quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Miguel Torga, "Diário". 1º vol. Resumo crítico ético-espiritual, por Pedro Teixeira da Mota.

No mês quase já outonal de Setembro de 2019, passado em grande parte numa aldeia nos montes do parque do Gerês Peneda, não longe de Montalegre, nada poderia ser mais adequado em termos de sintonia transmontana que ler o Diário de Miguel Torga, no caso o 1º e 2º volumes, e em modo de visitação espiritual, ou seja, discernindo e sublinhando a lápis certos aspectos mais valiosos da sua sensibilidade e humanidade,  ou mesmo, fraternidade, ética e  espiritualidade.  Passei depois para o computador as anotações ou sublinhados do 1º volume, escrito a partir do ano da graça de 1934, quando Miguel Torga tinha 27 anos, e já publicara na revista Presença, e individualmente, poesia. Saíram ao todo 16 volumes, abrangendo as suas impressões, reflexões e poemas, este primeiro publicado em 1941 e o último com as suas impressões de 1993, deixando Miguel Torga a Terra em 17.I. 1995.
 Comecemos então a transcrever os principais sublinhados, referindo em primeiro lugar a pág. 13 pois nela fala do "corpo astral do seu sonho", num sinal de consciência dupla do mundo astral, quer como onírico quer como subtileza supra-material. Será que Miguel Torga admitia que a sua alma em corpo subtil ou astral se exteriorizava, dormindo, nos sonhos?
Já na p. 15 manifesta a sua grande humanidade e solidariedade com os que sofrem, os seus doentes, as mortes de crianças, e o estoicismo que é necessário para lidar com tal, nele provindo provavelmente tanto da terra, família, genética e educativamente, como da sua adolescência em  que tanto labutou numa fazenda no Brasil. E  depois, ainda, pela sua prática médica e o contacto com tanta gente sofredora.
Na p. 17 há um belo pensamento moral, que Antero de Quental também exprimiu nas suas cartas e no preâmbulo das Causas de Decadência dos Povos Peninsulares, e interrogamo-nos se o teria lido e inspirado mesmo: «Coimbra, 4 de Fevereiro de 1935 - Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde esse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e que natural é ter um amigo!»
Destaque para a sensibilidade ao ambiente de paz e como um abraço amigo pode ser forte, poderoso e simultaneamente calmante, reconfortante. 
(O pensamento de Antero de Quental, exposto nas Causas de Decadência dos Povos Peninsulares nos três últimos séculos, transcrito parcelarmente diz-nos:
«Não posso pois apelar para a fraternidade das ideias: conheço que as minhas palavras não devem ser bem aceites por todos. As ideias, porém, não são felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens. Independente delas, senão acima delas, existe para todas as consciências rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade. Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa fé e na tolerância recíproca! Uma região aonde os pensamentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-se lealmente a mão, e dizendo uns para os outros com um sentimento humano e pacífico: és uma consciência convicta! É para essa comunhão moral que eu apelo...». Fim da citação anteriana...
Na p. 18 assinala muito sentidamente a morte de Fernando Pessoa: «3 de Dezembro – Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era».  Sóbria escrita mas bem sentida e chorada a partida de uma alma. Ter-se-iam encontrado, ou apenas visto, algum dia na Brasileira do Chiado?
Na p. 23, a 4 de Abril 1936, compõe um dos seus belos poemas, que entremeiam o Diário, intitulado Imagem, consagrado a uma «macieira que floriu assim pela primeira vez./ Deu-lhe um sol de noivado, / E toda a virgindade se desfez/Neste lirismo fecundado./»
Na p. 27, de Vila Nova, 16 de Agosto, confessa a sua falta de fé e o desespero que isso lhe causa e, vendo a cara do vizinho que volta da missa,  prossegue com este matutar: «Não é que eu tenha verdadeiramente pecados, ou que, se os tivesse, algum Deus fosse capaz de me lavar deles (até o último aldeão sabe que quando muda um marco não há céu que lhe benza a maroteira). Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração.»
Um belo anseio que desejamos e esperamos que no fim da sua vida Torga, ou Adolfo Rocha, o tivesse assumido, e assim  avançasse mais fácil e luminosamente nos estados post-mortem ou, como ele diz e bem, "extra-biológicos".
Na p. 28, narra excelentemente em Coimbra, a 26 de Outubro,  a história do apelo dum namorado para ir  reanimar a noiva  desmaiada: «Subi umas escadas íngremes, estreitas e lavadas, entrei num quarto, olhei a Julieta adormecida, e dei-lhe uma bofetada imensa, funda, no rosto frio, que doeu à família toda. 
Acordou.
Entreguei a noiva viva ao noivo vivo, e vim por aí fora a pensar no que seria mais verdadeiro: se a linfa do desânimo que faz morrer tudo mal o Setembro chega, se o sangue instintivo que se guarda para reverdecer tudo mal o Março começa.»
E conclui com a analogia da natureza no seu ritmo morte vida, interrogando-se qual o mais verdadeiro, sem dúvida, o da vida, embora a morte e sobretudo o Outono e o Inverno sejam fundamentais seja na natureza, seja no ser humano, para o seu crescimento e desabrochamento pleno, este já extra-biólogo, no corpo espiritual, perene...
 
No dia seguinte, p. 29, tem um belo pensamento, acerca da necessidade de sabermos cuidar da nossa paisagem interior, libertando-a das negatividades ambientais, para ela poder receber o sol belo e forte de cada dia interiormente, salutarmente. Muito valioso conselho, pois após dias cinzentos e de chuva muitas vezes não nos abrimos mesmo gratos  no interior à claridade e calor solar que de novo se derramam sobre nós e o ambiente...
Na p. 30, fala duma «grande discussão sobre a mania que a posterioridade tem de publicar cartas íntimas de escritores mortos», concluindo «cá para mim, a humanidade nem tem o direito de tirar ao indivíduo aquilo que ele espontaneamente lhe não deu, nem de lhe engrandecer o nome contra a sua vontade», numa sua muito peculiar reserva quanto à publicitação, defendendo o preservar o seu íntimo, e assim o querendo também nos outros.
Um pensamento sobre os enterros valioso, ainda que num caso anónimo, e que devemos relembrar de quando em quando, e que é o de estarem sempre menos pessoas do que deveriam estar, vem na p. 33, em Coimbra, 12 de Janeiro de 1937, e outro ainda sobre os melhores meios de nos curarmos, muito bem expresso, crítico do aldeão que se trata deixando-se apenas na cama até se curar ou morrer, ainda que em certas doenças, sobretudo constipações e gripes, pode ser melhor tal atitude de purificação simples passiva, sem remédios, desde que acompanhado de alimentação e lavagens correctas.
Na p. 36 reflecte de novo sobre as mortes e cemitérios. E em Coimbra, a 27 de Julho, cita André Gide nos Pretextes a propósito de estarmos tão encantados com o que já possuímos que perdemos o sentimento agudo dos nossos defeitos, de tal modo que há mais artistas que obras de arte, concluindo que tal aviso devia ser dado de purgante a muita gente em Portugal, incluindo-se a ele.
A 18 de Dezembro, na véspera da sua 1ª viagem europeia, justifica assim o seu "registo do dia em notas sem pé nem cabeça":«Mas eu preciso deste cigarro antes de adormecer. Em pequeno, sem saber bem porquê, a esta hora benzia-me; agora, igualmente, sem ver a fundo a razão da coisa, escrevo um diário. Dito isto - embarco amanhã para a Europa.»
Da sua viagem pela Europa talvez a anotação mais bela seja a no «Alto dos Pirinéus (Lourdes), 24 de Dezembro – Sol. Uma luz maravilhosa inunda esta grande muralha que defende o meu Senhor Dom Quixote das tentações das Folie Bergères.
Olho estes cumes de neve imaculada, fria, e olho em baixo, na cidade adormecida, a morna gruta dos milagres. E, não sei porquê, donde me vem a certeza da salvação da vida, da pureza da alma, da saúde do corpo, não é do fundo. É do mais alto, branco e inatingido píncaro que os meus olhos peregrinos namoram». 
 Das observações das cidades que vai visitando, talvez a de Paris, sentida algo anterianamente, já que Antero de Quental sentira, face ao anonimato das multidões, um vazio de fraternidade nela, valerá registar: É de 14 de Janeiro de 1939 «(...) o homem perdeu aqui, mais do que noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que a criatura domine o criador (...) a impressão que se tira desta enorme multidão é de que não se trata de gente mas duma grande levada que as próprias ruas canalizam (...)»
A Bélgica não o satisfaz, e embora cante no poema Peregrinação, escrito a 16 de Janeiro em Antuérpia: «Vim ver em que lugar da Natureza/ As fadas desdobavam seus novelos./ Vim fechar o meu sol nesta tristeza/ Que enloirece os cabelos», sem que saibamos ao certo se as fadas são mulheres ou apenas os seres subtis da natureza,  no dia seguinte já em «Bruxelas, 17 Janeiro. Gare du Midi» confessa perante a possibilidade de passear ainda durante as 4 horas de espera, que «estou triste e desanimado como uma locomotiva fria aqui ao pé. Andar mais, era entristecer e desanimar mais ainda (...) Afinal, quanto mais ando, mais cercado me sinto de muros e de penumbra. O que levo daqui é uma espécie de luar gelado que não serve de nada na minha quente noite peninsular»
Ressalve-se que a época do ano era de facto a mais triste e fria, que não esteve nos campos e natureza bela, e que talvez o espectro da II grande Guerra já cobrisse essa zona tão martirizada da Europa.
Um salto de dois meses no diário, e na época da Páscoa o seu entusiasmo pelo regresso de uma semana tão necessária para recuperar forças n'«Este Trás os Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão e entra-se logo no paraíso.»
Seguem-se algumas notas valiosas (p. 69 e 71) sobre o ofício de escrever e uma descrição excelente de um momento mágico ou transfigurante a «9 de Outubro – Dia de caça. De manhã nos montes e barrocas de Valcanosa; de tarde nos campos do Mondego, primeiro no automóvel por caminhos demoníacos, depois com o Afonso Duarte, nos arrosais, às codornizes. Mas a grande hora, a hora única do dia, foi o momento em que o meu companheiro, o Vasco, os cães, o automóvel e eu, duma barcaça enorme, recebemos a bênção da lua cheia. Montemor ao longe, em terra-cota, sobre um renque de choupos. Um horizonte sem fim para onde o rio corria. A lua, vermelha como um balão minhoto, pendurada no céu. E aquela luz mediúmnica a penetrar tudo e a projectar a realidade em alma pura num écran distante. Nada que se possa figurar em palavras. Silêncio puro. Silêncio e o Afonso na margem esquerda, hirto, calado, irreal, como um deus antigo (...)». Poderemos mesmo dizer que tal momento de Lua Cheia foi uma vivência espiritual e para ele, apesar de bem descrita, considerada inefável, ao modo místico, e com uma captação e elevação bem original, que repetimos:  "E aquela luz mediúmnica a penetrar tudo e a projectar a realidade em alma pura num écran distante", no fundo dando sinal da sua vivência de expansão de consciência, ampliada, supra-corporal e na unidade superior da Luz omnipenetrante...
Na p. 80 tem duas anotações valiosas, um rapazinho marçano que a tocar flauta enche a rua coimbrã de uma melodia mágica, e uma comparação entre duas senhoras de negro a rezarem enquanto andam na rua e os tibetanos a rezarem ou a moerem nos seus moinhos de oração.
A 3o de Outubro de 1938 faz um rendido elogio ao Brasil que conheceu em jovem: «Filme sobre o Bornéu. Só nestas ocasiões, quando me encontro diante duma floresta tropical, é que sinto verdadeiramente o que significa toda a minha adolescência a romper ao húmus duma fazenda do Brasil. Foi um fermentar que nunca mais acabou em mim, porque se deu no meu corpo dos ossos ao coração. Nada que se possa dizer em palavras, porque não tem expressão condigna a quentura deste lume que recebi duma terra incendiada de vida, de força e de liberdade.»
E a 1 de Novembro descreve bem um eclipse total da lua e confessa que seria para lá que gostaria de ir morar após esta vida terrena, «desfeito em vago, astro frio, iluminado de saudade».
A 9 de Novembro dá uma outra receita da sua vida, ao modo pitagórico de rever o dia e nele observar o melhor e o pior:«Ponho-me a pensar no momento que seja a síntese deste dia...», e depois de resumir dois dramas, conclui que não, «que foi aquele em que dei um beijo gratuito numa criancita desconhecida que passou pelo consultório a acompanhar a mãe». 
 Passa bem esse Natal em «Trás-os Montes, 25 de de Dezembro – O dia foram as camélias e as trepadeiras que plantei com meu Pai. Poucas vezes, nestes trinta anos, me senti tão uno, tão certo, como junto daqueles setenta a plantar árvores. Porque meu pai, assim magro e assim debruçado sobre a terra, enche de paz e de confiança a inquietação mais desvairada».
A 12 de Abril de 1939, faz de crítico literário e conselheiro: «Riam-se lá, se quiserem, mas hoje, depois de reler [Aldous] Huxley, conclui que um dos maiores escritores que tenho lido é... o Júlio Dinis. Pondo de parte aquela santa Selma Lagerlof, que até parece mentira, poucos como ele souberam até hoje encher a minha alma de paz e de ternura. Bem sei que ser escritor não é fazer a entronização do Sagrado Coração de Jesus pela província. Mas também não é fazer morrer desvairados à sombra dum quarteto de Beethoven».
A 7 de Julho, em Leiria, escreve um dos seus poemas amorosos discretos e fundos, pleno de osmose e sintonia:       ACENO: Longe,/ Seu coração bate por mim;/ E a sua mão desenha aquele afago/ Que me sossega inteiro...
Longe,/ A verdade serena do seu rosto/ É que faz este dia verdadeiro.»
A 1-IX, nas Caldas da Rainha, a fazer seus tratamentos de termas, sofre com a promiscuidade de vizinhos:«Hoje ouvi tais coisas a uma viúva asmática, que me esqueci da garganta, da pneumonia possível, de tudo, e saí desvairado para a rua a encher os ouvidos e a alma da intimidade do silêncio»
Este apelo e necessidade do silêncio puro, quem não o desejou, mas quão poucos o conseguiram, parece ser um horizonte da alma sincera ou rude de Miguel Torga, verdadeira e sóbria.
Outro belo poema amoroso, nessas «Caldas da Rainha, em 12 de Setembro, PAZ: Calado ao pé de ti, depois de tudo,/ Justificado/ Como o instinto mandou,/ Ouço, nesta mudez,/ A força que te dobrou,/ Serena, dizer quem és/ E quem sou.»
É um poema que toca no amor e fusão carnal de dois seres, com bastante profundidade e até difícil de se compreender, pois Miguel Torga ouve a força que dobrou a mulher, e que força é essa, o Amor? E ouve-a dizer «quem és e quem sou». Que ser foi dito? O ser feminino e o ser masculino? Os eus que se exprimiram com o máximo de amor?
A 13 de Setembro faz nova recensão crítica: - As Fusées de Baudelaire. Decididamente, não pertenço a semelhante raça. Aquilo, de resto não é nada, a não ser o fígado a dar sinais de si. Ao pé dum Tolstoi, dum Morgan, dum Rilke, coisas assim parecem realmente vómitos biliosos».  De realçar estas suas três preferências...
E a 20 de Novembro sobre a música: «De dia, apenas um fado rigoroso, que Lisboa, pedagogicamente, mandou à província pelas ondas hertzianas.
Uma mulherzinha a gemer cio com tal convicção, que eu nem sabia se era a sua laringe que cantava, se era o seu sexo.
Sem ofensa para ninguém, é claro. (...)»
Em Leiria a 15 de Fevereiro escreve acerca dum concerto com diversos compositores: «mas chega a vez de Beethoven. O pianista dá a primeira dedada no teclado, e qualquer coisa de sobrenatural surge logo. O andamento prossegue. E só as paredes não estremecem, não se arrepiam, não ficam possuídas de pavor, porque são insensíveis.
É uma beleza cósmica, de raios e de trovões, uma beleza dada por um Deus que viveu na terra por engano».
Excelente esta sensibilidade intensa e cosmicizante à musica e à divindade bem expressa pelo génio de Beethoven.
A 12-III escreve um extensa nota de certo misantropismo e queixas, iniciada assim:«Cada vez me sinto pior. Mas quando me queixo encontro uma tal distância nos outros, que já não tenho coragem de me abrir com ninguém (…) e depois de tecer considerações chama a atenção para «um pinheiro que numa ravina, com a morte sempre diante dos olhos se espreme em conceber constantes pinhas. Ora qual será o pinheiro bem abrigado num vale, bem agarrado à terra pelo espigão, a pensar em tudo menos na sua agonia, capaz de compreender o irmão da ravina?
É esta consciência da fundura da vida, da urgência das horas, que a doença traz a quem sofre, que os sãos nunca poderão entender.»
Destacaremos o constante contacto com a doença, agonia e a morte do médico Adolfo Rocha e logo uma natural contaminação de doença, de meditação na agonia e morte, e até apreensão pelo seu adoecer e morrer (embora venha a viver 87 anos...)  e daí essa sede de viver, que também os que sofrem fortemente ou sofrem, realiza e os queima num não perder tempo, tão ao contrário de tanta gente que está a passar o tempo, a distrair-se, a alienar-se, sem qualquer noção do horizonte da morte e da vida no além, que será naturalmente de acordo com o que se viveu ou se alienou...
No mês de Julho, Miguel Torga está por Leiria e uns dias na Nazaré e, como sempre, interroga-se sobre o mar, rendendo-lhe belas páginas entrecortadas pela sua preferência dos rios, fragas e montanhas. Destaca-se a percepção da fundura da zona da Nazaré, hoje bem mais compreendida pelas suas ondas gigantes e os surfistas.
A sua descrição do dia 2-VII da hora de banho é cómica mas presta-se para grande sabedoria sobre a desconfiança de uns plantados e murados nos seus lugares e eus e por outro lado o gregarismo, a naturalidade, solidariedade dos outros, no caso uma criança que deixa a barraca, os pais e anda a conviver com toda a gente.
No dia 3 realiza que «o mar é em última análise o coração do mundo. Que pulsa, geme, só por ser como o nosso: fonte e consciência biológica de tudo». Uma boa expansão de consciência oceânica, diremos...
E logo em seguida anota, embora já no dia 4:«Continua o nirvana. Nem romance, nem contos, nem poemas. Apenas este monólogo. Se isto pudesse continuar, não era de todo desengraçado publicar mais tarde, na integra, estes frutos insoços de alguns dias de férias. Um livrinho doméstico, espontâneo, descuidado para o qual eu fosse como leitor sem a relutância com que vou sempre para os outros que escrevi...»
É bem curiosa esta confissão no seu 1º Diário que só uns anos depois sairia à luz do dia, mas para ser continuado por vários outros, dezasseis...
Em Setembro de 1939 regressa a S. Martinho de Anta e escreve três ou quatro anotações valiosas: «21 de Setembro. Aqui estou. Vim mostrar a mulher aos velhos, à senhora da Azinheira e ao negrilho. Gostaram todos.
Nota de «22 de Setembro - dia foi em Guiães, a caçar e a vindimar de manhã, e a tarde a ler versos num cemitério que só visto. Se um dia viera a talho de foice, hei-de escrever uma página sobre estes cemitérios transmontanos, de granito, aninhados no cimo de uma serra, com ar de quem lava as mãos disto da vida e da morte.»
Talvez Miguel Torga pudesse ter visto também, que ao erguerem-nos em altos, remetem-nos para uma região de ninguém, ou mesmo mais próxima do céu. É uma sacralização de um local, é dar aos mortos sossego meditativo e amplas vistas, talvez para despertarem do seu sonho terreno e se internarem ascensionalmente pelo infinito mundo psico-espiritual.
A 2 de Outubro, escreve com um certo orgulho do campo e patriarcal: «Fui mostrar-lhe a Vila. Mas fui mostrar-lha como os meus avós a mostraram às mulheres deles – a pé. Foram só seis léguas a pé...» Era a sua mulher, a notável investigadora da literatura e epistolografia portuguesa Andrée Crabbé, da Bélgica, a ser iniciada na tradição marital rural lusa.
E a 7 de Outubro narra um bela história que um seu paciente já lhe contou entusiasmado várias vezes, que ilustra bem a solidariedade duma povoação, contra a opressão estadual e o oportunismo individual.
A 23 de Janeiro de 1941, a propósito de um “infeliz novelista” que acabara de ler, faz considerações valiosas sobre a novelística portuguesa, fraca mas que precisa de ser trabalhada e incentivada, tendo em conta até a tradição nacional em que se insere e que terá um futuro: «Por isso é que eu nunca tenho coragem de atirar uma pedra seja a quem for que conte uma história à lareira tipográfica deste país. Mesmo trôpega, é preciso que haja sempre uma equipe pronta para levar o facho algum tempo, até que venha alguém mais seguro e dextro que o conduza ao seu destino. Um génio, - se ele é possível aqui, com a missão de revelar alguma coisa de nós ao mundo -, necessita de secundários que lhe desbravem os prováveis caminhos da sua força. (...)»
A 14-II narra excelentemente um encontro mágico numa rua de Leiria, explicando que os protagonistas da história:«Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui pela rua fora, a ser junto deles em físico o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que eu não saberia exprimir, e que há-de ser a terra de sua duração.
Eram quatro vultos. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como num sonho. Vinham, e da sua magia irradiava uma vida maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Tudo revelado em som. Uma epopeia funda, que transpunha a muralha da cidade morta e a inundava de calor e da palpitação dum poema.
À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que vinha à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que vinham atrás.
Ninguém poderá nunca saber se eram todas suas mulheres,s e filhas, se mães. Mágicas, rufavam, batiam, martelavam, e criavam à volta dele, daquele hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de nuvem carregada de aceitação.
Passavam. O próprio chão tremia. Passavam. As próprias pedras tinham saudades.
E quando lá longe, lá nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, tinha deslizado pelo céu morto da cidade o clarão de uma estrela cadente»
A 29 de Março vem uma nota interessante, mencionando Antero de Quental, tomando a defesa dele e indignado com Castilho: «Em termos absolutos o homem é um valor imponderável, inteiro e perfeito como um dogma. Mas em termos relativos, sociais, o homem é o que vale para os seus semelhantes. E é na contradição de medida que vai de próximo a próximo que consiste o drama de ninguém conseguir ser ao mesmo tempo amado em Tebas e Atenas.
Hoje fui encontrar numa correspondência de Castilho este chamadoiro ao Santo Antero do Eça: A Pantera do Quintal! E, por mais voltas que desse em todo o dia à minha boa vontade, não consegui apagar da aura maravilhosa do autor do Bom senso e do bom gosto a ferida eterna daquele velho, a singrar o desgraçado travo pessoal e humano».
                                       
Talvez Miguel Torga valorize demasiado o "chamadoiro" de António Feliciano de Castilho (o seu filho Júlio usava mais para gozar com Antero, o de Lutero), no fundo uma simples frechada (entre outras em que foi pródigo) de um adversário derrotado e despeitado, mas seria interessante sabermos o que no fim da sua vida (morre em 1875), Castilho pensava de Antero, em ascensão. Quanto à elevada epistolografia anteriana, certamente que a sua dimensão não é de quintal mas universal...
A 8 de Maio considera Miguel Torga com muita justeza:«o que mais estreitamente liga os homens na vida não são as forças puras e generosas. Se assim fosse, não se teria queimado nem ofendido tanta gente superior que andou no mundo. O óptimo moral e intelectual da humanidade é um compromisso entre o bom e o mau, entre o limpo e o sujo, entre a Quaresma e o Carnaval. Por isso quem traz uma chama limpa a alumiá-lo, e só bebe a luz daí, não pode ser entendido nem tolerado lá onde a luz é um pobre crepitar de morrão de candeia», esta parte final mostrando-o bem sensível à luz interior ou espiritual mais ou menos acesa nas pessoas e como tal pode ser mal recebido...
E a 8 e 9 de Agosto sinaliza a morte do grande poeta indiano Rabindranath Tagore e tece considerações sobre o problema da salvação da alma, entre a pobreza e sacrifício de S. Francisco de Assis, e o integrar-se no movimento universal desta gigantesca máquina moderna e fazer nela de parafuso, como mostrou Chaplin». Já a revisitação de leitura «das coisas da Índia maravilhosa que em mim começa em Fernão Mendes Pinto, passa pelo Buda e acaba no Rudyard Kipling», teremos de constatar quão limitadas eram as suas fonte e por isso não admira que confesse «perder-se num fantástico labirinto humano», testemunhando a sua emoção ou admiração perante algumas das lendas fabulosas da civilização indiana.
E terminamos esta revisitação a voo rápido do primeiro volume do Diário de Miguel Torga, ainda jovem, nos seus trinta e poucos, muito forte na sua sensibilidade e amor da terra, da lavoura e da fraternidade humana, em especial para os mais humildes ou sofredores. A inseri-lo nalguma linha memorialista lembro-me de Raul Brandão, certamente seu irmão em vários aspectos, nomeadamente na espiritualidade da fraternidade humana.
Um 1º volume dos Diário do qual se recomenda a leitura, tanto mais que cada leitor vibrará, aprenderá ou apoiará diferentes passagens, tendo eu apenas seleccionado algumas....

5 comentários:

Tartaruga Editora disse...

Uma bela peregrinação pelo mundo torguiano que foi, sem dúvida, o melhor e maior "cantador" do Douro maravilhoso, viajante incansável da beleza e da rebeldia humana. Um Ser que encantava e deliciava…
Obrigada por dar-lhe a atenção que a Obra merece.

Tartaruga Editora disse...

Miguel Torga foi, sem dúvida, o maior Escritor e Poeta depois de Camões e de Fernando Pessoa.
É importantíssimo ler a sua Obra.
Deixe-se fascinar pela beleza das palavras...

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Muitas graças, Manuela, pela sua apreciação elogiosa, pois sem dúvida é uma das pessoas que conhece bem o Miguel Torga, e nomeadamente a sua valiosa correspondência particular com Fernão. Sem dúvida, um ser livre e libertador, nascido nas fragas transmontanas e que soube avançar tão rebelde às manipulações como sensível à fraternidade humana. Inspiremo-nos na sua vida e obra, gratamente.

Tartaruga Editora disse...

Muito obrigada, Pedro, o estudioso da Alma e do Espírito...
O livro Vindima, de Miguel Torga, estava esgotadíssimo e consegui que o seu Autor aceitasse fazer uma 2ª edição. É divertidíssimo...quase erótico…
M.T. ouviu-me, pois o Fernão ajudou na minha insistência. E em Espanha, em Granada, começaram a ler sofregamente a sua Obra.
Oxalá os "ouvidos moucos" ouçam esta verdade.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Bom, Manuela. A Vindima não conheço, nem essas cartas entre Fernão e Miguel Torga que seriam certamente uma luz neste crepúsculo do livro e da cultura mais pensada e ética, ou mesmo da fraternidade tão vivida por eles...