domingo, 8 de março de 2020

As Sereias. Quadras populares recolhidas por A. Tomás Pires, contextualizadas e actualizadas.

                                                      Das SEREIAS
As sereias são seres que surgem numa tradição imemorial espalhada desde os quatros cantos do mundo, correspondendo a seres femininos ligados com a natureza pura, ou mais especificamente o mar e os rios, embora tanto surgindo como aves-mulheres com asas, como seres com cauda de peixe e corpo de mulher, e outras variantes significativas na sua representação.
A sua origem prende-se em parte com o inconsciente colectivo da humanidade que leva consigo as suas origens marítimas, e sobretudo da mulher, com o oceano do seu ventre, sexualidade e maternidade, delas emergindo estes seres subtis e misteriosos, belas imagens da fecundidade primordial da natureza e das suas forças formativas e elementais.
Ora enquanto corpo e alma, o ser humano sempre terá no corpo uma ligação muito forte com a fecundidade dos elementos da Natureza, e logo do mar, dos ares, das aves e dos peixes, e daí as pulsões fortes de fertilidade, sexualidade, fusionalidade, intuição, subtilidade e dissolução tão bem simbolizadas e personificadas nestas figuras.
Foi na Grécia que se desenvolveram muitos mitos e narrativas delas, sendo o seu nascimento, numa versão, atribuído à conubio ou unio do rio Acheloo, a torrente que desce do monte sagrado Pindo, e potestade celestial a quem os oráculos de Dodona mandavam propiciar ou oferecer sacrifícios, com a ninfa Calíope, aquela que veio a ser invocada ou propiciada por Luís de Camões para o inspirar nos Lusíadas.
Alguns seres acreditavam na existência física delas, surgindo por exemplo na Odisseia, de Homero, no canto XII, em cima de penedos no mar com seus cantos maravilhosos tentando seduzir os navegantes e obrigando Ulisses a tapar os ouvidos dos seus marinheiros e ele próprio a ser amarrado para poder ouvir os incólume os seus cantos irresistivelmente atraentes, poderosos e elevantes mas perigosos já que os poderiam precipitar em correntes e escolhos fatais.
                          
Já outros seres humanos consideram-nas seres de planos subtis, ou seja, espíritos da natureza ligados à água, aos mares, o que estará mais próximo da realidade, parece-me, ainda que certamente muita mulher, junto ao mar, deitada ao Sol sobre a areia, possa parecer uma sereia...
Ora como as subtis ou invisíveis entidades das forças formativas da natureza não estão dotadas de uma individualidade espiritual imortal compreende-se a sua atracção pela união com os seres humanos, donde muitos contos populares atestarem tal desejo ou aspiração, extensiva às moiras encantadas de tantos penedos e covas. 
Ainda pelo lado da sua interioridade e inconsciente, o desejo do homem de uma mulher mais especial ou fantástica, facilmente intensificou a sua imaginação em relação a tais seres, tanto mais que qualquer mulher tem de certo modo uma natureza de sereia, de ser aquático ondulante e passional e nos mundos dos apaixonamentos, sonhos e imaginações tais fronteiras esbatem-se facilmente.
 A sereia adquiriu, para produzir efeitos religiosos e moralizantes, o significado de figura da tentação, do amor fatal, daquele que é tão poderoso que um homem se esvai e morre nele. Mas certamente é verdade que o contacto com tais entidades da natureza física subtil ou invisível pode ser perigoso e desviante, ou ainda que as paixões demasiado intensas e prolongadas podem exaurir os seres do equilíbrio e mobilidade que lhe são necessários.
Em Portugal e Galiza temos várias lendas e leituras morais delas, esculpidas em capitéis românicos (nomeadamente no Caminho de Santiago), em altares barrocos (muito no Brasil, terra mítica de sereias) e até há relatos, tal o do insuspeitado historiador humanista e erasmiano Damião de Goes que narra com credulidade o caso de uma sereia que teria dado à costa em pleno séc. XV. Dalila Pereira da Costa, querida amiga e anfitriã de retiros nas faldas do Marão, consagrou-lhe algumas páginas e uma imagem (dum azulejo seu do séc. XVI-XVII) bem valiosas na sua incontornável obra de revisitação da espiritualidade antiga lusa.

Entre nós um pioneiro etnógrafo de valor, António Tomás Pires, cuja correspondência com José Leite de Vasconcelos me encantou no começo da minha adolescência, no final do séc. XIX publicou um pequeno folheto, hoje muito invulgar, intitulado Tradições Populares Portuguesas. - Conceito Popular de Sereia, que resolvemos transcrever.
No decorrer da transcrição juntamos três quadras nossas, que identificaremos posteriormente. nos comentários, tornando-os um enigma, e considerando este conjunto de quadras populares uma obra em aberto, que impulsione a unificação das nossas energias mais profundas numa auto-consciência maior junto ao oceano do amor divino e seus seres...

«Pelo canto da Sereia
Se perdem os navegantes
Choram os pais pelas filhas
As sécias pelos amantes.

Ouvi cantar a sereia
No meio daquele mar,
Muitos navios se perdem
Ao som daquele cantar.

Rei dos bicos o leão
Dos peixes é a baleia
Das aves o gavião
Para cantar a sereia.

No cantar sou a sereia
Na formosura o pavão;
Tens abaixo das estrelas
Uma flor com perfeição.

Tenho combatido guerras,
No cante com as sereias,
Tenho corrido mil terras
Cidades, vilas e aldeias. 

Esta noite à meia noite,
Ouvi um lindo cantar
Cuidava que eram os Anjos
Era a sereia no mar.

Sereias cantam tão bem
como os melhores Anjos,
Saibamos escolher bem
A que trará mais amor.
 
Lá no mar anda a sereia
Correndo como a perdiz;
Não te gabes que me deixas
Fui eu a que não te quis.

A sereia anda no mar
Anda à roda, torce, torce
Ainda está para nascer
Quem de mim tomará posse.

A sereia anda no mar,
Anda à roda do vapor,
Ainda está para nascer
Quem será o meu amor.

A sereia quando canta
Canta no meio do mar
Quantos navios se perdem
Pela sereia cantar.

Quando eu oiço a sereia
Minha alma se ilumina.
Sei que o nosso amor
É, no Oceano frio, calor.

Sereia da minha alma,
Desentorpece meus ouvidos.
Abramos mais o coração
E geremos a paz da união.»

Antero de Quental e a Mulher. "A Propósito de umas poesias de D. Henriqueta Elisa". Com vídeos.

Antero de Quental em 1864 publicou no jornal Século XIX, de Penafiel, dos seus amigos Joaquim de Araújo e Germano Vieira Meireles,  duas poesias de uma senhora, D. Henriqueta Elisa (que acabara de dar à luz o seu segundo livro, Lágrimas e Saudades), antecedidas dum  texto valioso sobre a Mulher, em especial a que escreve.
Como tal escrito não se encontra ainda na web e hoje é o Dia da Mulher resolvemos transcrevê-lo do volume I, das Prosas, Coimbra, 1923, de um exemplar que pertenceu a António Alvim.
A Propósito de umas poesias de D. Henriqueta Elisa.
«Um nome de uma mulher purifica a página onde se escreve, como uma só planta de aloés purifica uma floresta inteira.
Os dedos grosseiros da crítica não tem que ver com estas finíssimas, impalpáveis teias de seda, suspendidas entre flores, onde o céu deposita as pérolas dos seus rocios da madrugada. São invioláveis como o mistério, porque são misteriosas como a verdadeira belezas estas poesias, que as mulheres escrevem como nós choramos - quando as mulheres sabem chorar... como nós escrevemos.
- Basta ter um coração. Um coração feminino! Não há princípio de estética transcendental, a mostrar-nos o caminho do belo, como esta bússola de oiro sempre virada para o Norte misterioso do sentimento.
A ideia do homem corre desatinada, como folha solta da árvore, impelida por aquele vento rijo e frio que se chama a Dúvida.
Mas a intuição da mulher, como pomba que voa direita ao ninho, sem bem ver, sem bem saber como, anima logo com a corrente de ar que a há-de levar ao último horizonte da harmonia.
Quem adivinha é a alma: a Sibila da humanidade, que prediz as quedas e as tristezas do coração! a feiticeira do mundo, que deita as sortes e ensina o caminho da felicidade perdida!
Como é flor tudo o que cai da amendoeira em chegando a primavera, assim é poesia e beleza a chuva de flores ou lágrimas, que a alma, sacudida pela inspiração, deixa cair sobre o solo duro da vida.
Ora na mulher tudo é alma. Um seu cabelo que o vento levasse correndo pelo espaço, seria isso bastante para encher o Universo de mais espíritos do que sonharam Milton e Klopstok. Um seu olhar, se o céu se despovoasse de seus anjos, seria o bastante e povoa-lo de novo das suas miríades.
Eu creio de fé na beleza destas poesias, que as mulheres escrevem com mão trémula, todas inclinadas sobre os ecos mais íntimos o coração. A minha poética, por mais larga que seja, tentando avaliar a extensão daquele eter puríssimo, parece-me então tão disforme como um anão pesado e curto, que pretendesse medir, pela medida dos seus passos, a distância que separa dois astros no céu.
Não batas numa mulher, nem mesmo com um ramo de flores - dizia a doce mas profunda sabedoria do Oriente. Ora a crítica é um molho de espinhos.
Sintamos a beleza destas poesias e não as discutamos. A arte, que discute e pensa e estuda, pode deslumbra-nos com a irrupção dos seus esplendores - mas só o coração nos sabe fazer chorar. -
Entre um frase e uma lágrima quem hesitará?...
Uma lágrima é a melhor poesia.
É esse o soberano poema da mulher - a Piedade.»
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Seguiam-se as duas poesias, Guia dos Túmulos, que lemos e comentamos, e Lembras-te.  
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Lemos e comentámos o texto em dois vídeos de 5 e 20 minutos. 
Agora por escrito deste texto juvenil de Antero realçaremos algo do que ele diz do coração e da alma, níveis interiores do ser em muitos aspectos coincidentes: o coração sensível como bússola, pelos seus sentimentos e intuições, do Belo, do Bem e da Verdade. E a alma feminina que adivinha ou intui, a partir do seu sentimento e amor, por contraposição ao pensamento e à dúvida do homem, e que  se expande nas dimensões subtis próprias, ora no no campo unificado de energia consciência que une todos os seres ora nas profundezas da sua intimidade, onde escuta a voz interior ou os ecos que a inspiram no seu caminho de medianeira entre a terra e o céu, como lhe chamará Antero de Quental noutro dos seus três textos dedicados à mulher, A Influência da Mulher na Civilização, de 1860-61. 
Possa esta missão de religar a terra e o céu, o corpo e o espírito, a Humanidade e a Divindade desenvolver-se cada mais harmoniosa e livremente em todas as mulheres-almas da Terra, libertas de tantas opressões masculinas políticas, sociais e religiosas.
Ligação à 1ª parte de 5 m.:
                    

Dia da Mulher em 2020, ou 2021. O que se pode dizer ainda de importante? Sempre muito, mesmo que sem palavras......

O que se pode dizer ainda sobre a Mulher, no ano da graça de 2020 ou de 2021, que não tenha já sido pensado, sentido e dito por muita gente, ao longo de tantos séculos e, consultando a Mnemosyne (a deusa grega da memória) de Dante Gabriele Rossetti (na imagem), desde Petrarca e Laura, Dante e Beatriz, Pedro e Inês, Camões, Bocage, Alcipe, Antero de Quental, Leonardo Coimbra e Florbela Espanca?
                                              
Como poderemos nós contribuir para o aprofundamento e valorização da mulher no quotidiano e da essência feminina, para que hajam cada vez mais boas vivências, criatividades e acções em liberdade e fraternidade?
Como manifestarmos a nossa gratidão pela sua existência, como gritarmos da alma ou aludirmos nas entrelinhas às mulheres que nos criaram em crianças, às mulheres que nos inspiraram, ajudaram ou  amaram enquanto jovens e homens, e mesmo às do futuro, que desejamos conhecer? 
 Que flores e cantos, aromas e músicas, abnegações e doações devemos gerar, despertar, suscitar e irradiar? Para quem mais em particularmente se dirigirão, quais setas de cupido, desejando saúde e prosperidade, criatividade e felicidade?
E agora, numa época em que as especificidade de cada uma das polaridades têm sofrido um ataque forte de nivelamento redutor, asséptico, voluntarista, quase que pretendendo negar ter o Universo sido manifestado e desenvolvido através das duas polaridades, nascendo os seres humanos num dos dois sexos complementares, qual deverá ser a nossa palavra e irradiação anímica esclarecedora, ou mesmo acção defensora?
Sem dúvida, valorizando a especificidade e individualidade feminina, tal como a masculina, com as suas características mais acentuadas de receptividade e sensibilidade, maternidade e sacrificialidade, amor e compaixão, delicadeza e beleza, ainda que certamente cada ser humano tenha as duas polaridades dentro de si e, portanto, lhe caiba harmonizá-las de acordo com as suas capacidades e tarefas nesta vida e de acordo com a osmose que fará com quem se casa, vive ou namora.
A mulher transmite algo das suas energias e qualidade femininas ao homem, tal como este transmite as suas à mulher, seja apenas pela palavra,  pelo contacto ou mesmo pela fusão corporal e anímica, neste caso momentos tão fortes quão sagrados, ao possibilitarem uma vivência maior do Amor e da Unidade ou mesmo da adoração e visão da Divindade.
 O objectivo das polaridades é a atracção e a gestação de novas formas de vida, de sentimento, de pensamento e de ser.  Logo, qualquer amizade e união deve nascer da atracção e da complementaridade, num processo alquímico, por vezes difícil, para gerar transformações internas e externas e um crescimento da consciência em vários níveis, já que pelo amor deixamos de sentir e pensar tanto só em nós, mas passamos a ser mais um com o outro, e podemos assim tornar-nos mais inspirados e conscientes do campo unificado de energia consciência que liga todos os seres e no qual vivemos enquanto almas espirituais, certamente de acordo com densidades ou afinidades e a nossa maior ou menor abertura...
Esta abertura ao todo pelo amor é muito importante, pois deixamos de sentir que somos apenas corpos de origem animal e cérebros já muito humanizados e repletos, e sentimo-nos antes como almas subtis, luminosas, bem mais vastas e livres do que a sociedade ainda tão patriarcal, violenta e crescentemente manipulante-controlante tenta  impor, nomeadamente com a tão suspeita pandemia e suas medidas restritivas. Temos assim que fortalecermo-nos bem a dois ou em grupos a fim de assim se comunicar e comungar conhecimentos afins e libertadores, para que haja uma luminosidade maior na humanidade e na Terra, que é também Gaia, Mulher, Mãe, Amante, Mátria...
 A mulher é então a grande criadora e enriquecedora do espaço livre de fecundidade e prosperidade em crescimento e diálogo, ao irradiar e ao originar, ora  lutadora ora como musa, mais força, amor, beleza e aspiração nos seres e no Universo,  manifestando assim a misteriosa e sublime Polaridade Divina Feminina, aqui e acolá identificada com a Santa Sophia, o Espírito Santo, a Shakti...
Talvez se possa ainda realçar que muito provavelmente é um erro, uma mistificação, crer-se que as pessoas têm vidas sucessivas com polarizações diferentes, ou seja, que já fomos mulher ou homem, pois através disso gera-se mais facilmente uma tendência a desvalorizar-se a polarização actual, mas que é aquela com a qual cada ser pode realizar-se espiritualmente e não invertendo-a. São aspectos subtis e graves, mas pouquíssima ou raríssima gente poderá equacionar com sabedoria ou mesmo conhecimento tais aspectos já do domínio subtil das individualidades imortais e dotadas de uma polaridade imutável.
Terminarei este breve ensaio  com um agradecimento profundíssimo e bem amoroso às mulheres que mais amei, apenas platonicamente ou também fisicamente, bem como às que mais me amaram, igualmente platonicamente ou não, sem esquecer a mãe e quem me cuidou, amou e instruiu em criança. E, finalmente, invocarei essa misteriosa alma-gémea, ideal sempre flamejante no coração e nas profundezas e cumes dos nossos seres  e que, realizada ou não, nela mesma ou nas que a representam, deve ser sempre fonte de vivência mais intensa e profunda com quem nos relacionarmos mais amorosa elevando a nossa identidade e origem a um plano primordial de Unidade no mundo espiritual, donde parece que vimos, alguns seres mais sentindo tal, saudosamente, tal a amiga Dalila Pereira da Costa, uma das musas da nossa tradição espiritual, tal como Alcipe, Florbela Espanca, Natália Correia e demais criativas, a quem saudamos, e a si, neste dia, de 8 de Março de 2021.
E acrescentarei três imagens, de inspiração. 

sábado, 7 de março de 2020

As casas e portas do Porto serão mais belas que as de Lisboa? Uma travessia rápida...

As casas e portas do Porto serão mais belas que as de Lisboa, eis uma interrogação que se gerou na minha alma (para não falar da cidade em si e seu rio, ou mesmo suas gentes tão tipologicamente tradicionais ainda) aquando de uma breve travessia da invicta cidade, por ocasião de ir pronunciar umas palavras na inauguração da exposição de pintura de Madalena Leal, no espaço Altice, na rua Tenente Valadim. 
Viera a pé da estação da Campanhã, no dia 5.III.2020, e eis algumas das imagens colhidas, as duas primeiras na mítica rua do Bonfim, pois não só todos desejamos um bom fim de vida, com mais ou menos (mas pelo menos suficiente...) Arte de Bem viver e Arte de Bem morrer desenvolvidas, (conforme a divisa do patrono da cidade, Infante D. Henrique, Talent de bien faire, Talento (ou tentando) de Bem Fazer, e que Fernando Pessoa tomou como lema da sua ordem templária que procurou fundar, como por ter durante vários anos dado aulas de Agni Raj Yoga no espaço de alimentação e práticas alternativas, Suribachi, ainda hoje a funcionar, e bem. 
A maior parte das imagens vêem da rua Sacadura Cabral, onde aliás encontrei um amigo, António Maria Pinheiro Torres, que abrira uma loja livraria Passado e Presente já há dez anos e que eu desconhecia. Depois destas fachadas de casas aos estilos Arte Nova e Art Deco, que dos finais do séc. XIX e começos do XX embelezam tanto o Porto, surgirá uma  especial moderníssima, a casa da Música, irradiante de harmonias de geometria musical, sendo as últimas três fotografias já na finalizadora rua Tenente Valadim...
Boa peregrinação...
Varandas, sótãos e mirantes que aspiram ao Sol, ao Oriente, ao calor e ao Amor, e que se alinham, sob o céu azul e enevoado, numa rua como casas e faces que bordejam e contemplam o rio sagrado da vida, e que no seu som silencioso se harmonizam e pacificam...
Um pingo da graça do céu, humano ou divino, harmoniza-nos bastante e estas formas recolhem diálogos imemoriais com as nuvens e elementos da natureza.
As aves extraem se for preciso do lixo ou do desagradável as forças para as suas asas baterem, voarem, por entre rosas moradas humanas...

Estas mandalas no alto da portas sugerem que, mais do que servirem para deixarem entrar o Sol, o invocam para proteger a casa e os seus habitantes. Parece mesmo um culto solar, pouco reconhecido na história da Arte, e a serralharia artística portuense esmerou-se nestas representações que são autênticas mandalas, centros concêntricos e irradiantes, harmonizadores de quem os contempla com mais sensibilidade e osmose.
Varandas que desejam proclamações anterianas, janelas que reflectem as tão mutáveis nuvens brancas e o azul infinito do céu, casas que gritam a palavra Amor na surdina ou no ruído da cidade de habitantes já algo adormecidos a estes sortilégios do granito, do vidro, do ferro, do azulejo, da alma das casas...
Árvores, arbustos e camélias de mil cores que parecem brotar por entre as construções coesivas e defensivas das domus pessoais, como manifestações da Natureza unificadora e mãe de todos...
Raios cálidos do sol que em algumas das portas atravessarão um pequeno olho, qual rosácea, e depositam nas mãos de quem escreve um pouco da poalha cósmica que inspira o Amor a continuar o seu culto da Palavra imortalizadora, tanto no papel como no nosso corpo espiritual.... Aummm...

Conseguirmos deter o fluxo da impermanência na observação pura e no ser espiritual...
Estas casas tão enriquecidas ao longo das décadas do tempo exterior e das vivências interiores, quem as sabe, sentir, amar, para delas ver ou mesmo receber alguns dos seus segredos? De uma alma a elas sensível conheci eu, Dalila Pereira da Costa, que tanto a urbe  do Porto amava que o sonhava transcendendo as limitações do tempo e do espaço; e também conheci um seu discípulo nessa arte da memória local e que também fora agraciado com um ou outra visitação de tal penetração nos tempos e ambientes passados...
A Grécia, com os seus filósofos, cientistas e oradores, com Pitágoras, Sócrates, Platão e Euclides, também perpassa pela rua Sacadura Cabral, ou não fosse este um aviador ligando mundos e continentes, tal como a arquitectura e a arte também poderosa e belamente o realizam...
A Casa da Música acolhe a arquitectura moderna enquanto arca e caixa de ressonância da Arte  musical como curadora perene das almas e dos seus ritmos
Fachadas que suspiram por flores e pessoas nas suas janelas e varandas... Quando se instituirá o culto criativo do dia da Janela e da Varanda?
Haverá ainda pessoas a congregarem-se à volta das leituras bíblicas, presas da letra que mata, ou terão conseguido os que por aqui se reúnem libertar-se da primitiva concepção de Deus que foi Jehová, e antes vivem o seu Deus de amor vivo nelas?
Um Bairro, casas modestas que albergaram vidas humildes ou difíceis, que daqui se erguiam em cantos matinais de esforço e de amor... Uma rua grande, uma comunidade próxima de famílias, o que desenvolve a fraternidade, qualidade bem necessária ou mesmo fundamental no Caminho... Saibamos ir descobrindo e cultivando as almas afins ou mais familiares...

domingo, 1 de março de 2020

Os "Adágios", de Erasmo. " Lar, doce lar." Comentário (com vídeo) de Pedro Teixeira da Mota.

                        
Os Adágios de Erasmo vieram a ser considerados no século XVI o melhor concentrado da sabedoria antiga, e o que nascera como Adagiorum Collectanea, uma Colectânea de Adágios, oitocentos e dezoito, extraídos de uns poucos de livros greco-romanos, em 1500, pela necessidade em Paris de obter dinheiro, já que na fronteira inglesa fora espoliado dos  ganhos a ensinar em Inglaterra, obteve tal sucesso (ainda que ele confessasse as limitações pela rapidez com que a publicara), que rapidamente se tornou uma súmula, um manual, um vademecum não só dos humanistas europeus e dos mestres escolas, mas também do público leitor interessado na sabedoria contida nos provérbios antigos, com as suas fontes clássicas (de autores como Plutarco, Ovídio, Platão, Aristóteles), e nos comentários que lhes acrescentava, oiro sobre azul, de Erasmo...
 Foi crescendo, melhorando, em sucessivas edições, destacando-se nesse anel de graças, primeiro, a edição seguinte, oito anos depois, em 1508, realizada em Veneza, aquando da sua estadia na casa e tipografia de  Aldo Manuzio, onde verdadeiramente melhorou muito o seu grego, passando de 818 para 3260 adágios, e de simples transmissão retórica a aprofundamento de implicações históricas, morais e filosóficas,  destacando-se neles as considerações sobre a empresa ou marca tipográfica do sábio Aldo Manuzio: Festina lenta, Apressa-te lentamente.
Na  edição de Basileia, 1515, de Johann Froben (cuja marca tipográfica, e tão simbólica no seu caduceu, reproduzimos em baixo), começa a comentar mais no contexto da época, com críticas ao belicismo e injustiça dos governantes. 
Grande alma dedicada ao studium (que significa tanto estudo como esforço, e na sua biografia, incluída no Modo de Orar a Deus, que Álvaro Mendes e eu traduzimos e comentamos, torno  tal bem patente), Erasmo vai em sucessivas edições  melhorando e acrescentando a obra até que, uns meses antes de morrer em 1536, serão 4151 os provérbios explicados e comentados, e que ficarão assim connosco para sempre, lidos e aprofundados por tantos grandes seres: Montaigne, por exemplo, dirá que se encontrasse um dia Erasmo, esperava vê-lo falar quase só por adágios e provérbios. E, claro, o próprio Erasmo reconheceu neles sentidos realmente bem profundos e elevados, numa citação no prefácio aos Adágios: «Plutarco (no tratado que fez intitulado Quo pacto sint audiendi poetas) [De que modo são ouvidos os poetas] considera que os adágios dos antigos eram semelhantes aos sagrados Mistérios, nos quais as coisas mais importantes e divinas costumam expressar-se sob cerimónias insignificantes e na aparência quase ridículas.»
Resolvemos escolher um deles e comentá-lo. Intitula-se Domus amica, domus optima, Casa amiga, casa óptima, ou no nosso adagiário, Lar, doce Lar, sendo de facto um adágio universal, muito rico de variantes. A gravação, realizada após a leitura rápida das considerações de Erasmo, poderia ser bem mais prolongada, quer tocando mais rigorosamente e em todos os exemplos e aspectos referidos por Erasmo, quer no que eu sentisse mais actual para o  aprofundamento e amor das ideias potenciais que a casa ou ambiente amigos, harmoniosos ou amados proporcionam e estimulam. Mas algo da comunhão  erasmiana  foi actualizado, e anoto  Damião de Goes e José V. de Pina Martins como dois dos elos mencionados na gravação...
Boas inspirações e realizações no amor à casa pessoal e planetária.
Saibamos harmonizar os locais onde estamos para que eles possam reflectir boas energias, ideias, ideais, almas luminosas, para o Bem de todos... 
Saibamos atravessar ou plenificar as nossas casas com boas energias de harmonia e  hospitalidade, gratidão e amor.... 
   Post-scriptum: Tratei de certo modo deste adágio, nas suas dimensões energéticas e subtis na http://revistatransdisciplinar.com.br/edicao/vol-15-ano-8-no-15-1o-semestre-2020/ 
               

domingo, 23 de fevereiro de 2020

18 Ex-Libris de simbologia Feminina, da colecção Luís Derouet, legendados por Pedro Teixeira da Mota.

Nos Ex-libris, pela minha experiência ao consultar a colecção de Luís Derouet (e não só), são as imagens de livros, bibliotecas e suas associações simbólicas  o que predomina, contudo outros temas ou sujeitos das gravuras ou emblemas destacam-se, nomeadamente a Natureza, a Mulher, a Casa, os Heróis, os Anjos, o Amor, o Erotismo, a Religião, os Animais, as profissões, o Cosmos, etc.
Com efeito, se na sua origem estas marcas de posse dos livros eram em geral constituídas por brasões de famílias e os nomes dos possuidores, nos séculos XIX  e XX a imaginação e criatividade imensa de donos e artistas gerou milhões de desenhos personalizados que, embora semi-ocultos no interior dos livros (ao contrário dos super-libros, ostentados nas encadernações), não são de menosprezar ou de esquecer para a História das Mentalidades e do Livro, sobretudo pela riqueza do simbolismo, da sabedoria, do amor e da arte que os animaram ou animam.
 Escolhemos então dos ex-libris 18, número lunar na tradição do Tarot, nos quais a mulher é o centro ou o sujeito principal, a que acrescentei legendas, o 1º sendo do século xx uma das revistas portuguesas mais importantes, não só pelos colaboradores mas pelo que defendiam e inspiravam, a Seara Nova, apresentando a mulher nua (qual lâmina 21 do Tarot) símbolo da verdade e da liberdade a que aspiraram, frequentemente sob repressão da censura do Estado Novo. 
 Possamos nós receber algo destas mensagens, pois tal repressão  mesmo no séc. XXI continua, por vezes mesmo muito violenta, ou então invisível, em alguns países, e devemos todos resistir e, sem dúvida, a mulher e a sua sensibilidade e visão do mundo serão sempre factores determinantes na evolução da Humanidade, pelo que o meditar e contemplar estas imagens e frases  será útil a elas e a todos...