sexta-feira, 8 de maio de 2020

"Sadhana", de Rabindranath Tagore. Transcrição da tradução e vídeo da leitura comentada de excertos.

Sadhana é sem dúvida uma das obras primas de Rabindranath Tagore, talvez mesmo a mais valiosa do ponto de vista da espiritualidade expressa, face à implícita presente em toda a sua obra dada a sua sensibilidade anímico-espiritual imensa. 
Sadhana, palavra sânscrita que significa conjunto de práticas e modo de vida assumido no caminho do conhecimento e da religação (Yoga), foi dada à luz em 1913, quando Rabindranath Tagore (1861-1941) já atravessara, pela morte da sua mulher e filhos, o seu tremendo rasgar de alma, e continua hoje bastante actual na sua abordagem de oito perenes questões do ser humano, assim intituladas nos capítulos em que está dividida: «I - A relação do indivíduo com o Universo. II - Consciência da Alma. III - O problema do mal. IV- O problema do Eu. V - Realização no Amor. VI - Realização na Acção. VII - Realização da Beleza. VIII - A Realização do Infinito.» E podemos pensar que seria muito bom se todos fizéssemos de quando em quando uma reflexão, ou mesmo uma redacção, acerca destes temas...
Pelo título, Sadhana, e pelos temas tratados, vemos que os oito capítulos da obra nos fazem circular por entre a espiritualidade indiana em geral e até pelos quatro caminhos, ou margas, típicos da espiritualidade indiana: Raja Yoga, o do conhecimento e o auto-conhecimento; Bhakti, o do amor, devoção, compaixão; Karma, o da acção correcta ou boa; e Jnana a percepção ou visão do divino, do infinito, no universo, na vida, em nós, numa unidade de uma só consciência omnipresente.
Embora haja uma tradução recente brasileira, Sadhana é uma obra que merecia ser traduzida e publicada em Portugal. Traduzimos neste artigo alguns excertos substanciais do 1º capítulo, e comentamo-los um pouco, nestes dias das comemorações do seu 159 aniversário de nascimento. E posteriormente gravámos uma parte valiosa do capítulo , que contudo não chegou ao fim, pois a bateria findou...
Logo no começo do 1º capítulo, depois de contrastar a civilização grega nascida nas cidades e entre muros com a indiana nascida nas florestas e aberta à imensidade da vida, deduz que de tal nasceu uma tendência para se possuir e defender no caso grego, enquanto que na Índia o que se desenvolve é «um objectivo não de adquirir mas de realizar, para alargar a sua consciência crescendo com, e crescendo para, os seus ambientes. Ele [o povo indiano] sentiu que a verdade é omnicompreensiva, que não há isolamento absoluto na existência, e que a única maneira de atingir a verdade é através da interpenetração do nosso ser com todos os objectos. Realizar esta harmonia entre o espírito humano e o espírito do mundo foi o esforço dos sábios habitantes das florestas da antiga Índia.»
Este esforço concretizou-se e tornou-se a sadhana, um tipo de vida com as suas práticas, a qual procura abrir a ligação consciente do nosso  interior tanto consigo mesmo na sua pluridimensionalidade como com o campo unificado de infinita energia e informação que é o Universo e a sua Fonte Divina.
De realçar a visão de Tagore bem abrangente e panteísta de que o caminho, para se alcançar a verdade, é o da interpenetração  do nosso ser com tudo, ou seja, o estabelecermos pontes de comunicação, simpatia e comunhão. 
"O caminho faz-se caminhando", foi dito, e tal significa que o caminhar ou avançar já é em parte manifestar o que se quer atingir e que devemos sentir a harmonia e amor com o que nos rodeia, e aceitar o que vamos recebendo, firmes nos nossos pequenos propósitos que estão em harmonia «com o propósito que opera através da natureza», o Sanatha Dharma, a Ordem cósmica.
«Para a Índia a unidade fundamental da criação não foi apenas uma especulação filosófica e o seu objectivo de vida era realizar esta grande harmonia entre sentir e agir. Com a meditação e o serviço, com uma regulação da sua vida, ela cultivou de tal maneira a sua consciência que tudo tinha um significado espiritual para ela».
 Rabindranath Tagore realça que esta percepção da unidade é algo vivido e sentido e desenvolvido por uma vida justa e espiritual, destacando a tradicional divisão da meditação ou via contemplativa e o serviço desinteressado ou via activa, numa interacção com o que nos rodeia não limitada ao que é registado como aparência sensorial mas bem mais vasta e subtil.. 
Assim «o ser que tem os seus olhos espirituais abertos sabe que a verdade última acerca da terra e da água  está na nossa apreensão da vontade eterna que opera no tempo e  toma forma nas forças que nós realizamos sob esses aspectos. Isto não é um mero conhecimento, como a ciência é, mas uma percepção da alma pela alma. Isto não nos conduz ao poder, como o conhecimento faz, mas dá-nos alegria, a qual é o resultado da união de coisas afins»
Realça então Tagore que este desabrochar da alma se faz pela abertura dos sentidos espirituais, os quais fazem-nos sentir a comunhão com a vontade divina ou cósmica, que podemos  denominar não só Dharma como também Amor, e simultaneamente uma felicidade (Ananda) grande na união ou comunhão com os objectos ou seres próximos ou afins. 
É muito valioso este discernimento de Rabindranath Tagore que a verdadeira alegria não vem de se possuir ou se conhecer superficialmente mas sim da união dos seres, da sua comunhão nos seus níveis subtis e dentro do propósito divino que perpassa o Cosmos.
                                       
Sob esta comunhão mais subtil ele explicita que «quem se limita pelo conhecimento científico nunca compreenderá o que o ser com visão espiritual encontra nos fenómenos naturais: A água não limpa apenas os seus membros, mas purifica o seu coração; pois toca a sua alma. A terra não sustenta ou apoia o corpo apenas, mas alegra a sua mente, pois o seu contacto é mais do que um contacto físico, é uma presença viva». 
Poderíamos pensar que Rabindranath Tagore iria falar ou apontar para os espíritos da natureza, os devas, mas não é o caso, descrevendo mais a sensibilidade da alma com os elementos da natureza. A visão espiritual que ele valoriza e desenvolve é mais profunda e elevada, na linha ou tradição da darshana ou filosofia Vedanta: «Quando o ser humano encontra o espírito eterno em todos os objectos, então torna-se emancipado, pois descobre então o significado ou sentido mais completo do mundo em que nasceu; então ele encontra-se na perfeita verdade, e a sua harmonia com o todo está estabelecida».
                                         
Mas logo em seguida
Rabindranath Tagore apela a um despertar para o mundo não apenas na realização da Unidade Divina, mas também de interacção e interpenetração: 
«Na Índia recomenda-se que as pessoas despertem plenamente para o facto de que estão numa relação estreita com o que as rodeia, corpo e alma, e que devem saudar o sol nascente, a água fluindo, a terra frutífera, como manifestações da mesma verdade que os sustém num abraço. E assim o texto da nossa meditação diária é a Gayatri, uma oração que é considerada o supremo resumo ou epítome dos Vedas. Através dela nós tentamos realizar a unidade essencial do mundo com a alma consciente do ser humano. Aprendemos a perceber ou discernir a unidade mantida pelo Eterno Espírito Um, cujo poder cria a terra, o céu, as estrelas e ao mesmo tempo irradia as nossas mentes com a luz de uma consciência que move e existe numa continuidade não partida com o mundo exterior». 
Eis-nos com algumas indicações sobre a sadhana, sobre as práticas  harmonizadoras e espiritualizantes: ver o nascer do Sol, saudar o Divino astro, sentir com amor a força da fluidez da água, dardejarmos, meditarmos, assimilarmos, sintonizarmos e sermos um com os conteúdos de alguma  oração ou mantra, tal a Gayatri: Om Bhur Bhuva Swaha Tat Savitur Varenyam, Bhargo Devasya Dhimahi Dhiyo Yonah Prachodaya. Uma tradução possível, a minha de agora: "Na vibração de Deus, saudações à terra, ao mundo subtil e ao celestial e àquela Divindade solar excelente. Possa a sua luz gloriosa estimular e abençoar as nossas meditações."
Sendo talvez das mais fortes e misteriosas questões que nos desafiam dia e noite, a da relação entre a mente cerebral, a consciência, a luz e o espírito,  bem como a do nosso ser individual com o Universal, Rabindranath Tagore afirma que o «Espírito irradia as nossas mentes com a luz de uma consciência que move e existe numa continuidade ininterrupta com o mundo», ou seja o Espírito, a Divindade, emana, irradia uma consciência luminosa que vai impactar, penetrar, influenciar as nossas mentes. Esta consciência luminosa, este Eu sou divino é omnipresente e assim o que sentimos em nós é para sentirmos reconhecermos e amarmos nos outros, a verdade.
 Em seguida Rabindranath Tagore desenvolve a ideia que na Índia o entendimento da superioridade do homem na Terra ou na criação não era o poder de possuir ou dominar mas sim o poder de estar em união, sem dúvida uma clarificação muito bela e útil, pois as pessoas, apesar do mote a união faz força, esquecem que devemos trabalhar sacrificando ou vencendo o nosso egoísmo e liberdade para, em união, com os outros, ajudá-los ou impulioná-los.
É também valiosa e original a explicação que Rabindranath Tagore dá para a escolha de certos locais como santuários e metas de peregrinação, de certo modo em sintonia com o Shinto japonês que ele apreciará em 1916, quando visita o Japão (receando já porém o nacionalismo), pois o Shinto é também uma religião muito sensível à natureza e aos espíritos ou deuses, os Kami, que a habitam. Diz-nos assim: «A Índia escolhe os seus locais de peregrinação onde quer que haja na natureza  algum tipo especial de grandeza e beleza, de modo que a mente humana possa sair do mundo das estreitas necessidades e realizar o seu lugar no Infinito.»
Estampa trazida de uma peregrinação a Kedarnath, uma das fontes do santo Ganges.
 Para Rabindranath Tagore os locais sagrados seriam os mais indicados para os seres saírem dos seus limitados horizontes e expandirem-se na imensidade e assim sentirem ou realizarem algo da infinidade e unidade do Espírito divino.
E continuando a explicitar como a Índia desenvolveu o poder da união, faz logo a seguir uma afirmação também muito original: «Esta foi a razão porque na Índia todo um povo que outrora era de comedores de carne abandonou a ingestão de comida animal para cultivar o sentimento de simpatia universal pela vida, um acontecimento único na história da humanidade.»
Foi o imperador máuria Asoka (304-232 A. C.) que, após uma guerra violenta e aderindo ao budismo, promulgou o princípio yogi da ahimsa, não-violência, em relação à mortandade de animais na alimentação e nos sacrifícios, e Rabindranath Tagore vê tal como uma decisão consciente de manter a simpatia viva com todos os seres vivos. 
  «Os escolhidos para representarem o ser humano na Índia foram os rishis. Quem são os rishis: Aqueles que tendo atingido o conhecimento da alma suprema foram enchidos de sabedoria, e que tendo-a encontrada em união com as suas almas estavam em harmonia perfeita com o eu íntimo; tendo-o realizado no coração, libertaram-se de todos os desejos egoístas e vivenciando a alma suprema em todas as actividades do mundo, atingiram a quietude. Os rishis foram os que tendo atingido o supremo Deus (purusa) por todos os lados encontraram uma paz duradoura, tornaram-se unidos com o Todo, entraram na vida do Universo».
Om sri Ramakrishna namah! Um rishi e yogi moderno.
 Os parágrafos seguintes, um deles muito valioso sobre o que ele sentia ser o Amor, bem como as críticas a uma compreensão superficial ou limitadora da espiritualidade indiana, foram lidos e comentados, como pode ouvir no vídeo final.  Mesmo assim traduzo aqui a parte melhor: «o verdadeiro espírito do ser humano é o espírito de compreensão. Essencialmente o ser humano não é um escravo nem de si nem do mundo; mas é um amante. A sua liberdade e realização plena está no amor, que não é senão outro nome para a compreensão perfeita. Por este poder de compreensão, esta permeação do seu ser, ele é unido com o omnipenetrante Espírito, que é também a respiração da sua alma»....
Das quatro pequenas páginas que faltavam para terminar a leitura do capítulo gravado, transcrevo alguns parágrafos onde Rabindranath Tagore acentua a sua forte vivência amorosa da Unidade da vida e a partilha dela, bem fundamentada com a tradição espiritual indiana.
«O Infinito na Índia não era uma frágil não-entidade, vazia de todo o conteúdo. Os rishis da Índia afirmaram enfaticamente,
"Conhecê-lo nesta vida é ser verdadeiro, não o conhecer nesta vida é a desolação da morte". Como conhecê-lo então: "Realizando-o em cada um e em todos". (Bhuteshu bhuteshu vichintya). Não só na natureza, mas na família, na sociedade, no Estado, e quanto mais realizarmos esta consciência do mundo melhor para nós. Se falharmos na realização disto estamos a virar as nossas faces para a destruição».
Algo que é bem difícil nestes momentos em que sociedades e estados estão tão apanhadas por forças desinformadoras, manipuladoras, opressivas, mas que é certamente um ideal, uma linha de força, para des-desconfiarmos e des-confinarmos....
Reconhece e bem desafiantemente Rabindranath Tagore que os antigos videntes (rishis) sentiam na profundidade serena das suas mentes que a mesma energia, que vibra e passa nas inumeráveis formas do mundo, manifesta-se a si própria no nosso ser interior como consciência; e não há uma quebra de unidade», prosseguindo com a visão que mesmo com a morte não há quebra dessa continuidade consciencial: o ser humano é imortal...
E termina o capítulo assim, começando com a sua tradução de dois versos das Upanishads: «Tudo brotou da vida imortal, e vibra com vida» (Yadihna kincha prana ejati nihsritam), pois a «Vida é imensa» (prano virat).
                                                   
Esta é a nobre herança dos nossos antepassados, esperando por ser reclamada por nós como nossa, este ideal de suprema liberdade de consciência. Não é apenas intelectual ou emocional, tem uma base ética, e deve ser traduzida em acção. Na Upanishad diz-se: "O supremo ser é omnipresente, e portanto é a divindade inata em todos". (Sarvavyapi sa bhagavan tasmat sarvagatah çivah). Estar verdadeiramente unido em conhecimento, amor e serviço com todos os seres, e assim realizar o seu próprio eu na Divindade omnipresente é a essência da bondade, e esta é a nota chave dos ensinamentos das Upanishads: "Prano virat, a Vida é imensa".»
 
Aum Bhagavan namah, Om sri Gurave namah. Saudações à divindade amada, saudações ao mestre.
Saudações à Divindade amada. Saudações ao mestre,  e em especial a Rabindranath Tagore... Que saibamos aprofundar a sabedora milenar da Índia por ele transmitida... Possam-nos inspirar e iluminar... Aum...
                      

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Rabindranath Tagore, "Crise na Civilização". Último discurso. Leitura comentada, com vídeo.

A última conferência ou satsanga de Rabindranath Tagore, já com 80 anos e a três meses da sua partida da Terra é valiosa e pouco conhecida, e tendo um exemplar dela, trazido da sua Universidade Livre, em Bengala, em 1995,  resolvemos lê-la traduzindo-a e gravando. Encontra no fim o vídeo, com alguns comentários, realçando a sua actualidade. 
 Estávamos em Abril de 1941, quando a 2ª Grande Guerra dilacerava inúmeros povos. Para um humanista e místico,  artista e pedagogo, e bem documentado viajante universal, que vivia num país colonizado, tal desabar das aparências da tão proclamada superioridade civilizacional foi motivo de desilusão e dor. 
Era natural tal sentimento para quem estudara a língua e a literatura inglesa dois anos em jovem em Londres e apreciara o liberalismo político britânico de "grande coração", particularmente nos discursos de John Bright, e o bom acolhimento que davam aos refugiados políticos, e para quem mais tarde recebera consagrações, como a sua tradução para várias línguas, o prémio Nobel de literatura em 1913 e o grau de cavaleiro pelo rei Jorge V Inglaterra, em 1915, e que ele renunciaria e devolveria em 1919, em sinal de repúdio dos métodos punitivos e desproporcionados exercidos recentemente pelos ingleses.
Todavia, pelo egoísmo e os maus efeitos da colonização da Índia pelos Ingleses, demasiado gananciosos e apenas interessados em retirar lucros para eles, Tagore compreendera que os bons aspectos deles tinham sido corrompidos e degenerados pelo imperialismo. Confessa mesmo, que se não fossem dois ou três ingleses mais generosos que há muito teria perdido esperanças na raça inglesa, exaltando mesmo Andrew o seu íntimo amigo e braço direito (e protector face à opressão inglesa) na Universidade Livre que fundara em Shantiniketan, não longe de Calcutá.
É um texto surpreendente pois vemo-lo a elogiar primeiro o liberalismo e o modelo civilizacional inglês  que ajudara até a pôr em causa os moldes sociais petrificados das castas, mas logo em seguida criticar o egoísmo colonizador face à pobreza da Índia que se acentuara com os cerca de 200 anos de subjugação e exploração britânica, guardando para si todos os progressos industriais, e no fundo satisfazendo-se de uma mão de obra baratíssima.
Ora era o contrário disso que ele observara na Rússia soviética, onde estivera, pelas realizações extraordinárias que se tinham conseguido, pondo-se o progresso técnico ao serviço de todos, com resultados excelentes na erradicação da pobreza, na melhoria da saúde e da educação, e sem conflitos de classes nem de religiões. Escreve mesmo quanto à manta de retalhos de 200 povos diferentes:«Enquanto os outros poderes imperialistas sacrificam o bem estar das raças submetidas à sua ganância nacional, na U.S.S.R. eu encontrei uma genuína tentativa de harmonizar os interesses das várias nacionalidades que estão dispersas por uma vasta área. E vi povos e tribos que um dia antes eram nómadas selvagens sendo encorajados e de facto treinados, para verem livremente por eles próprios os benefícios da civilização».
 Elogia depois o Irão e vamos, até  por alguma actualidade de luta pela independência face às sanções norte-americanas, transcrever  o parágrafo que lhe dedica: «Eu vi também o Irão [visitara-o em Abril-Maio de 1932], que desperta recentemente para um sentido de auto-suficiência nacional, tentando cumprir o seu próprio destino livre das mortíferas mós de pedra de dois poderes Europeus. Durante a minha recente visita a esta país descobri para a minha delícia que os Zoroastrianos, que outrora tinham sofrido  do ódio fanático da comunidade maioritária e cujos direitos tinham sido coartados pelo poder regente, estavam agora livres dessa longa repressão, e que a vida civilizada tinha-se estabelecido na "terra feliz". É significativo que a boa fortuna do Irão data do dia em que finalmente se desatou das malhas da diplomacia Europeia. Com todo o meu coração eu desejo o bem ao Irão.»
Elogia ainda o Afeganistão, já na altura insubmisso face aos arrogantes poderes europeus e critica a Inglaterra por ter levado o ópio para a China e ter-se apropriado de seus territórios e contrapõe o Japão e o seu dinamismo tecnológico ao serviço de toda a população.
É um discurso bastante actual, na sua crítica forte ao imperialismo da civilização ocidental, e como eu ainda nunca o lera, ao traduzi-lo directamente na gravação acabei por deixar transparecer algo da adesão à visão crítica mas construtiva.
Na parte final Rabindranath eleva-se, profetizando que a roda da Fortuna há-de de certamente dar a independência à Índia, e não seriam necessários muitos anos para Gandhi, Nehru, Vinoba, através de ahimsa (não-violência) e swaraj (auto-governo), chegarem a tal libertação, a 15.VIII.1947. E conclui com a esperança de que quando o «cataclismo tiver findado e a atmosfera estiver limpa graças a um espírito de serviço e de sacrifício»,  uma aurora civilizacional, talvez provinda da Índia e para que esta  cumpra a sua missão ou dharma e para que as sociedades recuperem a sua «herança humana perdida». 
Mesmo assim termina com um aviso da sabedoria indiana para a insolência dos poderosos, citando uma sloka, talvez do Bhagavad Gita:«Pela injustiça pode-se ganhar prosperidade e o que parece desejável, e vencerem-se inimigos, mas  tais seres perecerão pela raiz».
 Numa linha que Erasmo apreciava e que era o cumprir-se o anel das três Graças, ou  unir o princípio e o fim, transcrevo agora o poema inicial desta última mensagem de Rabindranath Tagore, que é uma evocação dos mestres, da possibilidade de algum grande ser, salvador ou avatar se manifestar na Terra, esperança que se encontra em muitos povos, algo que na altura outro grande artista e mestre Nicholai Roerich também esperava em relação ao bodhisatva Maitreya, mas que no século XXI sabemos já que dificilmente ou mesmo não acontecerá a um nível exterior, pois as forças do mal são muito poderosas no mundo político, financeiro, farmacéutico e dos armamentos, ainda que disfarçando-se  e muitos corrompendo...
Será cada um que terá de religar-se com o seu espírito, o seu anjo e eventualmente com os Mestres, e ir lutando lucidamente pela justiça, a liberdade e a dignidade e realização espiritual humana, só, em família, em grupos, em redes, pouco se podendo esperar dos partidos e votações...

«O Grande Ser vem,
enviando arrepios através da poeira da Terra.
Nos céus soa a trombeta,
no mundo humano os tambores da vitória batem,
a hora chegou do grande nascimento.

Hoje os portões (gates) da fortaleza da noite
desmoronam-se em pó -
Na crista da aurora que desperta
a garantia de uma nova vida
proclama "Não temas".

O grande céu ressoa com os cantos (paeans) de vitória
 Àquele que chega ».

Fiquemos com o mantra tagoreano "Não temas" e com a fé e a visão da vitória das forças do Bem na Humanidade, com a ajuda dos Mestres ou grandes seres, dos Anjos e da Divindade. E de Rabindranath Tagore... Muito Amor para ele. Omm
                   

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Para a Teoria e Realização do Amor, em Geral e Espiritual. Contributo de Pedro Teixeira da Mota.

Não é fácil a consciencialização do nosso estado de Amor, já que estamos em geral muito na cabeça e na actividade mental relacionada com actividades exteriores e logo não sentimos como está o Amor em nós, nem se sabe bem o que é ou pode ser o Amor nos seus diversos níveis, mesmo que se o sinta por momentos ou por tempos mais longos no relacionamento humano ou na criatividade, como afectividade, gratidão ou mesmo felicidade.
Em geral não se reconhece o Amor como um estado do Ser Divino que em nós pode estar ou perpassar, mais ou menos, como uma das suas qualidades ou até essência, ou ainda como a energia coesiva e unitiva do Universo, e que a nossa missão na terra será provavelmente conseguirmos o máximo de despertar dele e nele.
Se estamos mais conscientes de tal omnipresença do Amor a nossa aspiração a ele pode ser maior e, através de certos estados psico-somáticos, tais como os desenvolvidos pela atenção e a devoção, podemos intensificar centros de forças subtis e influenciar neuro-transmissores cerebrais, e assim aprofundar ou estabilizar melhor tal vivência.

Na verdade, a ocorrência ou sintonização maior do Amor em nós emana de, e acontece em, níveis pouco consciencializados, seja cósmicos seja microscópicos, e o Amor sente-se e é vivido algo involuntariamente, ora instintivamente ora mentalmente, pois só o conseguimos sentir mais consciente e profundamente quando estamos verdadeiramente sintonizados com alguém, com um trabalho, com um objecto ou obra de arte, com a Natureza e sobretudo com o nosso espírito, o anjo e na aspiração à Divindade.
Todavia é muito raro estarmos sintonizados conscientemente com profundidade ou força suficiente nestes níveis. E raro é vermos com a visão espiritual as potencialidades e maravilhas da nossa abertura e osmose com o Amor. E raro é além disso se sentidas ou em certos casos mesmo desvendadas em meditações, tais aberturas ao Amor, que elas se estabilizem como estado de desanuviamento interior e fogo de irradiação permanente.
Tentarmos compreender e realizar melhor o Amor exige atenção e sinceridade, estudo e esforço tanto na entrega a ele fogo do Amor, como ao que se ama e a quem se ama, tal como ainda no auto-conhecimento e vontade de meditação e discernimento, pois o caminho de aproximação e sintonização é como avançar no fio de uma navalha, donde facilmente se cai, se distrai, se esfria na multiplicidade dispersante ou mesmo conflituosa que nos rodeia.
É necessário então fortificar-nos na ligação interna, sentir também o pulso e anseios do coração, para assim observar, compreender e corrigir ou controlar instintos, desejos, reacções, aspectos, energias e causas, trazendo-os à luz da consciência.
Como que mandalizá-los a partir do coração, isto é, torná-los, ordená-los concêntricos e transparentes ao foco de luz que emana do centro íntimo do coração, denominado por exemplo pelos místicos iranianos como o segredo do segredo, ou pelos espirituais ocidentais, coração do meu coração.
Quanto à expressão "luz da consciência", embora seja de utilização quase inconsciente, na realidade é muito significativa, pois a consciência é luz e o acto de estarmos conscientes de algo ilumina e clarifica o sujeito e o objecto, e logo ao virar-nos para dentro, fortalecemo-nos e aproximamo-nos da desvendação da chama do coração do Amor atractivo, unitivo e coesivo.
Ou seja, ao meditarmos, ao observarmos as nossas reacções aos outros, ao sentirmos a afectividade maior ou menor em que estamos, ao sintonizarmos o Ser, o Amor em si, o amado ou a amada, o Anjo ou o Mestre, compreendemos como o Amor, ou o afastamento ou obscurecimento dele, está em nós, fazemos com que a luz da consciência acalme as vagas de pensamento e se ligue no silêncio com tal centro da nossa dimensão interna afectiva, daí resultando uma iluminação e dinamização maior do nosso conjunto psicosomático e, claro, maior brilho do Amor, nós quais vagalumes ou joaninhas palpitando no Cosmos e seu Campo unificado de energia consciência informação...
 Na verdade, ao meditarmos pode ainda suscitar-se a visão interior da alma, do espaço subtil e espiritual que temos e somos, e onde se poderão erguer, desvendar-se, avistar-se e fortificar-nos as formas dos seres com quem temos mais relação ou afinidade anímica, ou as que mais amamos, então intensificadas ou desvendadas pela luz e o fogo do Amor, tornando-se ou desvendando-se assim simultaneamente o nosso ser mais flamejante. 
Algo que, se é perseverado pelos modos de vida, devoção e consciencialização, gera uma eclosão maior do amor devocional, aspiracional, tornando-nos templos Divinos, portadores do santo Graal, e logo estando-se mais em comunhão com os anjos e mestres, ou suas bênçãos, e portanto em Amor mais permanente, grato, intenso.
Na realidade, no processo ou caminho meditativo consciencial iluminamos aspectos tais como  sensações, instintos, energias, emoções, sentimentos, sonhos, pensamentos, motivações, actos e imagens, que se entretecem mais ou menos com o Amor e nos envolvem, alguns dos quais  estão tão subtilmente sobrepostos ou entrosados que não é fácil discernirmos e sentirmos o que é, está ou  pode ser em nós, verdadeiramente, o Amor, e de que níveis ele se funda e irradia mais.
Exemplos, se tal desejo de unidade para com uma pessoa parte do instinto genésico ou sexual, se da afectividade social (frustrada ou plena), se da determinação mental de elevação energética, se de afinidades electivas fortes, se do coração espiritual e da centelha espiritual, ou ainda do Amor unitivo em si mesmo e que dois seres, reciprocamente se querendo ou amando, intensificam e trazem ao de cima mais.
Por fim, o nível tanto mais íntimo como mais elevado e  mais permanente  é a atracção amorosa entre o eu e a fonte dos eus (De-eus), a Divindade, e este Amor devocional ou de aspiração de união, cultiva-se também em certos aspectos com os Anjos, em especial o da Guarda, ou o Arcanjo do país, e com os Espíritos e mestres.
É importante aprofundarmos as razões de sentirmos Amor, pois em geral conhece-se ou identifica-se o Amor mais na experiência imediata de se estar apaixonado, ou então quando se gosta muito e se pode dizer mesmo que se ama algo ou alguém. Ou mesmo, em algumas pessoas, a vida e a fonte de tudo, a Divindade.
Todavia, o que vai neste sentimento, tido como Amor, pode, como já aludimos, mais do que verdadeiramente Amor, ser muitas vezes desejo ou carência, afirmação, controle e posse, algo que não se quer reconhecer ou pensar, ainda que frequentemente tal se verifique, e se venha a confirmar mais tarde, por vezes para desilusão de um ou dos dois, embora se deva aceitar e avançar, dando graças pelos momentos ou tempos de mais Amor vividos e, no fundo, na peregrinação terrena, bem iluminantes.
                                   
O Amor, como consciencialização e irradiação do coração espiritual, como ardência plena para a fonte do Amor, a Divindade, e como dádiva plena a tal corrente e do nosso ser nela para alguém, para os outros e o Cosmos implica um trabalho constante de religação, ou seja, de não sairmos ou melhor até de voltarmos a tal consciencialização e vibração, o que sabemos bem ser difícil no dia a dia do séc. XXI, com maior ou menor confinamentos, com maiores ou menores imperialismos e opressões, difícil mas desafiante...
É então importante por um lado não nos deixarmos envolver demasiado pela horizontalidade social e mediática, e por outro haver tanto a sintonização e graça do íntimo do mundo espiritual, como também a abnegação e submissão persistente do eu, enquanto personalidade limitada e limitadora da frequência vibratória cardíaca e da correnteza unitiva, pois são os egos ou eus humanos, com as suas preocupações e envolvimentos, hábitos e reacções, que põem os corpos, desejos e pensamentos em estados ou níveis vibratórios pouco afins ou atractivos da graça do Amor, do espírito, do anjo e da Divindade.
O Amor torna-se assim quase um ideal e daí terem surgido ao longos dos séculos tantas teorias e práticas que, por exemplo, configuraram na Índia a Bhakti Yoga, o caminho do Amor Divino, a união pelo Amor devocional, ou ainda a Tantra Yoga, em que há já a utilização do corpo na sua sexualidade e energias para se tentar despertar o corpo de luz ou se expandir a consciência, o amor e se chegar a uma certa unidade.
Todavia na Tantra Yoga, e em especial fora dos contextos yogis originais de mestre a discípulo e de pequenos grupos, tal como acontece no Ocidente, as pessoas tendem a ficar demasiado na sexualidade, na sensualidade, nos egos e vaidades, enredando-se nos grupos e nos egos dos pseudo-mestres, por iluminados ou universais que se proclamem, e pouco ou nada acontece de unificação de energias, de realização e religação espiritual e divina, pois na realidade o Amor pela união sexual não é algo de mecânico, automático ou de exercício, mas de comunhão na elevação psico-espiritual, o que implica sempre um caminho espiritual sério e de intimidade pessoal a dois e não de mistificações e superficializações, no que se pode denominar "materialismo espiritual", tão presente nos movimentos da chamada new age.
Por estas vias práticas ou sadhanas tenta-se chegar ora à libertação ora à união, e é nesta via mais dualista e devocional, a da união, que o Amor tem sido mais demandado, cantado, realizado, em especial na Índia, pelos místicos vishnuítas, mas não só, dois dos clássicos sendo os Bhakti sutras de Narada e a Bhagavad Gita, esta verdadeiramente abrangente, para além de milhares de obras de grandes místicos como Kabir e Mirabai,  Ramakrishna e Rabindranath Tagore, Swami Prabhupada e Guru Ranade, etc., etc.
  Todavia, quanto a um pleno conhecimento do Amor no nível cósmico ou universal e no Ser divino, se encontramos ou temos tido certas intuições, visões e realizações poderosas (uma delas sendo exactamente a de Krishna a Arjuna, descrita na Bhagavad Gita) é difícil chegar a um acordo, já que são temporárias e subjectivas.  Contudo, dentro das compreensões ou até doutrinas geradas ao longo dos séculos pode-se discernir como que duas linhas, uma para a qual o Amor  é a energia fundamental do Universo provinda da Divindade ou mesmo a Sua Essência e indispensável para a religação a Ela, a outra valorizando mais a Consciência pura, Shiva, como Sua essência e considerando o Amor como dinamismo, a Shakti, na terminologia sânscrita, que tanto é encadeadora (Maya) como libertadora (Kali).
Já nos que seguem os ditos (algo pretensiosamente, já que os Vedas o são igualmente) "Livros revelados" e suas doutrinas, verificamos como há muitas limitações no Judaísmo, com uma concepção de Deus Jeová bastante tribal e violenta, que Jesus e o Cristianismo tentaram mesmo ultrapassar, embora a Igreja claudicasse ao criar ou manter uma aliança entre Antigo Testamento de Jehova e o ensinamento de Jesus e do Pai.  
Com o tempo, embora pregando-se o Amor ou melhor a Caridade, muito na linha de S. João, e do seu Evangelho, que com o de Tomé são os que transmitem mais o ensinamento de Amor e de Realização espiritual de Jesus, os fiéis pouco se realizaram e muitas das suas convicções, palavras e realizações foram ou são bastante limitadas, dogmáticas ou mesmo violentas (o pior tendo sido a fatal Inquisição católica e protestante, que abateram grandes almas como Giordano Bruno ou Miguel Servet) e logo pouco pacificadoras (unde Pax vobis?), harmoniosas e universais. Reconheça-se contudo que a Igreja Católica melhorou bastante nas últimas décadas quanto ao ecumenismo e ao diálogo com as outras religiões.
Será nos místicos, devotos e iniciados mais ardentes e profundos das várias religiões, em especial indiana, cristã e islâmica, que encontramos os que conheceram (e conhecem) por experiência estados conscienciais expandidos de amor, de felicidade, de união, com quem ou o que quer que fosse, embora em geral sejam os mestres e a Divindade, deixando frequentemente disso relatos, diálogos, instruções, orações, mantras, instalações de altares, diagramas ou imagens (caso de muitas das pinturas de Lama Anagarika Govinda, Nicholai Roerich e Bô Yin Râ, na imagem) que facilitam o avançar no Caminho espiritual e consequentemente a crescente iluminação e religação ao Divino, ao Amor pelo amor e o conhecimento.
 E não deveremos esquecer de nomear tantos poetas e escritores, que dentro ou fora destas religiões, teceram com seus corpos e almas textos e poemas de amor mais que flamejantes, ainda hoje inflamando os que os lêem, e podemos nomear Mevlana Rumi e Hafiz, Sohrawardi, Ruzbehan Baqli e Nur Ali Shah dos iranianos, ou dos portugueses Camões, S. Agostinho da Cruz, Bocage,  João de Deus, Leonardo Coimbra e Agostinho da Silva...
Cada um de nós deverá então cultivar (nomeadamente lendo os autores ou poetas que mais o demandaram ou viveram), chamar e meditar o Amor, ou tornar-se mais consciente dele, e querer viver mais em amor e dele receber de quando em quando alguma instrução, desvendação beatífica, graça, a qual deve ser depois aprofundada, mantida, relembrada, cultivada, sabida de cor, ou seja, do coração, sentida, amada e preservada, irradiando mais nesses momentos de anamnese, de sintonização, geração ou ressurreição do que constitui o corpo glorioso (ou espiritual) nosso e que nas nossas interiorizações e meditações trabalhamos mais.
Como a fonte e base substancial omnipresente e divina do Amor não é atingida pela maioria das pessoas, e logo se perde, desvanece, ameniza-se nos que a sentem de quando em quando, o Amor não está claro nem nos corações, nem na mente racional das pessoas, nem na visão interior contemplativa, nem a arder no interior delas, pelo que se tornam necessárias as artes poéticas, pictográficas, mandalicas, mântricas para nos alinharem mais com o Amor, que na tradição da Cavalaria do Amor perene se cristalizou muito bem nos lemas do Infante D. Henrique, Talant de bien faire (tão valorizado por Fernando Pessoa) e do Infante D. Pedro das 7 Partidas, Désir, desejo e aspiração, tradição espiritual que perpassa bastante em Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Bocage e tem um cantar de cisne no soneto Mors-Amor, de Antero de Quental, embora ainda hoje viva e na ampla comunidade de língua portuguesa.
 Apesar de tantos contributos, mesmo em muitos dos mais amantes, poetas, devotos e espirituais não está tão forte e "ininterrupto" (algo que Erasmo pedia no seu Modo de Orar a Deus, que publiquei),   como poderia estar, donde o desafio do dito que o "Amor autêntico é permanente" já glosado por mim. Assim, a chama do potencial Amor divino permanente estando em nós  pouco intensificada e cultivada,  é como uma flor de lótus ou uma rosa Amor que deverá desabrochar um dia mais plenamente no peito e coração espiritual do homem e da mulher.
Os seres que atingiram, conservaram e testemunharam grandes estados de Amor místico e permanente à Divindade, ou mesmo à amada ou ao amado, ao amigo ou à amiga, ou ainda na doação criativa a outros, por força ou ardência de tal atracção de doação e união, realçaram esses três moldes ou molas principais de sentir e manifestar o Amor, e deveremos no último molde ou linha realçar o muito heroísmo, dádiva e amor à paz, à cultura, à ciência, à pátria, aos animais, à natureza, às causas da humanidade, nos que a chama do Amor estava bem dinâmica, ainda que em geral não consciencializada na sua dimensão interior, espiritual, divinizante.
Se tivermos a consciencialização firme de que o Amor tem origem Divina, e é intrínseco Dela e no nosso espírito, e que ele para ser mais conhecido e vivido por nós, tal implica tanto gnose ou inteligência como vontade e fé, já que é apenas por uma experiência e intuição, subjectiva ou pessoal, incomprovável exterior ou cientificamente (mesmo que o peito esteja mais ardente...) que sentimos, vivenciamos ou intuímos o Amor, tanto no nível primordial e universal como no nosso nível íntimo e aurico, então conseguiremos perenizá-lo mais facilmente, no sentido de que a Fonte Divina embora transcendente é sempre acessível enquanto imanente e merece logo sempre o nosso amor, em contraste com a impermanência do contacto amoroso com os outros moldes onde ela se manifesta, tanto mais que Ela é o próprio Amor.
Por vezes o fogo colorido do Amor torna-se tão sensível em nós e nos que nos rodeiam, durante os encontros ou diálogos de nobres peregrinos, cavaleiros e cavaleiras do Amor e almas afins, que é visto mesmo com os olhos, o que nas religiões sucedeu mais com santos ou mestres, assim observados e depois representados com o coração em fogo, com o dito sagrado coração, o chakra Anahata, aberto e deixando ver o Amor operante. Já outros o viram por todo o corpo, ou pelo Amor conseguiram ver tal corpo espiritual multi-colorido e flamejante.
Relembrarmos então mais a janela ou o templo do Amor que há no peito, no corpo subtil ou de glória-luz, é importante, saindo-se tanto dos meros níveis instintivos e sexuais ou da agitação quotidiana mental, comunicativa e mediática, e intensificando-se a chama seja da aspiração seja da comunhão unitiva, de valor perenizante. 
 Se admitirmos e sentirmos que somos alimentados ou vivificados pelas correntes do Amor, ou que nos fortificamos nelas quando as cultivamos (nomeadamente pela oração, mantras, trabalho manual consciente), então seremos capazes de constantemente renascer face às inúmeras separações e mortes, sofrimentos e desilusões, oposições e lutas que vamos atravessando, capazes tanto de ainda de aguardar pacientemente e com fé uma nova intensificação do Amor, isto é, o reacendimento da chama do Amor, seja misticamente, verticalmente, em estados de graça orativos, meditativos e contemplativos, seja com outras pessoas, e assim avançarmos em estados de maior amor, no Amor, para sermos mais plenamente Amor, centelha e fogo  em nós, rumo ao Sol Divino Primordial.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Papelinhos poemáticos, em instantes de raptos: dos ambientes de trabalho às musas e ao Amor e Ser Divino.

Durante o trabalho, por vezes, a nossa alma quer voar
e agarra-se a um papel e nele começa a levitar. 
Nesta quarentena de arrumações, escritos e meditações
alguns desses náufragos em gavetas, envelopes e papéis
vieram ao de cima e pediram-me no coração:
- «Transcreve-nos, lança-nos nas tágides dos rios, ou no oceano, das almas».
 E inclinei-me submisso do interior da alma,
trancrevendo-os neste findar de 5 do 5 de 2020.
Mas como chamá-los, a estes curtos poemas e orações,
escritos em súbitos ímpetos nos últimos anos, 
ora na minha casa de mil livros, cadernos e papéis
ora atirados ao céu da catalogação para leilão
e materializados nos papelinhos que assinalam 
que o livro já foi descrito para o catálogo: 
Poemas e escritos levitantes no trabalho?
Papelinhos poemáticos, em instantes de raptos:
dos ambientes de trabalho às musas e ao Amor divino?
Eis alguns deles:

Quando a alma se veste com o corpo
pode trazer as asas dos pássaros
e cobrir com elas os seus ombros
e de mãos soltas mostrar os seios
deixando-os cair generosamente
sobre a sede e a noite peregrina.

Assim a Musa desce do Céu à Terra
e inclina-se sobre os seres
maravilhando-os com as vistas infinitas
que a sua alma e corpo suscitam
em quem ama a beleza
e recebe a graça do Amor humano
e o sente tão próximo que o torna Divino

Zahra, Thy soul like a bird of the heaven
Thy spirit like a gorgeous fontain of the highest mountain
Thy smile a promisse of Heaven's joy
Thy womb a sacred vessel of brightest motherthood.
Zahra, Be always shinning and happy, in the Divine.
*****
Como não se esquecerem de nós durante o trabalho?
De tempos a tempos rezando ou mantrizando um pouco
Tentando sentir os centros subtis da cabeça
onde está a nossa agilidade psico-espiritual
para vos inspiramos e apoiarmos
a fazerem o melhor que poderem.
Vem até mim
Recebe-me em ti.
Cruzem os ares
As nossas almas
E com os Anjos
glorifiquemos
o milagre da Unidade.
Abençoada 
e Amada
sejas e sejamos.
Tágides nossas e seus rastos e leitos, no Maio florido e confinado de 2020

sábado, 2 de maio de 2020

"O Amor autêntico é permanente". Com Dulce Pontes & George Dalaras, "O Mare e tu". Ser o Amor, Divino.

"O Amor autêntico é permanente", eis um dito bem verdadeiro e desafiante, que me apareceu impresso num postal (de 1998, atribuído a Mons. Alves Brás), e que me impulsionou a este escrito, ao som maravilhoso de duas vozes e música (O mare e tu, em Atenas, de Dulce Pontes e George Dalaras, e que encontra no fim). Mas quem conseguimos nós amar permanentemente, desejar-lhe sempre o bem, não só gostando dela ou estando simplesmente em amor com ela, mas também doar-nos a uma compreensão e elevação a dois que passe por todas as vicissitudes do quotidiano? 
 Quem consegue estar disposto a dar-se totalmente por outra pessoa, a ser um com ela nos momentos tanto mais fáceis como difíceis, no mítico amor incondiocional?
Não será muita gente. Mais até nos pais e mães, essa sempre renovada esperança de uma Humanidade melhor, tão destroçada infelizmente por alguns países mais imperialistas e violentos. Quererá dizer isto que hoje em dia poucas pessoas amam não só autenticamente mas plenamente?
Na manifestação terrena, e mais ainda no séc. XXI crescentemente regulamentador ou mesmo opressivo,  o ser humano é limitado no seu Amor e nas suas capacidades e realizações, embora nos seus sentimentos e conceitos, ideias e ideais não o seja tanto, sobretudo na juventude, transitória ou perene, que resiste às manipulações e alienações...
Somos muitos D. Quixotes, Camões, Anteros, Leonardos, Florbelas, Pessoas, Agostinhos, Natálias, isto é, idealistas, sonhadores, navegadores mas depois a dura realidade do tempo e do espaço sociais, com as suas lutas de sobrevivência, egoísmo e manipulações, acabam por nos encerrarem em pequenas bolhas (e já Erasmo parafraseara longamente Homo bulla est), maiores ou menores de afectos, familiares ou de amigos, ou de crenças e ideais, nos quais por vezes o amor permanente brilha ainda, embora muitas vezes,  depois da labareda inicial dos encontros afectivos, casamentos e descobertas de causas e de espiritualidade, haja uma normalização redutora e a chama íntima é quase perdida de vista e de ser sentida...
O Amor permanente é então um desafio muito grande, pois implica estarmos, ou tendermos para estar, ou podermos quando quisermos ressuscitar o Amor vibrante, íntimo. Ora para chegarmos a tal estação do caminho real do Amor, muito depende de nós próprios: - ou o queremos manter acesso, e lutamos por estar atentos e irradiantes dele, fluindo mais naturalmente ou menos nele, ou então forçosamente somos apanhados pelo que nos rodeia (onde os media, e os tão nocivos noticiários, são fatais), condicionados pelo que fazemos e pensamos, e logo soçobramos numa certa semi-consciência, algo mecânica ou mediocrizada por hábitos, e ficamos apegados ou dependentes de coisas, alimentos ou seres, que tanto poderemos amar mais ou menos, com reciprocidade ou não, sendo tal útil e libertador ou não, mas numa oscilação, essa sim, permanente da nossa consciência e capacidade amorosa...
 Certamente se conseguimos encontrar e conciliar o indomato amore com o amore mio (da canção ou no par) então o fogo do Amor flameja, e a onda comunga no Oceano e aspirações, olhares e abraços unificam, o vermelho e o branco casam-se... 
Mas não sendo fácil tal encontro, de almas-gémeas ou pelo menos bem vizinhas, então talvez devamos reconhecer que a conseguirmos a permanência ela é sobretudo do Amor em si, acesso em nós, subtilmente, espiritualmente. E sê-lo. Ser permanentemente Amor, sermos mais o nosso ser espiritual e primordial...
 Realização esta que pode ser sentida e expressa nas pessoas mais afins do elemento fogo como: - "Eu sou Amor, eu ardo no fogo do Amor divino". Ou no elemento água: - "Eu sou uma ondulação do Oceano do Amor..." 
Ou o Aum, sonorização  indiana da presença divina no Cosmos, ouvida na cabeça ou no coração e tão mítica  como a "música das esferas" pitagórica...
Esta consciencialização do Amor e da sua dimensão espiritual e cósmica, que pode estar mais forte ou menos realizada, mais vivida ou menos com tais frases que podem actuar como mantras ao repetirmo-las interiormente, é constantemente confrontada com acções e reacções que ora nos afastam ora nos aproximam dela; e ainda com pessoas que estão mais ou menos sintonizados com o Amor, e que se relacionam connosco das mais diferentes maneiras e intencionalidades.
Será então necessário querermos ou valorizarmos estar sempre em Amor  e depois discernirmos com a auto-consciência, o mais constantemente possível, se estamos mesmo em Amor, na comunhão e irradiação plena ou possível e adequada do Amor divino que é a nossa essência.
Momentos de meditação, oração, gratidão, contemplação, com eventuais ligações aos mestres e anjos, ajudam-nos bastante a centrar-nos e a sentirmos de novo mais o Amor em nós e logo a fortificar-nos nele e a irradiarmo-lo seja horizontalmente, seja verticalmente, para o que nos rodeia e para o distante, vencendo obstáculos e oposições e clarificando, curando, abençoando, como cavaleiros ou cavaleiras do Amor ou mesmo do Graal..
A união amorosa com pessoas, animais, plantas, aves, árvores, natureza, casas, objectos, livros, etc., e que é intensificadora do nosso estado de Amor permanente, também é importante ou fundamental de ser cultivada. E pode ser bem dançada e cantada, como podemos ouvir na música e voz tão boas de Dulce Pontes e George Dalaras, numa grande vizinhança e comunhão de Amor e Unidade com o Cosmos.
Para estar na Luz e no Amor autênticos não é necessário nem rituais, nem merkabas e extra-terrestres, nem exercícios complicados e 5ªs iniciações, nem canalizações,  regressões e vidas passadas,  que em geral são mistificações e explorações comerciais e que nos prendem ainda mais a egos e a grupos... 
 
 O Amor autêntico é libertador por si mesmo, vence ameaças, medos, doenças (em certa medida...), supera de algum modo o tempo e o espaço e permite-nos vivenciar estados mais íntimos, unitivos e expansivos de consciência, seja ao sentirmos o amor mais por, ou plenamente com alguém, seja ao sentirmos o Amor em si em nós, seja ainda recebendo as suas correntes Divinas que dos mundos e seres espirituais nos chegam...
"Felizes dos que se tornam Amor"
Seja então mais autêntico, esteja ou seja mais permanente e profundamente o Fogo do Amor Divino... Aum...
                           

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Da morte e do além, "Homo bulla est" e centelha espiritual. De Plotino e Erasmo aos nossos dias pandémicos ou opressivos...

Diz-se que as últimas palavras de um dos mais elevados mestres da Antiguidade, Plotino (205-270), autor das Enéadas, foram, tal como as registou o seu valioso secretário Porfírio, também ele um mestre espiritual: «agora procuro levar de volta o eu que está dentro de mim para o Eu total.»
                                   
Outros ao morrer pensariam, ou eventualmente diriam: «Oh Divindade que estás dentro de mim e que és a luz dos meus olhos, e a força do meu espírito, o centro de meu ser, impulsiona-me para me elevar o mais possível no cosmos rumo aos teus mundos divinos, e que aí possa encontrar aqueles com quem deverei estar, comunicar, trabalhar, sentindo-te mais em mim, e sendo mais plenamente teu cooperador.»
Outros ainda talvez pensem e se lancem assim: «Eu aspiro à mais elevada região do mundo espiritual a que posso chegar. Anjos e mestres, impulsionai-me rumo à Divindade. »
Sim, na verdade, ao morrer a nossa alma e espírito deixam o corpo físico e elevamo-nos para os mundos subtis, menos ou mais luminosos e espirituais, assim nos elevando conforme a nossa vida e logo a constituição anímico-espiritual desenvolvida.
Compreender o que fizemos, o que poderíamos ter feito, as consequências positivas ou negativas dos nossos actos e sentimentos, tentar corrigi-las, no nosso mundo interior, quem sabe se de algum modo tocando subtilmente nas pessoas com quem nos relacionamos, quem sabe até olhando para o mundo humano físico, podendo ser esses primeiros tempos no além, para os mais despertos (pois muitos descrentes, ou mortiços no amor, estarão semi-adormecidos), entrecortados com vistas de antepassados ou amigos, quem sabe mesmo se com diálogos com eles, são hipóteses plausíveis da nossa vida post-mortem do corpo físico.
                                          
                                        Om Sri Ramakrishna namah! Saudações!
Sim,  acredito que podemos merecer encontrar-nos não só com os nossos pais e ascendentes familiares mas também com aqueles seres que mais gostamos e trabalhámos, seja os que conhecemos pessoalmente, ou que nos iniciaram mesmo, tais Si Rishi Atri, Swami Kaivalyananda, Sri Vidwans, Shudhananda Bharati e Swami Ranganathananda, ou os que já tinham partido, tais como
Pitágoras e Platão, Ramanuja e Madhva, Shorawardi,  Nadjin Kubra, Sa'adi, Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Erasmo, Damião de Goes, Dara Shikoh, Nur Ali Sha, Ramakrishna, Antero de Quental e Fernando Leal, Fernando Pessoa, Wenceslau de Morais, Bô Yin Râ, Paramahansa Yogananda, Guru Ranade, Henry Corbin e, por fim, Jesus, certamente um dos mais elevados mestres de sempre.
Sim, grande mistério, onde estará ele e o que faz? Irradia apenas naturalmente Amor para todo o cosmos, ou age individualmente na Terra, inspirando aqui, corrigindo acolá, visionando isto, atalhando aquilo?
Terá bastantes espíritos celestiais (anjos) e santos colaborando com ele e movendo-se subtilmente no mundo subtil tentando ajudar ou inspirar as pessoas?
Os religiosos e místicos que o veem pelo olho espiritual nas suas meditações chegam mesmo a ele, ou apenas captam certas energias suas que se concretizam depois nas imagens que veem, podendo assim ocorrer quase um desdobramento infinito de si próprio para os muitos que a ele apelam?
Ou será que está já com outros horizontes cósmicos e logo menos ligado à Terra, onde se há muitos que o invocam e falam em seu nome, na verdade são bem menos os que verdadeiramente têm ligação com ele, ou o conseguem invocar e de algum modo receber alguma energia da sua imensa aura e ser?
Quantos de nós conseguimos ter no nosso coração ligação e logo até alguma sensação de presença potencial dos grandes seres em nós?
Quais serão aqueles seres que mereceremos ter acesso quando partirmos, seja na altura seja mais tarde, quando tivermo-nos adentrado nas regiões já não ribeirinhas mas verdadeiramente espirituais?
Ou será que, como Plotino escreveu, estaremos a sós, com o mundo espiritual ou divino?
                                        
Chamaremos e invocaremos nós Jesus e Maria, Buda e Maomé, Ali, Hussaim e o Madhi, Krishna e Shiva, Radha, Isis ou Amaterasu, ou ainda o santos e santas, ou ainda os mestres de confrarias e linhas tradicionais milenárias,
recebendo muitos provavelmente    bênçãos deles, directas ou indirectas, ora sem ora com intermediários?
E agora com os vírus e guerras, que agitação na passagem e intermediarização entre os mundos, físico e subtil está a acontecer, com tão
pouca gente  preparada para morrer, para se libertar da terra, e frequentemente algo perdida, com pouco apoio (ou mesmo nenhum) de familiares e amigos, vendo-se no além, quase sem capacidades de visão, compreensão e movimentação?
Será que devemos questionar as religiões por não terem preparado melhor as pessoas seja para a vida no além, seja para estas súbitas possibilidades de abruptos fins do mundo colectivos, tal como no nível terreno e social alguns Estados (mormente o Estados Unidos da América, o Reino Unido e a UE em relação à Itália) tidos como muito desenvolvidos e poderosos, mostrando assim o egoísmo e o desleixo que havia e há para o que não seja armamentos, guerras, sanções e lucros das classes financeiras, políticas e farmacêuticas, enquanto os Estados vilipendiados e sancionados como os do Mal agem ou agiram com  altruísmo, tal a Rússia, a Cuba e a China?
                                       
                   A Humanidade vai abrindo os olhos, discernindo melhor o mal e o bem...
Talvez não devamos ficar muito apreensivos com o que se vai passando, pois é possível, que antepassados já no além e o Anjo da guarda de cada ser, estejam conseguindo orientar muitos, sobretudo os que já têm algum despertar e abertura dos órgãos do corpo espiritual, pela sua vida de luz e amor, e assim impulsionando-os a avançarem melhor.
Para os outros, pois que as nossas orações de luz e amor para as suas almas os possam ajudar...
Cuidemo-nos uns aos outros, como os seres que verdadeiramente se auto-conhecem e amam fazem.
                                          
E como ninguém se pode evadir à limitada duração da vida na terra, tal como uma bolha de sabão, metáfora ainda da superficialidade da vida vaidosa, ou da sua efemeridade, tal como Erasmo desenvolveu a partir do dito antigo do romano Varrão, Homo bulla est, o ser humano é uma bolha, num escrito famoso a propósito da súbita morte do príncipe Filipe de Borgonha, pai do futuro imperador Carlos V, saibamos trabalhar bem enquanto há luz, enquanto estamos vivos para que não venha a noite ladrona e nos apanhe desprevenidos, como crianças distraídas, despreocupadas, alienadas da sua missão principal de evolução fraterna, de sabedoria e amor, e antes possamos estar entre aqueles,tal Plotino, trabalhando pela, ou já com, a
religação à centelha espiritual e à Divindade brilhando no seu interior e ser.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

A partida de Antero de Quental, descrita por Oliveira Martins a Eça de Queiroz, comentada.

                   
Quando vou deitar o corpo ao fim do dia, em geral bem activo mentalmente, ainda sinto um último assomo de vontdade de imersão e partilha do conhecimento e então escolho uma estante, percorro pelo olhar os livros dela e selecciono um ou dois que levo comigo, para folhear, sentir e decidir se vale a pena anotar ou mesmo gravar.
Quem tem problemas de sono, de adormecimento, poderia ter até uma estante com livros apropriados, não digo que funcionando como soporíferos pelo desinteresse que causam mas por serem calmantes, harmoniosos, belos, preparando-nos mesmo para sonhos bons.
Ora ontem de uma estante retirei dois, um sobre o escritor Afonso Gaio, da Lita Scarlatti, uma arguta pensadora que escreveu sobre alguns dos nossos temas históricos mais interessantes, tais como os Painéis de Nuno Gonçalves e o D. Pedro das 7 partidas, o outro foi a Correspondência de J. P. Oliveira Martins, que adquirira não há muito e que acabou por ser o que prevaleceu na "sua" vontade (do livro, do autor ou da minha interacção com ele?)  de o ler e até, ao vento de uma gravação ou escrito, semear...
 Ora entre as dezenas de cartas transcritas pelo seu filho, uma delas saltou-me ao de cima e imediatamente decidi lê-la e gravando tal primeira leitura, com os comentários que me brotassem. E disso resultou o vídeo que vai no fim, restando agora transcrever a valiosa carta e acrescentar um breve comentário:
«Meu caro José Maria 
Muito obrigado pela tua pergunta telegráfica. O nosso Antero cedeu por fim à tentação constitucional da sua vida. Morrer era-lhe uma obsessão. Matou-o principalmente o clima enervante de S. Miguel que estonteia os mais fleumáticos. No meio desta aflição consola-me sequer de que não morreu vítima de nenhuma dificuldade maior: nem dinheiro, nem doença, nem mulher. Nada. Matou-o a sua imaginação exacerbada pelo capacete do ozote  (ozono) de ilha. Era uma tentação antiga: duas vezes o desarmei, e uma no instante em que se ia matar. E então havia um motivo mulher. O nosso pobre Antero não tinha a filosofia bastante para perceber que da vida nem vale a pena nos desfazermos.
Era um alucinado da metafísica e provavelmente acabou julgando ir viver num mundo melhor. Acabou-se. Adeus.
Abraço-te meu José Maria, abraço-te n'elle.
Oliveira Martins.»
 
A morte era-lhe uma tentação ou atracção constitucional e obsessiva, diz então um dos seus maiores amigos, respaldado nos muitos momentos em que estiveram juntos e na sua obra poética onde tal palavra, tema e realidade tantas vezes está presente. Talvez possamos pensar que Antero de Quental tinha já um pressentimento ou intuição do seu destino e de como depois de a cortejar e poetizar tanto acabaria por se entregar a ela voluntariamente, em vida, e não num noivado de sepulcro depois de uma morte natural.
Era uma matriz que estava em si e que soubera desafiar enquanto líder estudantil, enquanto espadachim em duelo de desagravo literário no Porto com Ramalho Ortigão, enquanto revolucionário socialista desafiando o marasmo burguês com as Conferências do Casino ou nos encontros no meio do rio Tejo com os representantes da Internacional Socialista, enquanto embarcadiço  na viagem marítima tempestuosa aos Estados Unidos da América, que tanto o desiludiu, e, finalmente, nas relações amorosas nas quais o coração sensível e intenso como o dele pode ser ferido quase de morte, ou não fosse ele um cavaleiro de Mors-Amor, tal como Oliveira Martins relata embora exagerada ou dramaticamente (Antero a matar-se diante de outra pessoa?), em relação à sua última paixão, em 1878, com a Clotilde que ele conheceu nas termas francesas de Bellevue, quando andava na procura da cura psico-somática.
 Contudo Oliveira Martins sossega Eça de Queiroz, que escreveria pouco depois demoradamente o seu mítico texto para o In Memoriam de Antero, no qual Oliveira Martins também dá um contributo notável, até merecedor de ser equacionado com esta resposta mais telegráfica, mas que alongaria demasiado este texto.
Antero matara-se, segundo Oliveira Martins, pela sua imaginação excitada pelo capacete climatérico insular, exacerbada pelos problemas que o rodeavam, e que intensificaram a sua característica de "alucinado da metafísica". Dá contudo com esta expressão mais veracidade à capacidade visionária de Antero, algo que já surpreendera a "luso-alemã" Carolina Michaelis, conforme a advertência que fez ao tradutor Wilhelm Storck  da qualidade e sinceridade dos sonetos de Antero, que seriam vivenciados por ele quase que vindos do inconsciente.
 Já ao contrário,  Oliveira Martins, mais pragmático ou utilitarista e pouco metafísico, considerando que a vida vale tão pouco  que não se justifica morrer-se desfazendo-se dela, ou suicidando-se, acha que Antero teria sido limitado na sua filosofia, pois matara-se pela vida. 
Ora é evidente  que, pela sua proverbial sinceridade e entrega plena à vida, Antero de Quental era um homem de causas, de missão, e sentindo-se já sem elas, ou mesmo desiludido delas, conforme se dera uns meses antes com o naufrágio da reacção da Liga Patriótica do Norte que ele liderara face ao Ultimatum do imperialismo inglês,  ultrapassada há muito a fase poética (desde 1884, antes mesmo da publicação dos Sonetos em 1886), transmitido o seu pensamento filosófico, ainda que abreviadamente, com a publicação das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, em 1891, e tendo de separar-se das suas duas pupilas agora mais crescidas, sentiu que chegara a grande hora de tomar a sua cicuta, como Sócrates, a quem aliás se comparara no sentido de que, mais do que escrever, gostaria de exercer o dialogo maiêutico e ter um discípulo como Platão. E assim partiu voluntariamente e ousada e arriscadamente através do abraço ou da mão da Morte, que tanto amara, para o mundo espiritual, num banco do jardim sossegado, ou talvez espantado, na noite imensa, na pequena ilha no meio do Oceano.
Diz ainda com alguma perspicácia, ironia e descrença Oliveira Martins, que Antero  "provavelmente acabou julgando ir viver num mundo melhor. Acabou-se".
Para que níveis do mundo subtil e espiritual Antero foi não sabemos, nem vamos agora especular, Não "acabou" pois, e talvez a bela e sentida frase de camaradagem inter pares ou comuns amigos que ele lança em seguida para Eça seja até um prova disso: "abraço-te nele". Ou seja, abraço-te ao modo dele, abraço-te como se Antero estivesse também a abraçar-nos, no seu corpo espiritual, constitucional e imortal, ou abraço-te na comunhão do seu espírito e alma.
Possamos nós aprofundar a nossa identidade espiritual, purificar e concentrar a nossa visão interior, na comunhão com o corpo místico e o Graal da Tradição cultural e espiritual Portuguesa, e com os mestres, santos e santas e os anjos, na adoração divina.