domingo, 4 de abril de 2021

Antero de Quental, Cristo e Maomé, ou a unidade da religiões espirituais no céu interior da Verdade.

Nas Odes Modernas, dedicadas ao seu amigo Germano Vieira Meireles e publicadas na Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1865, quando Antero de Quental tinha apenas 23 anos e se encontrava na sua fase mais ardente e revolucionária, há bastantes poemas consagrados à religião e mais particularmente ao Cristianismo, frequentemente críticas seja a doutrinas e concepções (tal a de Jehova, a quem chama mesmo o "defunto Senhor dos Exércitos"),  seja a ritos, costumes e privilégios da Igreja.  Entre os vários poemas valiosas duas quadras simples, sem título nem data, mostram-nos Antero a procurar encontrar a solução para os conflitos das religiões, apelando à Verdade que elas têm de conter, seja nos seus aspectos mais rudes e pragmáticos seja nos mais idealistas e abnegados e, embora realçando certos aspectos delas  bons ou menos bons, intui que havendo um mesmo céu atmosférico e provavelmente um mesmo céu espiritual divino, só a este poderemos chegar se caminharmos na busca da Verdade, que está tanto no real, na realidade quotidiana e factual, como no ideal e no idealismo ideológico, e em unidade fraterna ou, numa linguagem actual, em diálogo ecuménico de busca, discernimento e comunhão da Verdade, a que podemos acrescentar ou desdobrar em Bem e Amor...

                                

Talvez possamos acrescentar (tanto mais que não existe na web) às duas quadras (com sublinhados meus), a carta escrita  em Agosto de 1865 quando envia precisamente as Odes Modernas a João de Deus, poeta bem mais lírico e cristão, mas seu grande e indefectível amigo:
            «Meu João
Sei que te nã
o podem agradar as ideias por que este livro conclui! Ofereço-te todavia sem receio, porque tenho fé que não podes senão aprovar os sentimentos que o inspiram e são como o ponto de partida, a base moral das conclusões da inteligência. É uma voz  sincera que pede justiça e verdade; vista assim a obra é aceitável para todos os crentes de todas as religiões, contanto que sejam religiões espirituais. O resto, a maneira por que entendo que a verdade e a justiça se devem realizar, isso, se for falso, é um erro de lógica, não de vontade.» 

Nesta carta vemos Antero tanto defendendo os seus sentimentos porque estão baseados nos valores de justiça, razão, verdade, que são a base de todas as religiões  espirituais, como a aspiração a viver de acordo com eles, trabalhando-os e confirmando-os numa prática de trabalho  pelo Bem  impessoal (ou divino),  acima do ego e da personalidade. 

Oiçamos então Antero de Quental:

«Uns são filhos de Cristo, e os outros de Mafoma:

Uns dão culto a Jehová e os outros a Baal:

Uns o altar do Real ungem com sangue quente:

Outros queimam o incenso às aras do ideal..


Mas se há um mesmo céu, que os cobre a todos eles,

Hão de todos, também, achar a sua unidade...

Unidos Mahomet lascivo e o Cristo pálido...

Nem Ideal nem Real, mas - de ambos - a Verdade.»


Anote-se quando à localização do Céu, que acolhe e une as religiões e perpassa os seres, que anos mais tarde, em 1871, no poema a Ideia, dedicado a Camilo Castelo Branco, Antero de Quental posiciona-se já mais claramente e magistralmente na interioridade, no reino dos céus ou de Deus que está dentro de nós:   

«Lá! mas aonde é ? Aonde? - Espera,
Coração indomado! O céu, que anseia
A alma fiel, o céu, o céu da Ideia,
Em vão o buscas nessa imensa esfera! 


O espaço é mudo - a imensidade austera 
Debalde noite e dia se incendeia…
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna-primavera

O Paraíso e o templo da Verdade,
Ó mundos, astros, sóis, constelações!
Nenhum de vós o tem na imensidade…

A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
Só se revela aos homens e às nações
No céu incorruptível da Consciência!»

Saibamos tentar entrar perseverantemente no tão inacessível céu mais puro ou íntimo da consciência, no fundo ou na prática em estados de alma mais iluminados... 

Fiat Lux, por Bô Yin Râ.

Sem comentários: