quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Miguel Torga, "Diário". 1º vol. Resumo crítico ético-espiritual, por Pedro Teixeira da Mota.

No mês quase já outonal de Setembro de 2019, passado em grande parte numa aldeia nos montes do parque do Gerês Peneda, não longe de Montalegre, nada poderia ser mais adequado em termos de sintonia transmontana que ler o Diário de Miguel Torga, no caso o 1º e 2º volumes, e em modo de visitação espiritual, ou seja, discernindo e sublinhando a lápis certos aspectos mais valiosos da sua sensibilidade e humanidade,  ou mesmo, fraternidade, ética e  espiritualidade.  Passei depois para o computador as anotações ou sublinhados do 1º volume, escrito a partir do ano da graça de 1934, quando Miguel Torga tinha 27 anos, e já publicara na revista Presença, e individualmente, poesia. Saíram ao todo 16 volumes, abrangendo as suas impressões, reflexões e poemas, este primeiro publicado em 1941 e o último com as suas impressões de 1993, deixando Miguel Torga a Terra em 17.I. 1995.
 Comecemos então a transcrever os principais sublinhados, referindo em primeiro lugar a pág. 13 pois nela fala do "corpo astral do seu sonho", num sinal de consciência dupla do mundo astral, quer como onírico quer como subtileza supra-material. Será que Miguel Torga admitia que a sua alma em corpo subtil ou astral se exteriorizava, dormindo, nos sonhos?
Já na p. 15 manifesta a sua grande humanidade e solidariedade com os que sofrem, os seus doentes, as mortes de crianças, e o estoicismo que é necessário para lidar com tal, nele provindo provavelmente tanto da terra, família, genética e educativamente, como da sua adolescência em  que tanto labutou numa fazenda no Brasil. E  depois, ainda, pela sua prática médica e o contacto com tanta gente sofredora.
Na p. 17 há um belo pensamento moral, que Antero de Quental também exprimiu nas suas cartas e no preâmbulo das Causas de Decadência dos Povos Peninsulares, e interrogamo-nos se o teria lido e inspirado mesmo: «Coimbra, 4 de Fevereiro de 1935 - Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde esse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e que natural é ter um amigo!»
Destaque para a sensibilidade ao ambiente de paz e como um abraço amigo pode ser forte, poderoso e simultaneamente calmante, reconfortante. 
(O pensamento de Antero de Quental, exposto nas Causas de Decadência dos Povos Peninsulares nos três últimos séculos, transcrito parcelarmente diz-nos:
«Não posso pois apelar para a fraternidade das ideias: conheço que as minhas palavras não devem ser bem aceites por todos. As ideias, porém, não são felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens. Independente delas, senão acima delas, existe para todas as consciências rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade. Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa fé e na tolerância recíproca! Uma região aonde os pensamentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-se lealmente a mão, e dizendo uns para os outros com um sentimento humano e pacífico: és uma consciência convicta! É para essa comunhão moral que eu apelo...». Fim da citação anteriana...
Na p. 18 assinala muito sentidamente a morte de Fernando Pessoa: «3 de Dezembro – Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era».  Sóbria escrita mas bem sentida e chorada a partida de uma alma. Ter-se-iam encontrado, ou apenas visto, algum dia na Brasileira do Chiado?
Na p. 23, a 4 de Abril 1936, compõe um dos seus belos poemas, que entremeiam o Diário, intitulado Imagem, consagrado a uma «macieira que floriu assim pela primeira vez./ Deu-lhe um sol de noivado, / E toda a virgindade se desfez/Neste lirismo fecundado./»
Na p. 27, de Vila Nova, 16 de Agosto, confessa a sua falta de fé e o desespero que isso lhe causa e, vendo a cara do vizinho que volta da missa,  prossegue com este matutar: «Não é que eu tenha verdadeiramente pecados, ou que, se os tivesse, algum Deus fosse capaz de me lavar deles (até o último aldeão sabe que quando muda um marco não há céu que lhe benza a maroteira). Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração.»
Um belo anseio que desejamos e esperamos que no fim da sua vida Torga, ou Adolfo Rocha, o tivesse assumido, e assim  avançasse mais fácil e luminosamente nos estados post-mortem ou, como ele diz e bem, "extra-biológicos".
Na p. 28, narra excelentemente em Coimbra, a 26 de Outubro,  a história do apelo dum namorado para ir  reanimar a noiva  desmaiada: «Subi umas escadas íngremes, estreitas e lavadas, entrei num quarto, olhei a Julieta adormecida, e dei-lhe uma bofetada imensa, funda, no rosto frio, que doeu à família toda. 
Acordou.
Entreguei a noiva viva ao noivo vivo, e vim por aí fora a pensar no que seria mais verdadeiro: se a linfa do desânimo que faz morrer tudo mal o Setembro chega, se o sangue instintivo que se guarda para reverdecer tudo mal o Março começa.»
E conclui com a analogia da natureza no seu ritmo morte vida, interrogando-se qual o mais verdadeiro, sem dúvida, o da vida, embora a morte e sobretudo o Outono e o Inverno sejam fundamentais seja na natureza, seja no ser humano, para o seu crescimento e desabrochamento pleno, este já extra-biólogo, no corpo espiritual, perene...
 
No dia seguinte, p. 29, tem um belo pensamento, acerca da necessidade de sabermos cuidar da nossa paisagem interior, libertando-a das negatividades ambientais, para ela poder receber o sol belo e forte de cada dia interiormente, salutarmente. Muito valioso conselho, pois após dias cinzentos e de chuva muitas vezes não nos abrimos mesmo gratos  no interior à claridade e calor solar que de novo se derramam sobre nós e o ambiente...
Na p. 30, fala duma «grande discussão sobre a mania que a posterioridade tem de publicar cartas íntimas de escritores mortos», concluindo «cá para mim, a humanidade nem tem o direito de tirar ao indivíduo aquilo que ele espontaneamente lhe não deu, nem de lhe engrandecer o nome contra a sua vontade», numa sua muito peculiar reserva quanto à publicitação, defendendo o preservar o seu íntimo, e assim o querendo também nos outros.
Um pensamento sobre os enterros valioso, ainda que num caso anónimo, e que devemos relembrar de quando em quando, e que é o de estarem sempre menos pessoas do que deveriam estar, vem na p. 33, em Coimbra, 12 de Janeiro de 1937, e outro ainda sobre os melhores meios de nos curarmos, muito bem expresso, crítico do aldeão que se trata deixando-se apenas na cama até se curar ou morrer, ainda que em certas doenças, sobretudo constipações e gripes, pode ser melhor tal atitude de purificação simples passiva, sem remédios, desde que acompanhado de alimentação e lavagens correctas.
Na p. 36 reflecte de novo sobre as mortes e cemitérios. E em Coimbra, a 27 de Julho, cita André Gide nos Pretextes a propósito de estarmos tão encantados com o que já possuímos que perdemos o sentimento agudo dos nossos defeitos, de tal modo que há mais artistas que obras de arte, concluindo que tal aviso devia ser dado de purgante a muita gente em Portugal, incluindo-se a ele.
A 18 de Dezembro, na véspera da sua 1ª viagem europeia, justifica assim o seu "registo do dia em notas sem pé nem cabeça":«Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente, sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário. Dito isto - embarco amanhã para a Europa.»
Da sua viagem pela Europa talvez a anotação mais bela seja a no «Alto dos Pirinéus (Lourdes), 24 de Dezembro – Sol. Uma luz maravilhosa inunda esta grande muralha que defende o meu Senhor Dom Quixote das tentações das Folie Bergères.
Olho estes cumes de neve imaculada, fria, e olho em baixo, na cidade adormecida, a morna gruta dos milagres. E, não sei porquê, donde me vem a certeza da salvação da vida, da pureza da alma, da saúde do corpo, não é do fundo. É do mais alto, branco e inatingido píncaro que os meus olhos peregrinos namoram». 
 Das observações das cidades que vai visitando, talvez a de Paris, sentida algo anterianamente, já que Antero de Quental sentira, face ao anonimato das multidões, um vazio de fraternidade nela, valerá registar: É de 14 de Janeiro de 1939 «(...) o homem perdeu aqui, mais do que noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que a criatura domine o criador (...) a impressão que se tira desta enorme multidão é de que não se trata de gente mas duma grande levada que as próprias ruas canalizam (...)»
A Bélgica não o satisfaz, e embora cante no poema Peregrinação, escrito a 16 de Janeiro em Antuérpia: «Vim ver em que lugar da Natureza/ As fadas desdobavam seus novelos./ Vim fechar o meu sol nesta tristeza/ Que enloirece os cabelos», sem que saibamos ao certo se as fadas são mulheres ou apenas os seres subtis da natureza,  no dia seguinte já em «Bruxelas, 17 Janeiro. Gare du Midi» confessa perante a possibilidade de passear ainda durante as 4 horas de espera, que «estou triste e desanimado como uma locomotiva fria aqui ao pé. Andar mais, era entristecer e desanimar mais ainda (...) Afinal, quanto mais ando, mais cercado me sinto de muros e de penumbra. O que levo daqui é uma espécie de luar gelado que não serve de nada na minha quente noite peninsular»
Ressalve-se que a época do ano era de facto a mais triste e fria, que não esteve nos campos e natureza bela, e que talvez o espectro da II grande Guerra já cobrisse essa zona tão martirizada da Europa.
Um salto de dois meses no diário, e na época da Páscoa o seu entusiasmo pelo regresso de uma semana tão necessária para recuperar forças n'«Este Trás os Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão e entra-se logo no paraíso.»
Seguem-se algumas notas valiosas (p. 69 e 71) sobre o ofício de escrever e uma descrição excelente de um momento mágico ou transfigurante a «9 de Outubro – Dia de caça. De manhã nos montes e barrocas de Valcanosa; de tarde nos campos do Mondego, primeiro no automóvel por caminhos demoníacos, depois com o Afonso Duarte, nos arrosais, às codornizes. Mas a grande hora, a hora única do dia, foi o momento em que o meu companheiro, o Vasco, os cães, o automóvel e eu, duma barcaça enorme, recebemos a bênção da lua cheia. Montemor ao longe, em terra-cota, sobre um renque de choupos. Um horizonte sem fim para onde o rio corria. A lua, vermelha como um balão minhoto, pendurada no céu. E aquela luz mediúmnica a penetrar tudo e a projectar a realidade em alma pura num écran distante. Nada que se possa figurar em palavras. Silêncio puro. Silêncio e o Afonso na margem esquerda, hirto, calado, irreal, como um deus antigo (...)». Poderemos mesmo dizer que tal momento de Lua Cheia foi uma vivência espiritual e para ele, apesar de bem descrita, considerada inefável, ao modo místico, e com uma captação e elevação bem original, que repetimos:  "E aquela luz mediúmnica a penetrar tudo e a projectar a realidade em alma pura num écran distante", no fundo dando sinal da sua vivência de expansão de consciência, ampliada, supra-corporal e na unidade superior da Luz omnipenetrante...
Na p. 80 tem duas anotações valiosas, um rapazinho marçano que a tocar flauta enche a rua coimbrã de uma melodia mágica, e uma comparação entre duas senhoras de negro a rezarem enquanto andam na rua e os tibetanos a rezarem ou a moerem nos seus moinhos de oração.
A 3o de Outubro de 1938 faz um rendido elogio ao Brasil que conheceu em jovem: «Filme sobre o Bornéu. Só nestas ocasiões, quando me encontro diante duma floresta tropical, é que sinto verdadeiramente o que significa toda a minha adolescência a romper ao húmus duma fazenda do Brasil. Foi um fermentar que nunca mais acabou em mim, porque se deu no meu corpo dos ossos ao coração. Nada que se possa dizer em palavras, porque não tem expressão condigna a quentura deste lume que recebi duma terra incendiada de vida, de força e de liberdade.»
E a 1 de Novembro descreve bem um eclipse total da lua e confessa que seria para lá que gostaria de ir morar após esta vida terrena, «desfeito em vago, astro frio, iluminado de saudade».
A 9 de Novembro dá uma outra receita da sua vida, ao modo pitagórico de rever o dia e nele observar o melhor e o pior:«Ponho-me a pensar no momento que seja a síntese deste dia...», e depois de resumir dois dramas, conclui que não, «que foi aquele em que dei um beijo gratuito numa criancita desconhecida que passou pelo consultório a acompanhar a mãe». 
 Passa bem esse Natal em «Trás-os Montes, 25 de de Dezembro – O dia foram as camélias e as trepadeiras que plantei com meu Pai. Poucas vezes, nestes trinta anos, me senti tão uno, tão certo, como junto daqueles setenta a plantar árvores. Porque meu pai, assim magro e assim debruçado sobre a terra, enche de paz e de confiança a inquietação mais desvairada».
A 12 de Abril de 1939, faz de crítico literário e conselheiro: «Riam-se lá, se quiserem, mas hoje, depois de reler [Aldous] Huxley, conclui que um dos maiores escritores que tenho lido é... o Júlio Dinis. Pondo de parte aquela santa Selma Lagerlof, que até parece mentira, poucos como ele souberam até hoje encher a minha alma de paz e de ternura. Bem sei que ser escritor não é fazer a entronização do Sagrado Coração de Jesus pela província. Mas também não é fazer morrer desvairados à sombra dum quarteto de Beethoven».
A 7 de Julho, em Leiria, escreve um dos seus poemas amorosos discretos e fundos, pleno de osmose e sintonia:       ACENO: Longe,/ Seu coração bate por mim;/ E a sua mão desenha aquele afago/ Que me sossega inteiro...
Longe,/ A verdade serena do seu rosto/ É que faz este dia verdadeiro.»
A 1-IX, nas Caldas da Rainha, a fazer seus tratamentos de termas, sofre com a promiscuidade de vizinhos:«Hoje ouvi tais coisas a uma viúva asmática, que me esqueci da garganta, da pneumonia possível, de tudo, e saí desvairado para a rua a encher os ouvidos e a alma da intimidade do silêncio»
Este apelo e necessidade do silêncio puro, quem não o desejou, mas quão poucos o conseguiram, parece ser um horizonte da alma sincera ou rude de Miguel Torga, verdadeira e sóbria.
Outro belo poema amoroso, nessas «Caldas da Rainha, em 12 de Setembro, PAZ: Calado ao pé de ti, depois de tudo,/ Justificado/ Como o instinto mandou,/ Ouço, nesta mudez,/ A força que te dobrou,/ Serena, dizer quem és/ E quem sou.»
É um poema que toca no amor e fusão carnal de dois seres, com bastante profundidade e até difícil de se compreender, pois Miguel Torga ouve a força que dobrou a mulher, e que força é essa, o Amor? E ouve-a dizer «quem és e quem sou». Que ser foi dito? O ser feminino e o ser masculino? Os eus que se exprimiram com o máximo de amor?
A 13 de Setembro faz nova recensão crítica: - As Fusées de Baudelaire. Decididamente, não pertenço a semelhante raça. Aquilo, de resto não é nada, a não ser o fígado a dar sinais de si. Ao pé dum Tolstoi, dum Morgan, dum Rilke, coisas assim parecem realmente vómitos biliosos».  De realçar estas suas três preferências...
E a 20 de Novembro sobre a música: «De dia, apenas um fado rigoroso, que Lisboa, pedagogicamente, mandou à província pelas ondas hertzianas.
Uma mulherzinha a gemer cio com tal convicção, que eu nem sabia se era a sua laringe que cantava, se era o seu sexo.
Sem ofensa para ninguém, é claro. (...)»
Em Leiria a 15 de Fevereiro escreve acerca dum concerto com diversos compositores: «mas chega a vez de Beethoven. O pianista dá a primeira dedada no teclado, e qualquer coisa de sobrenatural surge logo. O andamento prossegue. E só as paredes não estremecem, não se arrepiam, não ficam possuídas de pavor, porque são insensíveis.
É uma beleza cósmica, de raios e de trovões, uma beleza dada por um Deus que viveu na terra por engano».
Excelente esta sensibilidade intensa e cosmicizante à musica e à divindade bem expressa pelo génio de Beethoven.
A 12-III escreve um extensa nota de certo misantropismo e queixas, iniciada assim:«Cada vez me sinto pior. Mas quando me queixo encontro uma tal distância nos outros, que já não tenho coragem de me abrir com ninguém (…) e depois de tecer considerações chama a atenção para «um pinheiro que numa ravina, com a morte sempre diante dos olhos se espreme em conceber constantes pinhas. Ora qual será o pinheiro bem abrigado num vale, bem agarrado à terra pelo espigão, a pensar em tudo menos na sua agonia, capaz de compreender o irmão da ravina?
É esta consciência da fundura da vida, da urgência das horas, que a doença traz a quem sofre, que os sãos nunca poderão entender.»
Destacaremos o constante contacto com a doença, agonia e a morte do médico Adolfo Rocha e logo uma natural contaminação de doença, de meditação na agonia e morte, e até apreensão pelo seu adoecer e morrer (embora venha a viver 87 anos...)  e daí essa sede de viver, que também os que sofrem fortemente ou sofrem, realiza e os queima num não perder tempo, tão ao contrário de tanta gente que está a passar o tempo, a distrair-se, a alienar-se, sem qualquer noção do horizonte da morte e da vida no além, que será naturalmente de acordo com o que se viveu ou se alienou...
No mês de Julho, Miguel Torga está por Leiria e uns dias na Nazaré e, como sempre, interroga-se sobre o mar, rendendo-lhe belas páginas entrecortadas pela sua preferência dos rios, fragas e montanhas. Destaca-se a percepção da fundura da zona da Nazaré, hoje bem mais compreendida pelas suas ondas gigantes e os surfistas.
A sua descrição do dia 2-VII da hora de banho é cómica mas presta-se para grande sabedoria sobre a desconfiança de uns plantados e murados nos seus lugares e eus e por outro lado o gregarismo, a naturalidade, solidariedade dos outros, no caso uma criança que deixa a barraca, os pais e anda a conviver com toda a gente.
No dia 3 realiza que «o mar é em última análise o coração do mundo. Que pulsa, geme, só por ser como o nosso: fonte e consciência biológica de tudo». Uma boa expansão de consciência oceânica, diremos...
E logo em seguida anota, embora já no dia 4:«Continua o nirvana. Nem romance, nem contos, nem poemas. Apenas este monólogo. Se isto pudesse continuar, não era de todo desengraçado publicar mais tarde, na integra, estes frutos insoços de alguns dias de férias. Um livrinho doméstico, espontâneo, descuidado para o qual eu fosse como leitor sem a relutância com que vou sempre para os outros que escrevi...»
É bem curiosa esta confissão no seu 1º Diário que só uns anos depois sairia à luz do dia, mas para ser continuado por vários outros, dezasseis...
Em Setembro de 1939 regressa a S. Martinho de Anta e escreve três ou quatro anotações valiosas: «21 de Setembro. Aqui estou. Vim mostrar a mulher aos velhos, à senhora da Azinheira e ao negrilho. Gostaram todos.
Nota de «22 de Setembro - dia foi em Guiães, a caçar e a vindimar de manhã, e a tarde a ler versos num cemitério que só visto. Se um dia viera a talho de foice, hei-de escrever uma página sobre estes cemitérios transmontanos, de granito, aninhados no cimo de uma serra, com ar de quem lava as mãos disto da vida e da morte.»
Talvez Miguel Torga pudesse ter visto também, que ao erguerem-nos em altos, remetem-nos para uma região de ninguém, ou mesmo mais próxima do céu. É uma sacralização de um local, é dar aos mortos sossego meditativo e amplas vistas, talvez para despertarem do seu sonho terreno e se internarem ascensionalmente pelo infinito mundo psico-espiritual.
A 2 de Outubro, escreve com um certo orgulho do campo e patriarcal: «Fui mostrar-lhe a Vila. Mas fui mostrar-lha como os meus avós a mostraram às mulheres deles – a pé. Foram só seis léguas a pé...» Era a sua mulher, a notável investigadora da literatura e epistolografia portuguesa Andrée Crabbé, da Bélgica, a ser iniciada na tradição marital rural lusa.
E a 7 de Outubro narra um bela história que um seu paciente já lhe contou entusiasmado várias vezes, que ilustra bem a solidariedade duma povoação, contra a opressão estadual e o oportunismo individual.
A 23 de Janeiro de 1941, a propósito de um “infeliz novelista” que acabara de ler, faz considerações valiosas sobre a novelística portuguesa, fraca mas que precisa de ser trabalhada e incentivada, tendo em conta até a tradição nacional em que se insere e que terá um futuro: «Por isso é que eu nunca tenho coragem de atirar uma pedra seja a quem for que conte uma história à lareira tipográfica deste país. Mesmo trôpega, é preciso que haja sempre uma equipe pronta para levar o facho algum tempo, até que venha alguém mais seguro e dextro que o conduza ao seu destino. Um génio, - se ele é possível aqui, com a missão de revelar alguma coisa de nós ao mundo -, necessita de secundários que lhe desbravem os prováveis caminhos da sua força. (...)»
A 14-II narra excelentemente um encontro mágico numa rua de Leiria, explicando que os protagonistas da história:«Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui pela rua fora, a ser junto deles em físico o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que eu não saberia exprimir, e que há-de ser a terra de sua duração.
Eram quatro vultos. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como num sonho. Vinham, e da sua magia irradiava uma vida maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Tudo revelado em som. Uma epopeia funda, que transpunha a muralha da cidade morta e a inundava de calor e da palpitação dum poema.
À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que vinha à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que vinham atrás.
Ninguém poderá nunca saber se eram todas suas mulheres,s e filhas, se mães. Mágicas, rufavam, batiam, martelavam, e criavam à volta dele, daquele hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de nuvem carregada de aceitação.
Passavam. O próprio chão tremia. Passavam. As próprias pedras tinham saudades.
E quando lá longe, lá nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, tinha deslizado pelo céu morto da cidade o clarão de uma estrela cadente»
A 29 de Março vem uma nota interessante, mencionando Antero de Quental, tomando a defesa dele e indignado com Castilho: «Em termos absolutos o homem é um valor imponderável, inteiro e perfeito como um dogma. Mas em termos relativos, sociais, o homem é o que vale para os seus semelhantes. E é na contradição de medida que vai de próximo a próximo que consiste o drama de ninguém conseguir ser ao mesmo tempo amado em Tebas e Atenas.
Hoje fui encontrar numa correspondência de Castilho este chamadoiro ao Santo Antero do Eça: A Pantera do Quintal! E, por mais voltas que desse em todo o dia à minha boa vontade, não consegui apagar da aura maravilhosa do autor do Bom senso e do bom gosto a ferida eterna daquele velho, a singrar o desgraçado travo pessoal e humano».
                                       
Talvez Miguel Torga valorize demasiado o "chamadoiro" de António Feliciano de Castilho (o seu filho Júlio usava mais para gozar com Antero, o de Lutero), no fundo uma simples frechada (entre outras em que foi pródigo) de um adversário derrotado e despeitado, mas seria interessante sabermos o que no fim da sua vida (morre em 1875), Castilho pensava de Antero, em ascensão. Quanto à elevada epistolografia anteriana, certamente que a sua dimensão não é de quintal mas universal...
A 8 de Maio considera Miguel Torga com muita justeza:«o que mais estreitamente liga os homens na vida não são as forças puras e generosas. Se assim fosse, não se teria queimado nem ofendido tanta gente superior que andou no mundo. O óptimo moral e intelectual da humanidade é um compromisso entre o bom e o mau, entre o limpo e o sujo, entre a Quaresma e o Carnaval. Por isso quem traz uma chama limpa a alumiá-lo, e só bebe a luz daí, não pode ser entendido nem tolerado lá onde a luz é um pobre crepitar de morrão de candeia», esta parte final mostrando-o bem sensível à luz interior ou espiritual mais ou menos acesa nas pessoas e como tal pode ser mal recebido...
E a 8 e 9 de Agosto sinaliza a morte do grande poeta indiano Rabindranath Tagore e tece considerações sobre o problema da salvação da alma, entre a pobreza e sacrifício de S. Francisco de Assis, e o integrar-se no movimento universal desta gigantesca máquina moderna e fazer nela de parafuso, como mostrou Chaplin». Já a revisitação de leitura «das coisas da Índia maravilhosa que em mim começa em Fernão Mendes Pinto, passa pelo Buda e acaba no Rudyard Kipling», teremos de constatar quão limitadas eram as suas fonte e por isso não admira que confesse «perder-se num fantástico labirinto humano», testemunhando a sua emoção ou admiração perante algumas das lendas fabulosas da civilização indiana.
E terminamos esta revisitação a voo rápido do primeiro volume do Diário de Miguel Torga, ainda jovem, nos seus trinta e poucos, muito forte na sua sensibilidade e amor da terra, da lavoura e da fraternidade humana, em especial para os mais humildes ou sofredores. A inseri-lo nalguma linha memorialista lembro-me de Raul Brandão, certamente seu irmão em vários aspectos, nomeadamente na espiritualidade da fraternidade humana.
Um 1º volume dos Diário do qual se recomenda a leitura, tanto mais que cada leitor vibrará, aprenderá ou apoiará diferentes passagens, tendo eu apenas seleccionado algumas....

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Kubra. Ensinamentos (3º) dos mestres da Tradição Espiritual Iraniana: Najm al-din Kubra.

Como já vimos pelos dois textos anteriores dos ensinamentos dos mestres da Tradição Espiritual Iraniana, Najm al-din Kubra foi um dos que mais brilhou na sua funda entrada nos mistérios da alma, do espírito e do caminho para a ligação ou religação com Deus e concluiremos por hora com outros aspectos valiosos da sua obra, mais acessível pelos estudos de Henry Corbin, Fritz Meier e Paul Ballafant, entre outros.
Três espirituais iranianos admiradores de Kubra: Mian Mir, Dara Shikoh e Mulla Shah
Destaquemos então, da sua apuradíssima ligação espiritual, o seu comentário ao famoso versículo (Corão, III=103): «Protegei-vos segurando a rédea de Deus e não vos dividindo», explicando que no aprofundamento da concentração visionária e da relação entre o discípulo e Deus, à medida que cresce a aspiração, e o pedido é sincero, emana de Deus uma luz que une os corações dele Consigo, de tal modo que se sente o gosto da ligação íntima amorosa e se vê mesmo uma corrente vinda do céu até ao coração, que é assim protegido. Isto diz que é denominado a "rédea de Deus". 
A concentração visionária que provém do recolhimento tem o seu oposto na dispersão, que é para Kubra o pior castigo que podemos ter. Ora, direi eu, se observarmos o que se passa hoje com o estado psíquico das pessoas tão sujeitas a informações e contra-informações, publicidades e aliciamentos, e como lhes é tão difícil recolherem-se, e portanto irem abrindo o seu olho espiritual e religarem o coração a Deus, concluiremos quão grande e difícil é actualmente a nossa tarefa. Kubrâ exortar-nos-á então a roubarmos diariamente tempo, uma hora que seja, a todos os ladrões da nossa alma para o consagrarmos mais a Deus, à sua invocação, seja porque nomes for, diremos nós, e lembrar-me-ei do tão simples: Deus, Deus...
Dirá ainda que «o recolhimento é o apego do coração ao trono de Deus, ou o apego do trono ao coração, ou ainda o encontro dos dois a meio do caminho». Anote-se que esta imagem arquétipa do "Trono de Deus" se encontra no Alcorão, onde se diz que Ele é sustentado pelos Anjos que ao seu redor o glorificam, com louvores e preces pelos crentes (Corão, 40:7).
Depois desta intensificação da ligação interior divina acontecer, uma pessoa realizaque "Deus no trono" significa também instalar-se no coração, e em função da polaridade caracterizadora de Allah, Rahman-Rahim, dirá que Deus assente no trono em Majestade é o Todo Compassivo (Rahman), e o que se desvenda no coração em beleza é o Muito Compassivo (Rahim). 
No avanço do murid ou discípulo para a Divindade surgem as fases da sobriedade e do inebriamento, quando o discípulo sente que na morte do seu ego o Eu divino é ele, e exclama (tal como na Índia, os místicos do Advaita Vedanta, nomeadamente no livro Astravaka-Gita, que traduzi e comentei), nesses estados de maior exaltação divina, por vezes vistos como orgulhosos: «Glória a mim, Glória ao meu Eu. Como o meu nível é elevado».
Estes estados de grande comunhão com o divino foram experimentados por Kubrâ que explicou também o verso corânico II=25, «O Vivo, o Sempre existente, em quem nem sono nem sonolência entram», como referente à consciência que está sempre em oração e em ligação à Divindade, certamente algo difícil para a pessoa normal...
Kubrâ valoriza bastante os retiros, que idealmente não devem sequer ter prazo, e que são como uma oficina de ferreiro onde o jejum (conforme o hadith canónico: «O demónio escorre através da descendência de Adão pelos canais do sangue. Não estreitareis estes canais pelo jejum?»), a pureza e a oração e a invocação apuram a ligação ao mestre e a Deus.
É a invocação  divina que faz com que a energia espiritual entre por essas artérias e veias, quais poemas no corpo, purificando-nos, entrada energética luminosa que deve chegar até a um nível ponto em que é ela que nos invoca. 
No seu suporte da respiração, revela-se como o som (presente no nome Allâh) e que é o nome de Deus, que sobe do coração, e que desce do trono de Deus. Certamente que como disse o mestre Abû ‘l-Najîb, comentando o verso corânico XXVI=89: «Só aquele que vem a Deus com um coração são», «o meu coração é apenas como um canjirão que se esvazia para Ele». 
A tradicional linguagem ou canto dos pássaros referida pelos místicos, e subjacente à tão famosa e bela obra de Attar, a Conferência dos Pássaros, é considerada por dois modos: tanto brota dos afectos que existem no peito das aves, como pode emanar do coração do homem que está dilatado ou mesmo intimamente unido a Deus, e como sinal da sua alegria. Kubra diz-nos, mesmo que não aprovando muito isto, um dia ouviu esse canto num fakir que se dirigia como ele para a cidade santa Karbala (no Iraque, terra do martírio e túmulo de Ali, o 1º Imam dos Shiaas), e que este lhe explicara que se Deus o permitia, tal devia ser tido como uma bênção. Só mais tarde é que Kubra atingiu esse nível ou estação, e então arrependeu-se de ter questionado o fakir mais avançado que ele.
Desta unidade entre a alma espiritual humana e o Cosmos é também bela a aprendizagem obtida numa visão dialogante com um mestre que lhe explicou a significação mais íntima das estrelas e do sol: «Deus contempla os seus adoradores e servidores dia e noite. De dia é o Sol o seu olhar e de noite as estrelas», de algum modo estimulando-nos a vermos a Divindade no sol e nas estrelas.
A descrição dos estados elevados de consciência é apresentada de vários modos, como por exemplo, quando o ardor e a concentração aumentam, o nobre viajante tem a impressão que ora os sinais entram dentro dele ora ele penetra neles, ou ainda que as estrelas do céu se derramam sobre ele ou que o céu desce sobre ele, ou finalmente que saboreia o céu inteiro dentro do seu peito ou que é levado ao alto e que vê a terra de cima. Sem dúvida muito belas e significativas expansões do seu corpo espiritual unificante consciencializadas.
E, finalmente, devemos referir a importância da revelação do seu ser de luz, do guia do mundo oculto, o sol da fé, o sol do coração, que Henry Corbin na sua valiosa obra tão bem relacionou com o filão pré-islâmico do ensinamento de Zoroastro sobre a união com a nossa Daena, o Anjo feminino e nossa contraparte celestial, e que de certo modo é a manifestação em nós do Eu divino individualizada num corpo de luz ou de glória originado a partir do coração purificado e ligado ao seu mestre e aos nomes e atributos de Deus. 
Kun! Sê e ele ou ela é....
Para terminarmos este texto que resume alguns aspectos do seu ensinamento, sobretudo contidos n' As Eclosões da Beleza e os perfumes da Majestade, oiçamos o seu comentário ao famoso "Kun", "Sê," correspondentente ao iniciático Esto, grego: «Aprende que o viajante só se qualifica na santidade quando lhe é concedido Kun, Sê, pois Kun é a ordem de Deus na sua palavra: «A nossa ordem para algo, quando o queremos, é dizer-lhe apenas. Sê! E ele é», (Corão, XVI-40) e isso é obtido quando a aspiração dele se funde com a de Deus de tal modo que tudo o que Deus quer, ele também quer, e nada quer do que Deus, o Senhor dos mundos, não quer.
Este querer e seguir a Vontade Divina, e nela confiar, ou ainda o Bem Comum ou a Verdade, é certamente pedra de toque para melhorarmos a luminosidade da nossa viajem dinâmica na Terra.
 Terminemos com gratidão e uma última citação de Najm al-din Kubra, possa ele inspirar-nos: «Quando a invocação divina está próxima da consciência mais íntima ou secreta e quando o viajante faz silêncio, é como que fossem plantadas agulhas na sua língua ou como se a sua face  fosse completamente uma língua que invoca pela luz que emana dela»
Noor. Kun...

Kubra. Ensinamentos (2º) dos Mestres da Tradição Espiritual Iraniana: Najm al-din Kubra." O Amor é a obediência do amado à amada."

Como já dissemos no 1º texto dos Ensinamentos dos Mestres da Tradição Espiritual Iraniana, Najm al-din Kubra valoriza muito a oração assente na repetição de nomes sagrados ou divinos, prática esta presente na maioria das religiões e tradições, seja apenas para ajudar as pessoas a concentrarem-se, seja porque se consideram tais sons como mais portadores de energias animicamnte operativas e causadoras de religação espiritual, ou seja, permitindo-nos tornar-nos pontífices, construtores de pontes entre a nossa consciência horizontal e externalizada e o espírito e o Divino.
1 - Allah e Muhammad, com o Bismillah, "em nome de Deus, o gracioso, o misericordioso" no canto superior, em caligrafia.
 Kubra sugere dois percursos energéticos, a serem sentidos ou imaginados, aquando da repetição ou invocação do nome de Deus (Allah e Huwa, Hu, Ele), ou da sua unicidade lâ ilâha illâ ‘llâh, "não há deus senão Deus", num processo dual que encontramos também noutros mestres seja sufis seja yogis: lâ ilâha repete-se subindo do ventre para a cabeça, e o illâ ‘llâh, descendo para o coração, ou então as mesmas palavras, a 1ª subindo pelo lado direito e a 2ª descendo pelo lado esquerdo para o coração, este de afirmação do "senão Deus" (amor, luz), que vai entrando no coração. Outro percurso conheço eu pessoalmente, que me ensinou um sufi turco, livreiro alfarrabista em Istambul e tradutor para turco de uma obra que me ofereceu de Ibn Arabi
Se feita com atenção e amor, esta prática oferece, segundo Kubra, resultados tais como a substituição da dominação do coração pela nossa alma (semi-instintiva) e as suas relações-projecções com o mundo, pela dominação de Deus (com a consequente iluminação do coração, antes entenebrecido) até à abertura da visão espiritual e à descoberta da "consciência secreta", ou cimo, apex, do nosso espírito.
Já a oração é apresentada como conversa (de convergir) no íntimo do nosso ser com Deus, realizando-se no seu aspecto mais elevado no coração que dialoga com Deus, pois por cada palavra ou frase ou sentimento que ele exprime Deus responde-lhe com outras palavras e vibrações. Advirtamos que tem de ser mesmo o coração profundo a orar, já que a Palavra, o Verbo, o Sermo, a Vibração, o fogo do Amor, está lá, e os sons e palavras são apenas testemunhos dessa ardência.
Ora esta forma de oração derrama no sentido espiritual do gosto uma grande doçura, e portanto é importante  consciencializar-nos mais deste gosto interior, o qual se vai obtendo pela transmutação do corpo instintivo e rude no corpo verdadeiro e espiritual, o qual vai crescendo a partir das práticas, da ascese, das provações difíceis e do amor. 
Será ele que nos une ao corpo verdadeiro dos outros seres, permitindo manifestarmos mais o nosso corpo espiritual, o nosso ser verdadeiro. A independência deste corpo nobre ou espiritual em relação aos cinco elementos é vivenciada por toda a gente pelo menos em alguns sonhos, e pelos discípulos ou iniciados através da concentração visionária.
A potência interior da invocação e repetição consciente do nome de Deus é também visível nos relatos feitos por Kubra de começar a emanar de cada membro do corpo uma invocação com um som parecido ao de uma trompa ou chifre ou ainda dum tambor, vindo mais tarde a estabilizar-se como o zumbido duma abelha. É interessante notar que estes sons audíveis interiormente são também descritos pelos yogis e praticantes da meditação, chamando-se na Índia tal o anahata nada, o som sem som, e tendo sido mesmo reconhecido em cada chakra (ou centro energético ao longo da coluna vertebral) um tipo próprio de som.
Dara Shikoh, com o seu mestre Mian Mir.

Nas suas obras de comparação do Hinduísmo e do Islão e no seu Diwan poético, o notável místico e príncipe mogol Dara Shikoh, fala deles, valorizando muito a audição interior de tais sons, chamando mesmo a tal o Sultão das práticas, já que de facto implica um grande silêncio e elevada concentração subtil.
Estes sons são segundo Kubra o resultado de o homem conter dentro de si os cinco elementos e surgem assim tal como a ramagem das árvores agitada pelo vento, ou o crepitar do fogo, e são sinais do cântico de glória a Deus de todo o nosso ser que a invocação origina. 
                                                   
Aliás Najm al-din  Kubrâ descreve mesmo o processo internamente dizendo-nos que as palavras sobem do coração para a cabeça e para Deus e que Deste descem energias espirituais, ou mesmo na cor verde vivificando o coração de tal modo que ele vai crescendo e fortificando-se chegando mesmo Kubra a dizer, ecumenicamente, que o coração é como Jesus em criança e a invocação como o seu leite.
O aprofundamento da invocação e repetição do nome de Deus leva portanto a uma maior sensibilidade do corpo espiritual e dos movimentos energéticos e luminosos que aí acorrem, seguindo-se estados de resplandecência, amor e até de proximidade ou mesmo união com o Invocado.
Claro que esta invocação implica um trabalho hercúleo da limpeza das estrebarias que todos temos dentro da nossa alma comum e das quais em geral nem sequer estamos cientes da quantidade de animais, vícios e distracções que só quando começamos a meditar e a praticar a invocação de Deus tomamos consciência.
Com a continuidade das práticas o nosso corpo nobre ou precioso vai-se desenvolvendo e com ele a capacidade visionária, pois o espírito está dotado e é em si mesmo um órgão subtil celestial, capaz não só de ver como de viajar no mundo subtil e chegar mesmo ao sol. 
A contemplação pode ser dirigida para o mundo físico, para o mundo subtil ou oculto, com as suas terras, seres e coisas, e livros (escritos com pontos, letras e imagens, que lidos permitem a ciência íntima), e finalmente para o que o céu contém (tal os planetas com as suas características próprias: Saturno e a capacidade de concentração visionária, Marte e a discórdia, Vénus com a alegria e emoção, e Mercúrio do conhecimento e das ciências, podendo haver tanto visão telescópica como apenas absorção de qualidades), chegando-se por último à pureza de Deus.
Outros aspectos possíveis de meditação, invocação ou contemplação são os atributos de Deus ou os seus nomes de qualidades, dos quais os noventa e nove, "os mais belos", são os amplamente dedilhados sobretudo na arte, e que por vezes nos chegam até inesperadamente, acabando por depositar-se no nosso coração algum influxo da sua essência e aí crescer.

Todas estas práticas assentam numa comunicação de energias ígneas, de luzes e fogos, que tanto sobem do coração e da sua porta aberta para Deus, como descem da sede ou trono de Deus, e que vão purificando-nos até que a face brilha e irradia luz do terceiro olho, chegando mesmo uma pessoa a ver-se com uma face totalmente luminosa e por fim a ver uma personagem, o mestre do mundo escondido, o pré-eminente, a balança do mundo oculto, que acabará por fundir-se connosco, e que no fundo é também o Eu divino em nós.
Prato tradicional do Irão em porcelana, oferecida pela adepta da linha sufi de Nur Ali Shah Tabandeh,  Farnoush Fadayan Motlagh.

  Kubrâ descreve pois com originalidade uma ascensão da capacidade visionária interna que começa por abrir-se pelo olho espiritual, em seguida pela face, depois pelo peito e finalmente por todo o corpo.
O conhecimento do nome supremo de Deus brotará do coração e inclui todos os signos e letras, e disto nascerá o amor no seu máximo, original, incriado, onde o invocador ou nobre viajante se unificará ou aniquilará, como diz citando Al-Hallaj: «Admiro-me de Ti e de mim: tu aniquilaste-me a mim mesmo em Ti. Aproximaste-te de tanto e tão bem que Acreditei que Tu és Eu.»
O mesmo se passa no Amor, como todos os grandes místicos e amantes têm experimentado: o amante aniquila-se de tal modo no amor que se torna amor, aniquilando-se depois na amada. Aqui há a passagem do amor do coração, ao amor fervente, do espírito, numa ascensão à aniquilação ou superação de si na essência bondosa, luminosa e divina.
Falamos no início deste texto que Kubra apresenta a ascese como uma parte do caminho e de facto a sua ideia é a de que há necessidade na alma tanto da purificação, arrependimento e pacificação, para que se torne verdadeiramente coração, como no desejo ou apetite, o qual deve trocar os objectos dos cinco sentidos perecíveis pelo que é permanente e eterno, o espírito divino, passando do nível corporal para o desejo do coração e a aspiração ao Alto, e recebendo então as luzes da beleza e da compaixão divinas.
A evolução ou maturação do ser humano é caracterizada pelas asas da esperança e do receio dos jovens, no seu limitado saber, da contracção e da dilatação (do coração) do homem maduro, com o seu livre arbítrio emanando do poder do espírito pré-eterno (e assentes nas suas qualidades de paciência e de gratidão), e as da intimidade e veneração do ancião (assentes na sua satisfação e confiança), que ainda se transformarão nas do conhecimento e do amor, até chegar às da renúncia e da estabilidade. 
A revelação então dos atributos divinos pode surgir em duas linhas, a da beleza íntima, e a da majestade venerada, a primeira mais doce e generosa, a segunda mais poderosa, impetuosa ou violenta até. É interessante observar que para Kubrâ os atributos divinos de beleza e compaixão-benefício sejam visionariamente virgens belíssimas e puras, por detrás dos seus véus, certamente aludindo às houris, entidades celestiais angélicas compreendidas e interpretadas demasiado carnalmente
E fiquemos para concluir este segundo texto com uma aproximação de Kubra ao mistério do Amor, valiosa e algo raramente vivida dada a sua excelência de Fiel do Amor: "O Amor é a obediência do amado à amada."

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Kubra. Ensinamentos (1º) dos mestres da tradição iraniana: Najm Al-Din Kubra. Com vídeo.

Azulejos de bons efeitos contemplativos no portal do mausoléu de Najm Al-Din Kubra, em Urgench, hoje Turquestão

O ensinamento do mestre iraniano Najm al-din al-Kubra, nascido em Khwarezm (1145-1221), que viajou e estudou com sábio na Pérsia, Egipto e  Meca, que foi um mediador com os invasores mongóis, e se tornou um mestre de muitos discípulos valiosos, baseia-se sobretudo na sua experiência e no Corão e, embora elogiando várias vezes o iman Ali, considerou que os Shiaas o tinham divinizado demais, e valorizando por isso também a linhagem sunita, podendo portanto considerar-se próximo dela ou melhor, da espiritual mais pura que está acima e transcende as divisões e seitas humanas.
Foi divulgado no Ocidente principalmente pelo sábio francês Henry Corbin, autor de vasta obra incontornavel sobre a tradição mística iraniana, nomeadamente pelo contributo de Kubr quanto à luz e às cores que se manifestam nas meditações e contemplações. E por Fritz Meier, e mais recentemente por Paul Ballanfat, sendo sem dúvida um mestre portador de grandes claridades e forças espirituais pelo que vamos tentar dar algumas linhas de forças espirituais dele.
A sua visão do ser humano, fruto de longas vigílias, meditações e iluminações, é a de que ele é ou tem, além do corpo físico, uma alma da cor do céu (e que surge como a água que brota duma fonte), uma inteligência, um espírito luminoso (no seu nível superior sendo já a consciência secreta), provenientes de Deus, e que o objectivo da nossa aspiração (muito importante, pois sendo um atributo de Deus é vivendo-a que a luz divina em nós cresce), procura ou viajem (para Kubrâ o ser humano é basicamente um viajante, sayyâr, tendo mesmo escrito um Tratado das Regras da Viajem), é Deus, do qual saímos na pré-eternidade, e num pacto primordial no qual coexistimos na Unidade Divina.
Como pode o nosso espírito luminoso unir-se com a Luz descendente divina é talvez a principal questão tratada nos seus escritos com grande sabedoria e concisão.

Os principais meios para se chegar a esta união são, e bem explicados por ele, a diminuição ou moderação do descanso e dos alimentos (sufismo é fome, fome...), a entrega a um mestre (com o qual se estabelece no coração um laço iniciático que permite a consulta ou comunicação tele-anímica a qualquer momento), uma vida ascética (pelo qual se transmuta o corpo grosseiro e se aprende a controlar a paixão, irmã gémea da alma, e a ouvir a inteligência superior, irmã-gémea do coração íntimo, bem como a morrer para si próprio) e o desenvolvimento de certas qualidades, tais como a paciência, a vigilância sobre si mesmo, o contentamento, a confiança e a atenção a Deus e, finalmente, a prática da invocação de Deus, esta a pedra de toque também na tradição indiana e cristã.
Kubra distingue três caminhos ou vias: a mais lenta da gente piedosa, religiosa, cumpridora dos seus deveres. Depois, a dos que lutam fortemente no seu interior, os justos, surgindo  por fim a via mais rápida da aspiração amorosa e da morte em Deus, na qual se viaja em estados de amor e de beatitude.
Este caminhar mais rápido será o seu e aquele que dinamizará nos seus discípulos, a via kubrawîe, a dos que voam para Deus.
Acerca do valor do desejo na via ou caminho, Najm al-din Kubra costumava contar a história metafórica do sheikh al-Kharaqâni, que tendo na meditação do meio-dia subido às alturas do trono do Deus e feito mil circunvalações, encontrou um grupo de seres espantados com a velocidade com que ele conseguia rodar à volta de Deus, tendo-lhes respondido que certamente derivava da sua natureza de fogo e de luz, movida pelo desejo.
Kubra valorizava muito a confiança pura em Deus, como a melhor forma de evitar os ataques de forças negativas, indicando mesmo como a oração mais própria para sermos libertados de forças negativas esta: Yâ ghiyaâth al-mustaghîtîn aghithnî, Oh Socorro daqueles que imploram o socorro, socorre-me.
Já para saber se devíamos fazer isto ou aquilo, ou se tal pensamento era ou não da alma, se era ou não de Deus, preconizava a consulta tele-anímica com o mestre e o desenvolvimento dum sentido de gosto espiritual, através do qual o sabor doce revelava o divino, e o amargo o que não deveríamos assimilar.
Eis uma técnica raríssima entre os místicos e mestres e bem valiosa, pois estamos a trabalhar o gosto ao nível espiritual e como sabemos temos tal sentido no corpo espiritual. Por isso, mesmo ao alimentar-nos, devíamos estar mais atentos a um saborear de gratidão...
O caminho espiritual é no fundo uma via alquímica de extracção do ouro filosofal que é a visão espiritual, ou seja, o órgão de luz contemplativo que nos permite tanto ver a luz interior e a luz divina como as características subtis do estado ou estação do caminho da vida em que nos encontramos.
Najm Al-Din Kubra dá-nos vários exemplos da ultrapassagem das influências dos cinco elementos (terra, água, ar, fogo e éter) nos nossos sonhos ou visões, e realça que a visão do poço da alma que podemos obter nas nossas meditações surge ao princípio como algo que está em cima de nós, depois em frente e, por fim, ao fundo de nós próprios, e que se trata da abertura progressiva do coração para o mundo espiritual, em simultâneo com a clarificação da sua luz, até ela se revelar angélica, de amor e de cor verde, o que caracteriza a condição mais purificada, denominada Senhorial.
Sobre as cores que se revelam no interior, nas meditações ou concentrações visionárias, ao princípio surge a cor amarela e cores obscurecidas e à medida que o discípulo se vai purificando e concentrando começa a ver o azul da alma viva, depois o vermelho do poder da concentração, e por fim o verde do coração espiritual. Mas nem só somos visitados pelas cores pois há outras importantes visitações, tal a dos anjos que entrando pelas costas descem ao coração e derramam serenidade, com os nossos pensamentos permanecendo em Deus.
Kubra praticava sobretudo a invocação do santo nome de Deus, recomendada no Corão, II:152: «Invocai-me, Eu vos invocarei», ou ainda (XVIII:24) «Invoca o teu Senhor quando o esqueces», e chegava mesmo a ouvir anjos cantarem: «Em nome de Deus, tal como não há divindade senão Ele, o todo Compassivo, o muito Compassivo», (II:163), de tal modo que parecia que Deus descera das alturas para o céu que rodeia a Terra, visitação com que aliás estamos familiarizados com as legendas que se teceram à volta de certas noites míticas nas principais religiões.
Kubra deixou-nos muitas páginas de ensinamentos sobre a invocação, zikr ou dikr, a sua importância (tal como ser ela que nos pode levar acima do tempo, ao nosso corpo espiritual e à existência divina), características, modos (por exemplo, ao pronunciá-la, simultaneamente ouvi-la), objectivos e resultados, pois é por ela sobretudo que o coração é iluminado e que a luz divina se une connosco, devendo ser verdadeiramente apreciada, amada, para que  se revele na sua plenitude e nos segredos e poderes íntimos.
Invocação não só pela língua, audível, mas sobretudo do coração e da consciência secreta, estes dando a energia e a capacidade, a quem ora ou invoca, de se ligar ou mesmo tornar-se o Invocado, num processo gradual em que a repetição do nome de Deus, dirigido mesmo para o coração, purifica-o e torna-o habitação e por fim revelação e unicidade divina.
Encontramos estes ensinamentos nos místicos não advaiticos da Índia, sobretudo nos Shaivas, Shaktas e Vaishnavas onde o japa mantra (a repetição de nome divinos), e o kirtan, o canto devocional (Hari, Hare) são muito valorizados e praticados, um dos últimos e por nós trabalhado no blogue Gurudev Ranade. 

O livro mais importante de Najm Al-Din Kubra é o Fawatih al-Jamal wa fawa'ih al Jalal, que se pode traduzir por As eclosões de Beleza e os perfumes da Majestade, tendo sido traduzido para alemão e para francês, e bem comentado, por Fritz Meier e Paul Ballanfat.
Há dois dias, de noite, resolvi ler e comentar o início da obra, que já leio e conheço há alguns anos, e gravei uns doze minutos, agora disponíveis. Mas voltaremos à obra notável de Najm al-din Kubra, tanto mais que outro místico sincrético valioso do Islão o cita e que eu muito aprecio, Dara Shikoh, o príncipe mogol pioneiro dos estudos comparativos entre o Hinduísmo e o Islão e também conhecedor do Cristianismo, filho de Mumtaz Mahal e do quinto imperador mogol Shah Jahan, o construtor do imortal Taj Mahal... 

Que eles nos possam acompanhar e inspirar na Awliyaullah, ou companhia dos amigos de Deus...                                                                                                            

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

"Jesus não era Deus", afirmação do papa Francisco. Breve comentário...

"Jesus não era Deus", afirmação recentíssima do papa Francisco, e que com mais duas, "não existe Inferno", e não houve Imaculada Concepção em Maria, têm causado bastantes polémicas, levaram-me a proferir este pequeno comentário, que esperemos que seja esclarecedor e verdadeiro.
Oramos para que permita às pessoas posicionarem-se melhor planetária e ecumenicamente e simultâneamente realizarem uma percepção mais luminosa tanto do mais essencial do Cristianismo como de si próprios, de modo a estarem mais ligados com o mestre Jesus, com o Espírito interno e com a Divindade e num diálogo e convívio sábio, ambientalista, espiritual com todos os povos e ambientes, tradições, religiões e seres.
10/10/2019, pelas 10 da manhã, em Lisboa, e gravou-o Pedro Lencastre Teixeira da Mota....
                              

domingo, 6 de outubro de 2019

Do Crescimento da Alma, V. cap. d' "O Mistério da Golgota", por Bô Yin Râ. Com vídeo de leitura comentada.

O mistério da alma e do espírito, pesem os milhares de anos já de documentação expressiva de tal demanda, continua a desafiar-nos. Um dos autores que melhor escreveu sobre esta cadente questão foi o mestre alemão Bô Yin Râ, notável pintor e escritor, e que lhe consagra alguns capítulos, como aliás em todos os seus livros, no Das Mysterium von Golgatha, dado à luz em 1930, em Leipzig. Resolvemos ler-traduzir, usando sobretudo a versão francesa, gravando com breves comentários.
 
Realcemos no V capítulo da obra o não deixar cada um morrer o seu sentimento de si mesmo, e como o amor da arte, da estética, da ciência e da natureza não satisfazem as necessidades mais religiosas e espirituais dos seres que se podem ver assim, sem se darem conta, desprovidos de um crescimento das forças anímicas unificadas numa individualidade anímico-espiritual, aquela que permitirá a sobrevivência consciente à morte do corpo físico terreno ou animal.
Alerta Bô Yin Râ para muita gente que vive com a alma quase morte, sem calor interior, quando pelo contrário o seu Eu deveria estar animado pela centelha espiritual e sentindo-se e reconhecendo-se como corpo espiritual luminoso, dinâmico, bem-fazejo.
Recomenda também estarmos bem atentos a tudo o que possa ser uma impulsão provinda da nossa alma, a tudo a que possa ser ou proporcionar um contacto com as forças da alma.
E esta percepção e sensação interior não se obtém apenas pelo retirar da vida activa e em meditação ou mosteiros, mas na vida do dia a dia (do lavar a roupa ao cavar) através da qual se desenvolvem forças da alma importantes, ainda que certamente devam haver momentos de sintonização, de reconexão, de religação com a fonte espiritual e divina.
Oiçamos então Bô Yin Râ, através da minha voz e tradução, e poderá até fechar os olhos pois a imagem é praticamente a mesma até ao fim. Aum...:
                             

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Da morte santa da bem aventurada rainha D. Filipa de Lencastre e da iniciação cavaleiresca aos três filhos.

Desenho de Daniela Devi Pace.....
Reconstituição piedosa da morte santa da bem-aventurada rainha D. Filipa de Lencastre, em 1415, extraída da Histoire Générale de Portugal par M. de la Clede, 1735, numa versão portuguesa contida numa História de Portugal, de 1852. Transcrita a 2-X-2019 para a sessão da Codex: As Chaves da História. Filipa de Lencastre, princesa do santo Graal. Santa?
«Sentindo bem que se ia aproximar a hora extrema duma separação eterna, a rainha D. Filipa se voltou para o seu marido, com o fim de lhe rogar o haver de entregar, em sua presença, a cada um dos seus filhos, uma das três espadas ornadas de ouro e de pedras preciosas, que se tinham feito preparar para o serviço destes cavaleiros. Quando no dia seguinte todos se encontraram reunidos junto do leito da rainha, ao lado do qual já se encontravam dispostas as espadas aludidas, D. Filipa, vencendo todos os seus sofrimentos, e tomando um a apresenta ao mais velho de seus filhos, dirigindo-lhes estas palavras: - Meu filho, Deus que te há destinado para o sucessor de teu pai, quer também que governes o reino com equidade, por isso mesmo que, sem equidade, nem o reino, nem o o soberano, podem subsistir. Da mesma forma que aqueles edifícios a quem se arrebatam seus respectivos alicerces, eles logo caiem por terra, igualmente os estados mal regidos, e injustamente administrados, tombam, caindo em ruínas. Tomai pois esta espada, meu filho; e por ela seja sempre presente que foste nascido para ser rei de Portugal, para proteger todos os seus vassalos, não os devendo nunca tratar como teus escravos: - recorda bem que só deves proceder com justiça e equidade, castigando os crimes, unicamente segundo os preceitos da lei, a fim de a audácia dos criminosos ser reprimida, e repelida a prepotência dos grandes, contra os fracos, e que a todos se assegure o que devidamente lhe pertence.». D. Duarte, tomado de admiração, e penetrado de respeito, recebeu a espada da mão de sua mãe, prometendo-lhe o fazer, conforme coubesse nas suas forças, tudo quanto acabava de ser-lhe maternalmente determinado.
Seguidamente, D. Filipa, tomando outra espada e dirigindo-se ao infante D. Pedro, lhe falou por esta forma: - «Eu te confio esta espada, meu filho; a fim de que ela te possa servir para bem defenderes as donzelas, e viúvas, que tens constantemente protegido com tanto desvelado zelo, para que tenhas por elas todo o respeito que lhes é devido: - por quanto é um dos mais rigorosos deveres , um príncipe nobre, defender e honorificar as mulheres às quais a natureza recusou a força, e lhe outorgou em partilha um fraco vigor corporal.
A rainha, tomando a terceira e última espada, a apresenta ao infante D. Henrique, a quem dirigiu esta elocução: - Tende sempre coração bem disposto a servir de apoio àqueles que, pelo bem do Estado, expõem suas pessoas ao ferro e fogo dos adversários da sua pátria, não hesitando jamais preferir uma morte gloriosa a uma vida efeminada e cómoda. D. Henrique, de joelhos, promete solenemente cumprir todas as recomendações de sua mãe.
Com todas as forças que lhe prestava ainda o seu amor maternal, a rainha D. Filipa pediu ainda aos infantes D. Pedro e D. Henrique que honrassem e bem queressem a seu irmão D. Duarte, que depois da morte do rei seu esposo viria a herdar o reino e a coroa; devendo ser os primeiros que o reconhecessem por seu legítimo soberano, visto que segundo a vontade divina vira primeiro a luz do dia, e que era tão justo, tão doce e benévolo que os trataria constantemente como a seus melhores amigos, seus companheiros de vida. Eles assim o prometeram.
Continuou ela exortando-os para no futuro se conservarem aquele amor fraternal que se haviam até então mutuamente testemunhado e a jamais riscarem da sua lembrança que todos eles tinham sido procriados no mesmo seio materno, repousado em o mesmo berço, amamentado ao mesmo peito, e recebido sua educação e gozado de todas as delícias da infância no interior da mesma câmara e debaixo das mesmas vistas e insinuações da mesma preceptora. (...)
Desligando todos os seus pensamentos dos objectos terrenos, e dirigindo-os para a vida futura, a rainha em seus últimos dias , se entregou a piedosas meditações sobre o nada das coisas humanas; (...). Seu fim se aproximou. «Eu vos agradeço ó Virgem Santíssima, disse ela volvendo seus olhos para o céu, e tendo sua fronte animada com o mais doce sorriso, eu vos agradeço o ter-vos dignado visitar a vossa serva, ainda antes que ela se escapasse da prisão do mundo». Seguidamente, elevando ainda uma vez suas mãos para o céu, as deixou cair sobre o seu seio; e cruzando-as, deu a alma ao Criador».
Possamos nós receber a iniciação cavaleiresca e cívica da rainha D. Filipa, sermos portadores do mesmo Graal e vivermos uma vida tão luminosa que nos faça merecer o desabrochamento da visão espiritual e uma boa viagem no além...