quinta-feira, 30 de abril de 2020

A partida de Antero de Quental, descrita por Oliveira Martins a Eça de Queiroz, comentada.

                   
Quando vou deitar o corpo ao fim do dia, em geral bem activo mentalmente, ainda sinto um último assomo de vontdade de imersão e partilha do conhecimento e então escolho uma estante, percorro pelo olhar os livros dela e selecciono um ou dois que levo comigo, para folhear, sentir e decidir se vale a pena anotar ou mesmo gravar.
Quem tem problemas de sono, de adormecimento, poderia ter até uma estante com livros apropriados, não digo que funcionando como soporíferos pelo desinteresse que causam mas por serem calmantes, harmoniosos, belos, preparando-nos mesmo para sonhos bons.
Ora ontem de uma estante retirei dois, um sobre o escritor Afonso Gaio, da Lita Scarlatti, uma arguta pensadora que escreveu sobre alguns dos nossos temas históricos mais interessantes, tais como os Painéis de Nuno Gonçalves e o D. Pedro das 7 partidas, o outro foi a Correspondência de J. P. Oliveira Martins, que adquirira não há muito e que acabou por ser o que prevaleceu na "sua" vontade (do livro, do autor ou da minha interacção com ele?)  de o ler e até, ao vento de uma gravação ou escrito, semear...
 Ora entre as dezenas de cartas transcritas pelo seu filho, uma delas saltou-me ao de cima e imediatamente decidi lê-la e gravando tal primeira leitura, com os comentários que me brotassem. E disso resultou o vídeo que vai no fim, restando agora transcrever a valiosa carta e acrescentar um breve comentário:
«Meu caro José Maria 
Muito obrigado pela tua pergunta telegráfica. O nosso Antero cedeu por fim à tentação constitucional da sua vida. Morrer era-lhe uma obsessão. Matou-o principalmente o clima enervante de S. Miguel que estonteia os mais fleumáticos. No meio desta aflição consola-me sequer de que não morreu vítima de nenhuma dificuldade maior: nem dinheiro, nem doença, nem mulher. Nada. Matou-o a sua imaginação exacerbada pelo capacete do ozote  (ozono) de ilha. Era uma tentação antiga: duas vezes o desarmei, e uma no instante em que se ia matar. E então havia um motivo mulher. O nosso pobre Antero não tinha a filosofia bastante para perceber que da vida nem vale a pena nos desfazermos.
Era um alucinado da metafísica e provavelmente acabou julgando ir viver num mundo melhor. Acabou-se. Adeus.
Abraço-te meu José Maria, abraço-te n'elle.
Oliveira Martins.»
 
A morte era-lhe uma tentação ou atracção constitucional e obsessiva, diz então um dos seus maiores amigos, respaldado nos muitos momentos em que estiveram juntos e na sua obra poética onde tal palavra, tema e realidade tantas vezes está presente. Talvez possamos pensar que Antero de Quental tinha já um pressentimento ou intuição do seu destino e de como depois de a cortejar e poetizar tanto acabaria por se entregar a ela voluntariamente, em vida, e não num noivado de sepulcro depois de uma morte natural.
Era uma matriz que estava em si e que soubera desafiar enquanto líder estudantil, enquanto espadachim em duelo de desagravo literário no Porto com Ramalho Ortigão, enquanto revolucionário socialista desafiando o marasmo burguês com as Conferências do Casino ou nos encontros no meio do rio Tejo com os representantes da Internacional Socialista, enquanto embarcadiço  na viagem marítima tempestuosa aos Estados Unidos da América, que tanto o desiludiu, e, finalmente, nas relações amorosas nas quais o coração sensível e intenso como o dele pode ser ferido quase de morte, ou não fosse ele um cavaleiro de Mors-Amor, tal como Oliveira Martins relata embora exagerada ou dramaticamente (Antero a matar-se diante de outra pessoa?), em relação à sua última paixão, em 1878, com a Clotilde que ele conheceu nas termas francesas de Bellevue, quando andava na procura da cura psico-somática.
 Contudo Oliveira Martins sossega Eça de Queiroz, que escreveria pouco depois demoradamente o seu mítico texto para o In Memoriam de Antero, no qual Oliveira Martins também dá um contributo notável, até merecedor de ser equacionado com esta resposta mais telegráfica, mas que alongaria demasiado este texto.
Antero matara-se, segundo Oliveira Martins, pela sua imaginação excitada pelo capacete climatérico insular, exacerbada pelos problemas que o rodeavam, e que intensificaram a sua característica de "alucinado da metafísica". Dá contudo com esta expressão mais veracidade à capacidade visionária de Antero, algo que já surpreendera a "luso-alemã" Carolina Michaelis, conforme a advertência que fez ao tradutor Wilhelm Storck  da qualidade e sinceridade dos sonetos de Antero, que seriam vivenciados por ele quase que vindos do inconsciente.
 Já ao contrário,  Oliveira Martins, mais pragmático ou utilitarista e pouco metafísico, considerando que a vida vale tão pouco  que não se justifica morrer-se desfazendo-se dela, ou suicidando-se, acha que Antero teria sido limitado na sua filosofia, pois matara-se pela vida. 
Ora é evidente  que, pela sua proverbial sinceridade e entrega plena à vida, Antero de Quental era um homem de causas, de missão, e sentindo-se já sem elas, ou mesmo desiludido delas, conforme se dera uns meses antes com o naufrágio da reacção da Liga Patriótica do Norte que ele liderara face ao Ultimatum do imperialismo inglês,  ultrapassada há muito a fase poética (desde 1884, antes mesmo da publicação dos Sonetos em 1886), transmitido o seu pensamento filosófico, ainda que abreviadamente, com a publicação das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, em 1891, e tendo de separar-se das suas duas pupilas agora mais crescidas, sentiu que chegara a grande hora de tomar a sua cicuta, como Sócrates, a quem aliás se comparara no sentido de que, mais do que escrever, gostaria de exercer o dialogo maiêutico e ter um discípulo como Platão. E assim partiu voluntariamente e ousada e arriscadamente através do abraço ou da mão da Morte, que tanto amara, para o mundo espiritual, num banco do jardim sossegado, ou talvez espantado, na noite imensa, na pequena ilha no meio do Oceano.
Diz ainda com alguma perspicácia, ironia e descrença Oliveira Martins, que Antero  "provavelmente acabou julgando ir viver num mundo melhor. Acabou-se".
Para que níveis do mundo subtil e espiritual Antero foi não sabemos, nem vamos agora especular, Não "acabou" pois, e talvez a bela e sentida frase de camaradagem inter pares ou comuns amigos que ele lança em seguida para Eça seja até um prova disso: "abraço-te nele". Ou seja, abraço-te ao modo dele, abraço-te como se Antero estivesse também a abraçar-nos, no seu corpo espiritual, constitucional e imortal, ou abraço-te na comunhão do seu espírito e alma.
Possamos nós aprofundar a nossa identidade espiritual, purificar e concentrar a nossa visão interior, na comunhão com o corpo místico e o Graal da Tradição cultural e espiritual Portuguesa, e com os mestres, santos e santas e os anjos, na adoração divina.
                  

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