quinta-feira, 7 de maio de 2020

Rabindranath Tagore, "Crise na Civilização". Último discurso. Leitura comentada, com vídeo.

A última conferência ou satsanga de Rabindranath Tagore, já com 80 anos e a três meses da sua partida da Terra é valiosa e pouco conhecida, e tendo um exemplar dela, trazido da sua Universidade Livre, em Bengala, em 1995,  resolvemos lê-la traduzindo-a e gravando. Encontra no fim o vídeo, com alguns comentários, realçando a sua actualidade. 
 Estávamos em Abril de 1941, quando a 2ª Grande Guerra dilacerava inúmeros povos. Para um humanista e místico,  artista e pedagogo, e bem documentado viajante universal, que vivia num país colonizado, tal desabar das aparências da tão proclamada superioridade civilizacional foi motivo de desilusão e dor. 
Era natural tal sentimento para quem estudara a língua e a literatura inglesa dois anos em jovem em Londres e apreciara o liberalismo político britânico de "grande coração", particularmente nos discursos de John Bright, e o bom acolhimento que davam aos refugiados políticos, e para quem mais tarde recebera consagrações, como a sua tradução para várias línguas, o prémio Nobel de literatura em 1913 e o grau de cavaleiro pelo rei Jorge V Inglaterra, em 1915, e que ele renunciaria e devolveria em 1919, em sinal de repúdio dos métodos punitivos e desproporcionados exercidos recentemente pelos ingleses.
Todavia, pelo egoísmo e os maus efeitos da colonização da Índia pelos Ingleses, demasiado gananciosos e apenas interessados em retirar lucros para eles, Tagore compreendera que os bons aspectos deles tinham sido corrompidos e degenerados pelo imperialismo. Confessa mesmo, que se não fossem dois ou três ingleses mais generosos que há muito teria perdido esperanças na raça inglesa, exaltando mesmo Andrew o seu íntimo amigo e braço direito (e protector face à opressão inglesa) na Universidade Livre que fundara em Shantiniketan, não longe de Calcutá.
É um texto surpreendente pois vemo-lo a elogiar primeiro o liberalismo e o modelo civilizacional inglês  que ajudara até a pôr em causa os moldes sociais petrificados das castas, mas logo em seguida criticar o egoísmo colonizador face à pobreza da Índia que se acentuara com os cerca de 200 anos de subjugação e exploração britânica, guardando para si todos os progressos industriais, e no fundo satisfazendo-se de uma mão de obra baratíssima.
Ora era o contrário disso que ele observara na Rússia soviética, onde estivera, pelas realizações extraordinárias que se tinham conseguido, pondo-se o progresso técnico ao serviço de todos, com resultados excelentes na erradicação da pobreza, na melhoria da saúde e da educação, e sem conflitos de classes nem de religiões. Escreve mesmo quanto à manta de retalhos de 200 povos diferentes:«Enquanto os outros poderes imperialistas sacrificam o bem estar das raças submetidas à sua ganância nacional, na U.S.S.R. eu encontrei uma genuína tentativa de harmonizar os interesses das várias nacionalidades que estão dispersas por uma vasta área. E vi povos e tribos que um dia antes eram nómadas selvagens sendo encorajados e de facto treinados, para verem livremente por eles próprios os benefícios da civilização».
 Elogia depois o Irão e vamos, até  por alguma actualidade de luta pela independência face às sanções norte-americanas, transcrever  o parágrafo que lhe dedica: «Eu vi também o Irão [visitara-o em Abril-Maio de 1932], que desperta recentemente para um sentido de auto-suficiência nacional, tentando cumprir o seu próprio destino livre das mortíferas mós de pedra de dois poderes Europeus. Durante a minha recente visita a esta país descobri para a minha delícia que os Zoroastrianos, que outrora tinham sofrido  do ódio fanático da comunidade maioritária e cujos direitos tinham sido coartados pelo poder regente, estavam agora livres dessa longa repressão, e que a vida civilizada tinha-se estabelecido na "terra feliz". É significativo que a boa fortuna do Irão data do dia em que finalmente se desatou das malhas da diplomacia Europeia. Com todo o meu coração eu desejo o bem ao Irão.»
Elogia ainda o Afeganistão, já na altura insubmisso face aos arrogantes poderes europeus e critica a Inglaterra por ter levado o ópio para a China e ter-se apropriado de seus territórios e contrapõe o Japão e o seu dinamismo tecnológico ao serviço de toda a população.
É um discurso bastante actual, na sua crítica forte ao imperialismo da civilização ocidental, e como eu ainda nunca o lera, ao traduzi-lo directamente na gravação acabei por deixar transparecer algo da adesão à visão crítica mas construtiva.
Na parte final Rabindranath eleva-se, profetizando que a roda da Fortuna há-de de certamente dar a independência à Índia, e não seriam necessários muitos anos para Gandhi, Nehru, Vinoba, através de ahimsa (não-violência) e swaraj (auto-governo), chegarem a tal libertação, a 15.VIII.1947. E conclui com a esperança de que quando o «cataclismo tiver findado e a atmosfera estiver limpa graças a um espírito de serviço e de sacrifício»,  uma aurora civilizacional, talvez provinda da Índia e para que esta  cumpra a sua missão ou dharma e para que as sociedades recuperem a sua «herança humana perdida». 
Mesmo assim termina com um aviso da sabedoria indiana para a insolência dos poderosos, citando uma sloka, talvez do Bhagavad Gita:«Pela injustiça pode-se ganhar prosperidade e o que parece desejável, e vencerem-se inimigos, mas  tais seres perecerão pela raiz».
 Numa linha que Erasmo apreciava e que era o cumprir-se o anel das três Graças, ou  unir o princípio e o fim, transcrevo agora o poema inicial desta última mensagem de Rabindranath Tagore, que é uma evocação dos mestres, da possibilidade de algum grande ser, salvador ou avatar se manifestar na Terra, esperança que se encontra em muitos povos, algo que na altura outro grande artista e mestre Nicholai Roerich também esperava em relação ao bodhisatva Maitreya, mas que no século XXI sabemos já que dificilmente ou mesmo não acontecerá a um nível exterior, pois as forças do mal são muito poderosas no mundo político, financeiro, farmacéutico e dos armamentos, ainda que disfarçando-se  e muitos corrompendo...
Será cada um que terá de religar-se com o seu espírito, o seu anjo e eventualmente com os Mestres, e ir lutando lucidamente pela justiça, a liberdade e a dignidade e realização espiritual humana, só, em família, em grupos, em redes, pouco se podendo esperar dos partidos e votações...

«O Grande Ser vem,
enviando arrepios através da poeira da Terra.
Nos céus soa a trombeta,
no mundo humano os tambores da vitória batem,
a hora chegou do grande nascimento.

Hoje os portões (gates) da fortaleza da noite
desmoronam-se em pó -
Na crista da aurora que desperta
a garantia de uma nova vida
proclama "Não temas".

O grande céu ressoa com os cantos (paeans) de vitória
 Àquele que chega ».

Fiquemos com o mantra tagoreano "Não temas" e com a fé e a visão da vitória das forças do Bem na Humanidade, com a ajuda dos Mestres ou grandes seres, dos Anjos e da Divindade. E de Rabindranath Tagore... Muito Amor para ele. Omm
                   

3 comentários:

João Teixeira da Motta disse...

um belo poema muito actual, quando se tenta que o medo impere: NADA TEMAS!

José Simões-Ferreira disse...

Excelente, Pedro, Rabindranath Tsagore merece ser lembrado. Não tenho à mão "A Casa e o Mundo", mas vou procurá-lo e relê-lo. Quanto às observações sobre os "sovièticos", o Irão, Afeganistão, etc., apoio, pois já chega de hegemonia ocidental, agora na pior fase, a dos camones, com toda a sua arrogância, ganância, e violência.

Ana disse...

É sempre com redobrado interesse que leio o que publica. Parabéns