terça-feira, 15 de outubro de 2019

Kubra. Ensinamentos (3º) dos mestres da Tradição Espiritual Iraniana: Najm al-din Kubra.

Como já vimos pelos dois textos anteriores dos ensinamentos dos mestres da Tradição Espiritual Iraniana, Najm al-din Kubra foi um dos que mais brilhou na sua funda entrada nos mistérios da alma, do espírito e do caminho para a ligação ou religação com Deus e concluiremos por hora com outros aspectos valiosos da sua obra, mais acessível pelos estudos de Henry Corbin, Fritz Meier e Paul Ballafant, entre outros.
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Destaquemos então da sua apuradíssima ligação espiritual o seu comentário ao famoso verso (Corão, III=103): «Protegei-vos segurando a rédea de Deus e não vos dividindo», no qual dirá que no aprofundamento da concentração visionária e da relação entre o discípulo e Deus, à medida que cresce a aspiração, e o pedido é sincero, emana de Deus uma luz que une os corações deles Consigo, de tal modo que se sente o gosto da ligação íntima amorosa e se vê mesmo uma corrente vinda do céu até ao coração, que é assim protegido. Isto é denominado a "rédea de Deus". 
A concentração visionária que provém do recolhimento tem o seu oposto na dispersão, que é para Kubra o pior castigo que podemos ter. Ora, direi eu, se observarmos o que se passa hoje com o estado psíquico das pessoas tão sujeitas a informações e contra-informações, publicidades e aliciamentos, e como lhes é tão difícil recolherem-se, e portanto irem abrindo o seu olho espiritual e religarem o coração a Deus, concluiremos quão grande e difícil é actualmente a nossa tarefa. Kubrâ exortar-nos-á então a roubarmos diariamente tempo, uma hora que seja, a todos os ladrões da nossa alma para o consagrarmos mais a Deus, à sua invocação, seja porque nomes for, diremos nós, e lembrar-me-ei do tão simples: Deus, Deus...
Dirá ainda que «o recolhimento é o apego do coração ao trono de Deus, ou o apego do trono ao coração, ou ainda o encontro dos dois a meio do caminho». Anote-se que esta imagem arquétipa do "Trono de Deus" se encontra no Corão onde se diz que ele é sustentado pelos anjos que ao seu redor o glorificam, com louvores e preces pelos crentes (Corão, 40:7).
Depois desta intensificação da ligação interior divina, realiza-se que Deus no trono significa também instalar-se no coração, e em função da polaridade caracterizadora de Allah, Rahman-Rahim, dirá que Deus assente no trono em Majestade é o Todo Compassivo (Rahman), e o que se desvenda no coração em beleza é o Muito Compassivo (Rahim). 
No avanço do murid ou discípulo para a Divindade surgem as fases da sobriedade e do inebriamento, quando o discípulo sente que na morte do seu ego o Eu divino é ele, e exclama (tal como na Índia, os místicos do Advaita Vedanta, nomeadamente no livro Astravaka-Gita, que traduzi e comentei), nesses estados de maior exaltação divina, por vezes vistos como orgulhosos: «Glória a mim, Glória ao meu Eu. Como o meu nível é elevado».
Estes estados de grande comunhão com o divino foram experimentados por Kubrâ que explicou também o verso corânico II=25, «O Vivo, o Sempre existente, em quem nem sono nem sonolência entram», como referente à consciência sempre em oração ou ligação à Divindade, certamente algo difícil para a pessoa normal...
Kubrâ valoriza bastante os retiros, que idealmente não devem sequer ter prazo, e que são como uma oficina de ferreiro onde o jejum (conforme o hadith canónico: «O demónio escorre através da descendência de Adão pelos canais do sangue. Não estreitareis estes canais pelo jejum?», a pureza e a oração e a invocação apuram a ligação ao mestre e a Deus.
É a invocação  divina que faz com que a energia espiritual entre por essas artérias e veias, quais poemas no corpo, purificando-nos e que deve chegar a um ponto em que é ela que nos invoca. 
No seu suporte da respiração, revela-se como o som (presente no nome Allâh) e que é o nome de Deus, que sobe do coração, e que desce do trono de Deus. Certamente que como disse o mestre Abû ‘l-Najîb, comentando o verso corânico XXVI=89: «Só aquele que vem a Deus com um coração são», «o meu coração é apenas como um canjirão que se esvazia para Ele». 
A tradicional linguagem ou canto dos pássaros referida pelos místicos, e tão famosa pela obra de Attar, a Conferência dos Pássaros, é considerada por dois modos: tanto brota dos afectos que existem no peito das aves, como pode emanar do coração do homem que está dilatado ou mesmo intimamente unido a Deus, e como sinal da sua alegria. Kubra diz-nos, mesmo que não aprovando muito isto, um dia ouviu esse canto num fakir que se dirigia como ele para a cidade santa Karbala (no Iraque, terra do martírio e túmulo de Ali, o 1º Imam dos Shiaas), e que este lhe explicara que se Deus o permitia, era uma bênção. Só mais tarde é que Kubra atingiu esse nível ou estação, e então arrependeu-se de ter questionado o fakir mais avançado que ele.
Desta unidade entre a alma espiritual humana e o Cosmos é também bela a aprendizagem obtida numa visão dialogante com um mestre que lhe explicou a significação mais íntima das estrelas e do sol: «Deus contempla os seus adoradores e servidores dia e noite. De dia é o Sol o seu olhar e de noite as estrelas».
A descrição dos estados elevados de consciência é apresentada de vários modos, como por exemplo, quando o ardor e a concentração aumentam, o nobre viajante tem a impressão que ora os sinais entram dentro dele ora ele penetra neles, ou ainda que as estrelas do céu se derramam sobre ele ou que o céu desce sobre ele, ou finalmente que saboreia o céu inteiro dentro do seu peito ou que é levado ao alto e que vê a terra de cima. Sem dúvida muito belas e significativas expansões do seu corpo espiritual unificante consciencializadas.
E, finalmente, devemos referir a importância da revelação do seu ser de luz, do guia do mundo oculto, o sol da fé, o sol do coração, que Henry Corbin na sua valiosa obra tão bem relacionou com o filão pré-islâmico do ensinamento de Zoroastro sobre a união com a nossa Daena, o Anjo feminino e nossa contraparte celestial, e que de certo modo é a manifestação em nós do Eu divino individualizada num corpo de luz ou de glória originado a partir do coração purificado e ligado ao seu mestre e aos nomes e atributos de Deus. 
Kun! Sê e ele ou ela é....
Para terminarmos este texto que resume alguns aspectos do seu ensinamento, sobretudo contidos n' As Eclosões da Beleza e os perfumes da Majestade, oiçamos o seu comentário ao famoso Kun, Sê, o correspondente ao iniciático Esto, grego: «Aprende que o viajante só se qualifica na santidade quando lhe é concedido Kun, sê, pois Kun é a ordem de Deus na sua palavra: «A nossa ordem para algo, quando o queremos, é dizer-lhe apenas. Sê! E ele é», (Corão, XVI-40) e isso é obtido quando a aspiração dele se funde com a de Deus de tal modo que tudo o que Deus quer, ele também quer, e nada quer do que Deus, o Senhor dos mundos, não quer.
Este querer e seguir a Vontade Divina, e nela confiar, ou ainda o Bem Comum ou a Verdade, é certamente pedra de toque para melhorarmos a luminosidade da nossa viajem dinâmica na Terra.
 Terminemos com gratidão e uma última citação de Najm al-din Kubra, possa ele inspirar-nos: «Quando a invocação divina está próxima da consciência mais íntima ou secreta e quando o viajante faz silêncio, é como que fossem plantadas agulhas na sua língua ou como se a sua face  fosse completamente uma língua que invoca pela luz que emana dela»
Noor. Kun...

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