Hipólito Raposo (1885-1953) foi um homem da serra da Gardunha (nascido na vila de S. Vicente da Beira), um beirão rijo e sincero, que desde cedo manifestou tanto grande capacidade de estudo e inteligência como corajosa fidelidade aos seus ideais, o que ao longo da vida o levou aos cárceres e desterros. Professor, advogado, jornalista, foi um monárquico, integralista e democrata pelo que acabou por estar quase sempre do lado dos derrotados ou perseguidos mas a sua vida foi fecunda deixando descendência, amizades, exemplos, lembranças e valiosas obras. Por exemplo, uma que se poderia reeditar, de 1917, Outro Mundo. Lembranças da Terra e dos Homens, onde presta uma bela homenagem às suas raízes da montanha sagrada da Gardunha...
Recentemente, catalogando o arquivo de Alberto Monsaraz, seu íntimo amigo, pude aperceber-se por cartas e escritos da grande sensibilidade, integridade e coragem de Hipólito Raposo e passando-me há dias pelas mãos a sua 1ª obra, Coimbra Doutora, 1910, com 25 anos mas já tão bem estruturada e investigada que resolvi homenageá-lo a ele e a Antero de Quental, pois inevitavelmente escrevendo (e enquanto estudava) uma história da Coimbra universitária e cultural (que bem poderia ser reeditada), algumas páginas dedicaria à geração coimbrã de Antero, e as suas aspirações e lutas, bem como às peripécias entre governo, reitor, professores e alunos.
Oiçamos então a visão de Hipólito Raposo, quando estudante de Direito, sobre os que o antecederam, na Coimbra Doutora, impressa em Coimbra em 1910, ainda em tempo da Monarquia, com prefácio bem contextualizante de Júlio Dantas, grande amigo de Macedo Papança (e do seu filho Alberto, com centenas de cartas trocadas), 1º conde de Monsaraz, a quem aliás Hipólito dedica a obra, e com os capítulos dispostos cronologicamente: Geerall Studo, (D. Diniz e a fundação), Conquista & Navegaçã, (o ambiente do séc. XV e começo do XVI), Athenas esse credimus (excelente descrição da vida no esplendor de vida livre e pitoresca da cidade universitário no séc. XVI, «quando Camões escrevia para um dessas festas o Auto dos Emfatriões e coadjuvavam-no os seus amigos e companheiros, Jorge Ferreira de Vasconcelos e o doutor António Ferreira.»), Apagada & vil tristeza (crítica aos jesuítas, à Inquisição, à censura e perseguição a Damião de Goes, a André de Resende e outros), O Marquês (restauração de estudos, com os Novos Estatutos), e finalmente Liberdade e Amor (o séc. XIX, a luta pela modernização e europeização, a geração de Antero) e Cemitério de Saudades, no qual conclui com uma nota de certa tristeza pelo apagamento de muito do tradicional conimbricense: «O rio não há quem o cante, espavoridas, desgrenhadas, fugiram as Mundágides, no dia em que o comboio passou a rir em gargalhadas de ferro fundido. Para a banda das Lágrimas, já o dedo hesita em apontar a fonte que vira o martírio da linda Ignês, cuja lenda tristes amores não conseguiu enternecer a seca erudição dos arqueólogos.»
A obra contém ainda no apêndice quatro valiosas Notas, onde podemos constatar que Hipólito Raposo não ocupava o seu tempo só no estudo dacjurisprudência mas pesquisava nos manuscritos da vetusta e bela biblioteca joanina, donde transcreve alguns documentos bem valiosos, tal o até então poema inédito de Simeão Torresão Coelho, sobre participação dos estudantes nas guerras da Restauração.
Oiçamos então do capítulo Liberdade e Amor, após as páginas iniciais dedicadas à época inicial do liberalismo e às lutas entre estudantes e habitantes, os futricas, culminadas em 1854 com a Tomarada, o ambiente das décadas de 60-70, quando após a publicação das Odes Modernas de Antero e a crítica de Castilho rebentou a Questão Coimbrã (1865), que Hipólito refere suavemente: «A vida escolar era uma sequência de cinco anos de formatura em ódio aos códigos e medo ao lente, sem manifestações de vitalidade ou força, até que o núcleo intelectual de que sairia a escola coimbrã, reagindo contra velhas teocracias e assimilando as novas correntes filosóficas e estéticas, alargou os horizontes do pensamento.
Liam-se com avidez Strauss, Hegel e Müller, entrava o espírito crítico com Renan e Michelet e as ideias socialistas de Fourier e Proudhon.
O ensino era atrasado, a voz dos mestres, parecia vir da distância dum século – alheios todos aos estudos de economia e religião e à política europeia que tão vivamente interessava os espíritos moços.
Sentia-se demolir o passado, o curso da Universidade era uma penitência a cumprir para entrar decentemente na vida, ouvindo ronronar longas citações latinas de fradescos prelectores que punham à prova a paciência daqueles iconoclastas que já riam da missa ao Espírito Santo.
A Universidade, nublada de fórmulas e preconceitos, não distinguia o clarão de largo idealismo que seduzia tantos espíritos de poetas.
«O ar de Coimbra, de noite, andava todo fremente de versos. Por entre os ramos de choupos mal se via com a névoa das nossas quimeras...» [Eça de Queiroz, In Memoriam de Antero de Quental]
A academia de Coimbra redimia o país e fazia-o comungar no espírito moderno, quando numa ou noutra cátedra apenas, se começava a defender, quase a medo, a filosofia do patriarca Augusto Comte.
O Teatro Académico era a escola de retórica. Nele se fizeram brilhantes estreias, prenunciadoras de triunfos parlamentares e forenses.
Lá se representavam dramas e comédias, escritos em três dias, dentro do quarto, ali se aplaudiam grandes notabilidades cénicas e se reuniram as assembleias gerais, abrasadas de cólera.
Generosos até à audácia, insubmissos até ao sacrifício.
Vieira de Castro, rubro de indignação, erguia-se sobre um banco na sala dos Capelos e invectiva ardorosamente a injustiça de um júri.
Para resistir aos rigores disciplinares do reitor Sousa Pinto que tornou obrigatório o uso da volta de padre, meia preta e calção, formou-se a Sociedade do Raio [final de 1860, líderes José Sampaio e Antero] que reunia alta noite, na treva dos pinheirais, como sinistros conspiradores.
A fúria formalista do prelado chegou ao ponto de obrigar a converter a batina na antiga loba, abotoada atrás e riscava dos cursos por um ou mais anos, o estudante de quem tivesse simples denúncias.
Na festa da distribuição de prémios [na sala dos Capelos, a 8-XII-1862], mal ele começou a falar, a academia voltou-lhe as costas, saindo em massa para o pátio.
Antero de Quental, luminosa figura de rapaz, que uma geração adorava, redige um manifesto ao país [Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País] que por intermédio dos jornais apreciava injustamente as razões e os intuitos da rebelião, e o reitor foi demitido.
Pouco tempo depois, na primavera de 64, a Academia reunia-se para solicitar da graça régia a isenção da última prova pública que o estudante dá no finalizar do ano.
Alegavam a velha tradição, o exemplo da rainha constitucional em 1838, que dispensara os actos no ano do nascimento do príncipe herdeiro, e acrescentavam lamurientemente:«Uma prece ao trono nunca ficou em silêncio. Não é o perdão que pedimos, aqui não há réu. Pedimos graça: voar depressa ao centro da família, para juntos orarmos Deus pela dilatação das vidas do rei e da rainha de Portugal; para o céu deixar cair orvalho benéfico sobre a existência tão cara e tão necessária do príncipe D. Carlos.»
A representação foi enviada ao doutor Vicente Ferrer, par do reino e reitor, que prometeu interessar-se pelo bom êxito dela perante o chefe do governo, duque de Loulé.
Em poucos dias era expedida uma portaria, negando o perdão do acto e admoestando os suplicantes com razões sensatas, cujo rigor de forma deu pretexto à irritação dos estudantes que provocaram tumultos, queimando à Porta Férrea um boneco de palha, representando o Rolim, o duque, de cujo apelido a questão se chamou Rolinada [Abril de 1864].
Partiram em seguida para o Porto em número superior a trezentos, deixando as aulas quase abandonadas e produzindo nas escolas daquela cidade um grande alvoroço.
O vice-rei por um edital, convidava os rapazes ao regresso, em termos paternais, os habitantes de Coimbra, lesados nos seus interesses, intervinham no conflito, levando uma representação à Câmara dos deputados a pedir medidas conciliatórias.
No parlamento onde Tomás Ribeiro defendia com ardor a representação e a causa dos estudantes, houve longas e agitadas discussões, até que os rebeldes, vendo perdidas as últimas esperanças, voltaram do Porto a recomeçar as frequências, com promessas de amnistia para todos os delitos derivados do movimento.
A questão degenerou do parlamento à imprensa, servindo especulações políticas, pugnou-se pela faculdade de concederem graus académicos as escolas médicas, pediu-se a transferência da universidade para Lisboa, e foi então que começaram os sustos para a população de Coimbra, renovados ao menor motivo.
Os acontecimentos produzidos na ocasião dos actos, violências e tentativas de incêndio às casas de alguns professores que levaram um conselho a suspender os actos, elucidam com alguma clareza a ingenuidade da primeira representação (...)
(...) O centenário de Camões que parece ter acordado dum sono de morte a nação portuguesa, ao ouvir gritar o nome do maior dos seus filhos - teve no seio da Academia intensa repercussão.
Em 1880 fora o notável sarau da Universidade e do Instituto, no ano seguinte era a festa dos estudantes, ruidosa, alta e patriótica cuja memória se guarda em Coimbra inconfundivelmente.
A agitação de espírito que tais festejos despertaram, o grande cortejo de apoteose antes da inauguração do monumento, o entusiasmo dessa última geração que deixou de si alguma coisa útil, fizeram passar um frémito vivificador no corpo do velho Portugal.
A geração do ultimatum ainda sacudiu pelas ruas de Coimbra o seu ódio sincero contra a covardia duma nação poderosa [Inglaterra], mas o país mergulhava tristemente na fatalidade histórica, não lhe escutou os gritos, nem as nobres palavras dum ministro conseguiram erguê-lo para a desafronta, porque a resistência seria uma loucura.»
Pouco tempo depois, na primavera de 64, a Academia reunia-se para solicitar da graça régia a isenção da última prova pública que o estudante dá no finalizar do ano.
Alegavam a velha tradição, o exemplo da rainha constitucional em 1838, que dispensara os actos no ano do nascimento do príncipe herdeiro, e acrescentavam lamurientemente:«Uma prece ao trono nunca ficou em silêncio. Não é o perdão que pedimos, aqui não há réu. Pedimos graça: voar depressa ao centro da família, para juntos orarmos Deus pela dilatação das vidas do rei e da rainha de Portugal; para o céu deixar cair orvalho benéfico sobre a existência tão cara e tão necessária do príncipe D. Carlos.»
A representação foi enviada ao doutor Vicente Ferrer, par do reino e reitor, que prometeu interessar-se pelo bom êxito dela perante o chefe do governo, duque de Loulé.
Em poucos dias era expedida uma portaria, negando o perdão do acto e admoestando os suplicantes com razões sensatas, cujo rigor de forma deu pretexto à irritação dos estudantes que provocaram tumultos, queimando à Porta Férrea um boneco de palha, representando o Rolim, o duque, de cujo apelido a questão se chamou Rolinada [Abril de 1864].
Partiram em seguida para o Porto em número superior a trezentos, deixando as aulas quase abandonadas e produzindo nas escolas daquela cidade um grande alvoroço.
O vice-rei por um edital, convidava os rapazes ao regresso, em termos paternais, os habitantes de Coimbra, lesados nos seus interesses, intervinham no conflito, levando uma representação à Câmara dos deputados a pedir medidas conciliatórias.
No parlamento onde Tomás Ribeiro defendia com ardor a representação e a causa dos estudantes, houve longas e agitadas discussões, até que os rebeldes, vendo perdidas as últimas esperanças, voltaram do Porto a recomeçar as frequências, com promessas de amnistia para todos os delitos derivados do movimento.
A questão degenerou do parlamento à imprensa, servindo especulações políticas, pugnou-se pela faculdade de concederem graus académicos as escolas médicas, pediu-se a transferência da universidade para Lisboa, e foi então que começaram os sustos para a população de Coimbra, renovados ao menor motivo.
Os acontecimentos produzidos na ocasião dos actos, violências e tentativas de incêndio às casas de alguns professores que levaram um conselho a suspender os actos, elucidam com alguma clareza a ingenuidade da primeira representação (...)
(...) O centenário de Camões que parece ter acordado dum sono de morte a nação portuguesa, ao ouvir gritar o nome do maior dos seus filhos - teve no seio da Academia intensa repercussão.
Em 1880 fora o notável sarau da Universidade e do Instituto, no ano seguinte era a festa dos estudantes, ruidosa, alta e patriótica cuja memória se guarda em Coimbra inconfundivelmente.
A agitação de espírito que tais festejos despertaram, o grande cortejo de apoteose antes da inauguração do monumento, o entusiasmo dessa última geração que deixou de si alguma coisa útil, fizeram passar um frémito vivificador no corpo do velho Portugal.
A geração do ultimatum ainda sacudiu pelas ruas de Coimbra o seu ódio sincero contra a covardia duma nação poderosa [Inglaterra], mas o país mergulhava tristemente na fatalidade histórica, não lhe escutou os gritos, nem as nobres palavras dum ministro conseguiram erguê-lo para a desafronta, porque a resistência seria uma loucura.»
Anote-se que esta desafronta algo louca foi assumida por Hipólito Raposo quando entrou e lutou em 1919 pela restauração da Monarquia, em especial no Norte, embora em Monsanto, Lisboa, às ordens do corajoso comandante Paiva Couceiro, os feridos fossem os seus íntimos companheiros Luís de Almeida Braga e Alberto de Monsaraz. E que em 1890, a liderança no Norte, no Porto, da reacção ao Ultimatum (um dos factores que contribuíram para o descrédito e a queda da Monarquia) foi, a pedido dos estudantes, assumida por Antero de Quental, dirigindo a efémera Liga Patriótica do Norte, em sintonia com o que se passava nas ruas de Coimbra... Possamos nós manter a chama viva da cavalaria da "Liberdade e Amor" na qual e pela qual tantos lutaram e se imortalizaram..
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