; Lutece; a França. B. Bauer: Críticas. Feuerbach, a Religião; Essência do Cristianismo. Dr. Bucher: Força e Matéria.) – é este o
mais alto desejo, a aspiração mais santa desta sociedade tumultuosa que
uma força irresistível vai arrastando, ainda contra vontade, em
demanda do mistério tremendo do seu futuro.
Esta voz, se é a mais alta, deve também ser a mais
poética. A poesia que quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu
tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária. Que
importa que a palavra não pareça poética às vestais literárias [António Feliciano Castilho] do culto
da arte pela arte? No ruído espantoso do desabar dos Impérios e das
Religiões há ainda uma harmonia grave e profunda para quem a escutar
com a alma penetrada do terror santo deste mistério que é o destino das
Sociedades!
Está dada a razão deste livro.
Coimbra - Julho de 1865.»
Tentemos cogitar e assimilar as grandes verdades intuídas e deduzidas por Antero de Quental e tão bem expostas, com grande entusiasmo revolucionário e idealismo, bem numa linha que Tolstoi desenvolverá também, mas que infelizmente vemos como foi impedida e corrompida em quase toda a parte, entrando-se nesta terceira década do século XXI cada vez mais submetidos a novas formas de censura e de tiranias...
E procuremos meditar e sentir, vivenciar e aprofundar mais o fecundo mantra anteriano, até hoje talvez por raríssimos descoberto e utilizado: "A vida é a consciência e o espírito"....
Votos de boas práticas de justiça e sobriedade na vida, e amorosas e meditativas, em sintonia com o ardor juvenil e perene anteriano, externa e internamente...