domingo, 8 de março de 2020

As Sereias. Quadras populares recolhidas por A. Tomás Pires, contextualizadas e actualizadas.

                                                      DAS SEREIAS
As sereias são seres que surgem numa tradição imemorial espalhada desde os quatros cantos do mundo, correspondendo a seres femininos ligados com a natureza pura, ou mais especificamente o mar e os rios, embora tanto surgindo como aves-mulheres com asas, como seres com cauda de peixe e corpo de mulher, e outras variantes significativas na sua representação.
A sua origem prende-se em parte com o inconsciente colectivo da humanidade que leva consigo as suas origens marítimas, e sobretudo da mulher, com o oceano do seu ventre, sexualidade e maternidade, delas emergindo estes seres subtis e misteriosos, belas imagens da fecundidade primordial da natureza e das suas forças formativas e elementais.
Ora enquanto corpo e alma, o ser humano sempre terá no corpo uma ligação muito forte com a fecundidade dos elementos da Nnatureza, e logo do mar, dos ares, das aves e dos peixes, e daí as pulsões fortes de fertilidade, sexualidade, fusionalidade, intuição, subtilidade e dissolução tão bem simbolizadas e personificadas nestas figuras.
Foi na Grécia que se desenvolveram muitos mitos e narrativas delas, sendo o seu nascimento, numa versão, atribuído à conubio ou unio do rio Acheloo, a torrente que desce do monte sagrado Pindo, e potestade celestial a quem os oráculos de Dodona mandavam propiciar ou oferecer sacrifícios, com a ninfa Calíope, aquela que veio a ser propiciada por Camões, para o inspirar nos Lusíadas.
Alguns seres acreditavam na existência física delas, surgindo por exemplo na Odisseia, de Homero, no canto XII, em cima de penedos no mar com seus cantos maravilhosos tentando seduzir os navegantes e obrigando Ulisses a tapar os ouvidos dos seus marinheiros e ele proprio a ser amarrado para poder ouvir os incólume os seus cantos irresistivelmente atraentes, poderosos e elevantes mas perigosos já que os poderiam precipitar em correntes e escolhos fatais.
                          
Já outros seres humanos consideram-nas seres de planos subtis, ou seja, espíritos da natureza ligados à água, aos mares, o que estará mais próximo da realidade, parece-me, ainda que certamente muita mulher, junto ao mar, deitada ao Sol sobre a areia, possa parecer uma sereia...
Ora como as subtis ou invisíveis entidades das forças formativas da natureza não estão dotadas de uma individualidade espiritual imortal compreende-se a sua atracção pela união com os seres humanos, donde muitos contos populares atestarem tal desejo ou aspiração, extensiva às moiras encantadas de tantos penedos e covas. 
Ainda pelo lado da sua interioridade e inconsciente, o desejo do homem de uma mulher mais especial ou fantástica, facilmente intensificou a sua imaginação em relação a tais seres, tanto mais que qualquer mulher tem de certo modo uma natureza de sereia, de ser aquático ondulante e passional e nos mundos dos apaixonamentos, sonhos e imaginações tais fronteiras esbatem-se facilmente.
 A sereia adquiriu, para produzir efeitos religiosos e moralizantes, o significado de figura da tentação, do amor fatal, daquele que é tão poderoso que um homem se esvai e morre nele. Mas certamente é verdade que o contacto com tais entidades da natureza física subtil ou invisível pode ser perigoso e desviante, ou ainda que as paixões demasiado intensas e prolongadas podem exaurir os seres do equilíbrio e mobilidade que lhe são necessários.
Em Portugal e Galiza temos várias lendas e leituras morais delas, esculpidas em capitéis românicos (nomeadamente no Caminho de Santiago), em altares barrocos (muito no Brasil, terra mítica de sereias) e até há relatos, tal o do insuspeitado historiador humanista e erasmiano Damião de Goes que narra com credulidade o caso de uma sereia que teria dado à costa em pleno séc. XV. Dalila Pereira da Costa, querida amiga e anfitriã de retiros nas faldas do Marão, consagrou-lhe algumas páginas e uma imagem (dum azulejo seu do séc. XVI-XVII) bem valiosas na sua incontornável obra de revisitação da espiritualidade antiga lusa.

Entre nós um pioneiro etnógrafo de valor, António Tomás Pires, cuja correspondência com José Leite de Vasconcelos me encantou no começo da minha adolescência, no final do séc. XIX publicou um pequeno folheto, hoje muito invulgar, intitulado Tradições Populares Portuguesas. - Conceito Popular de Sereia, que resolvemos transcrever.
No decorrer da transcrição juntamos três quadras nossas, que identificaremos posteriormente. nos comentários, tornando-os um enigma, e considerando este conjunto de quadras populares uma obra em aberto, que impulsione a unificação das nossas energias mais profundas numa auto-consciência maior junto ao oceano do amor divino e seus seres...

«Pelo canto da Sereia
Se perdem os navegantes
Choram os pais pelas filhas
As sécias pelos amantes.

Ouvi cantar a sereia
No meio daquele mar,
Muitos navios se perdem
Ao som daquele cantar.

Rei dos bicos o leão
Dos peixes é a baleia
Das aves o gavião
Para cantar a sereia.

No cantar sou a sereia
Na formosura o pavão;
Tens abaixo das estrelas
Uma flor com perfeição.

Tenho combatido guerras,
No cante com as sereias,
Tenho corrido mil terras
Cidades, vilas e aldeias. 

Esta noite à meia noite,
Ouvi um lindo cantar
Cuidava que eram os Anjos
Era a sereia no mar.

Sereias cantam tão bem
como os melhores Anjos,
Saibamos escolher bem
A que trará mais amor.
 
Lá no mar anda a sereia
Correndo como a perdiz;
Não te gabes que me deixas
Fui eu a que não te quis.

A sereia anda no mar
Anda à roda, torce, torce
Ainda está para nascer
Quem de mim tomará posse.

A sereia anda no mar,
Anda à roda do vapor,
Ainda está para nascer
Quem será o meu amor.

A sereia quando canta
Canta no meio do mar
Quantos navios se perdem
Pela sereia cantar.

Quando eu oiço a sereia
Minha alma se ilumina.
Sei que o nosso amor
É, no Oceano frio, calor.

Sereia da minha alma,
Desentorpece meus ouvidos.
Abramos mais o coração
E geremos a paz da união.»

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