terça-feira, 15 de outubro de 2019

Kubra. Ensinamentos (2º) dos Mestres da Tradição Espiritual Iraniana: Najm al-din Kubra." O Amor é a obediência do amado à amada."

Como já dissemos no 1º texto dos Ensinamentos dos Mestres da Tradição Espiritual Iraniana, Najm al-din Kubra valoriza muito a oração assente na repetição de nomes sagrados ou divinos, prática esta presente na maioria das religiões e tradições, seja apenas para ajudar as pessoas a concentrarem-se, seja porque se consideram tais sons como mais portadores de energias animicamnte operativas e causadoras de religação espiritual, ou seja, permitindo-nos tornar-nos pontífices, construtores de pontes entre a nossa consciência horizontal e externalizada e o espírito e o Divino.
1 - Allah e Muhammad, com o Bismillah, "em nome de Deus, o gracioso, o misericordioso" no canto superior, em caligrafia.
 Kubra sugere dois percursos energéticos, a serem sentidos ou imaginados, aquando da repetição ou invocação do nome de Deus (Allah e Huwa, Hu, Ele), ou da sua unicidade lâ ilâha illâ ‘llâh, "não há deus senão Deus", num processo dual que encontramos também noutros mestres seja sufis seja yogis: lâ ilâha repete-se subindo do ventre para a cabeça, e o illâ ‘llâh, descendo para o coração, ou então as mesmas palavras, a 1ª subindo pelo lado direito e a 2ª descendo pelo lado esquerdo para o coração, este de afirmação do "senão Deus" (amor, luz), que vai entrando no coração. Outro percurso conheço eu pessoalmente, que me ensinou um sufi turco, livreiro alfarrabista em Istambul e tradutor para turco de uma obra que me ofereceu de Ibn Arabi
Se feita com atenção e amor, esta prática oferece, segundo Kubra, resultados tais como a substituição da dominação do coração pela nossa alma (semi-instintiva) e as suas relações-projecções com o mundo, pela dominação de Deus (com a consequente iluminação do coração, antes entenebrecido) até à abertura da visão espiritual e à descoberta da "consciência secreta", ou cimo, apex, do nosso espírito.
Já a oração é apresentada como conversa (de convergir) no íntimo do nosso ser com Deus, realizando-se no seu aspecto mais elevado no coração que dialoga com Deus, pois por cada palavra ou frase ou sentimento que ele exprime Deus responde-lhe com outras palavras e vibrações. Advirtamos que tem de ser mesmo o coração profundo a orar, já que a Palavra, o Verbo, o Sermo, a Vibração, o fogo do Amor, está lá, e os sons e palavras são apenas testemunhos dessa ardência.
Ora esta forma de oração derrama no sentido espiritual do gosto uma grande doçura, e portanto é importante  consciencializar-nos mais deste gosto interior, o qual se vai obtendo pela transmutação do corpo instintivo e rude no corpo verdadeiro e espiritual, o qual vai crescendo a partir das práticas, da ascese, das provações difíceis e do amor. 
Será ele que nos une ao corpo verdadeiro dos outros seres, permitindo manifestarmos mais o nosso corpo espiritual, o nosso ser verdadeiro. A independência deste corpo nobre ou espiritual em relação aos cinco elementos é vivenciada por toda a gente pelo menos em alguns sonhos, e pelos discípulos ou iniciados através da concentração visionária.
A potência interior da invocação e repetição consciente do nome de Deus é também visível nos relatos feitos por Kubra de começar a emanar de cada membro do corpo uma invocação com um som parecido ao de uma trompa ou chifre ou ainda dum tambor, vindo mais tarde a estabilizar-se como o zumbido duma abelha. É interessante notar que estes sons audíveis interiormente são também descritos pelos yogis e praticantes da meditação, chamando-se na Índia tal o anahata nada, o som sem som, e tendo sido mesmo reconhecido em cada chakra (ou centro energético ao longo da coluna vertebral) um tipo próprio de som.
Dara Shikoh, com o seu mestre Mian Mir.

Nas suas obras de comparação do Hinduísmo e do Islão e no seu Diwan poético, o notável místico e príncipe mogol Dara Shikoh, fala deles, valorizando muito a audição interior de tais sons, chamando mesmo a tal o Sultão das práticas, já que de facto implica um grande silêncio e elevada concentração subtil.
Estes sons são segundo Kubra o resultado de o homem conter dentro de si os cinco elementos e surgem assim tal como a ramagem das árvores agitada pelo vento, ou o crepitar do fogo, e são sinais do cântico de glória a Deus de todo o nosso ser que a invocação origina. 
                                                   
Aliás Najm al-din  Kubrâ descreve mesmo o processo internamente dizendo-nos que as palavras sobem do coração para a cabeça e para Deus e que Deste descem energias espirituais, ou mesmo na cor verde vivificando o coração de tal modo que ele vai crescendo e fortificando-se chegando mesmo Kubra a dizer, ecumenicamente, que o coração é como Jesus em criança e a invocação como o seu leite.
O aprofundamento da invocação e repetição do nome de Deus leva portanto a uma maior sensibilidade do corpo espiritual e dos movimentos energéticos e luminosos que aí acorrem, seguindo-se estados de resplandecência, amor e até de proximidade ou mesmo união com o Invocado.
Claro que esta invocação implica um trabalho hercúleo da limpeza das estrebarias que todos temos dentro da nossa alma comum e das quais em geral nem sequer estamos cientes da quantidade de animais, vícios e distracções que só quando começamos a meditar e a praticar a invocação de Deus tomamos consciência.
Com a continuidade das práticas o nosso corpo nobre ou precioso vai-se desenvolvendo e com ele a capacidade visionária, pois o espírito está dotado e é em si mesmo um órgão subtil celestial, capaz não só de ver como de viajar no mundo subtil e chegar mesmo ao sol. 
A contemplação pode ser dirigida para o mundo físico, para o mundo subtil ou oculto, com as suas terras, seres e coisas, e livros (escritos com pontos, letras e imagens, que lidos permitem a ciência íntima), e finalmente para o que o céu contém (tal os planetas com as suas características próprias: Saturno e a capacidade de concentração visionária, Marte e a discórdia, Vénus com a alegria e emoção, e Mercúrio do conhecimento e das ciências, podendo haver tanto visão telescópica como apenas absorção de qualidades), chegando-se por último à pureza de Deus.
Outros aspectos possíveis de meditação, invocação ou contemplação são os atributos de Deus ou os seus nomes de qualidades, dos quais os noventa e nove, "os mais belos", são os amplamente dedilhados sobretudo na arte, e que por vezes nos chegam até inesperadamente, acabando por depositar-se no nosso coração algum influxo da sua essência e aí crescer.

Todas estas práticas assentam numa comunicação de energias ígneas, de luzes e fogos, que tanto sobem do coração e da sua porta aberta para Deus, como descem da sede ou trono de Deus, e que vão purificando-nos até que a face brilha e irradia luz do terceiro olho, chegando mesmo uma pessoa a ver-se com uma face totalmente luminosa e por fim a ver uma personagem, o mestre do mundo escondido, o pré-eminente, a balança do mundo oculto, que acabará por fundir-se connosco, e que no fundo é também o Eu divino em nós.
Prato tradicional do Irão em porcelana, oferecida pela adepta da linha sufi de Nur Ali Shah Tabandeh,  Farnoush Fadayan Motlagh.

  Kubrâ descreve pois com originalidade uma ascensão da capacidade visionária interna que começa por abrir-se pelo olho espiritual, em seguida pela face, depois pelo peito e finalmente por todo o corpo.
O conhecimento do nome supremo de Deus brotará do coração e inclui todos os signos e letras, e disto nascerá o amor no seu máximo, original, incriado, onde o invocador ou nobre viajante se unificará ou aniquilará, como diz citando Al-Hallaj: «Admiro-me de Ti e de mim: tu aniquilaste-me a mim mesmo em Ti. Aproximaste-te de tanto e tão bem que Acreditei que Tu és Eu.»
O mesmo se passa no Amor, como todos os grandes místicos e amantes têm experimentado: o amante aniquila-se de tal modo no amor que se torna amor, aniquilando-se depois na amada. Aqui há a passagem do amor do coração, ao amor fervente, do espírito, numa ascensão à aniquilação ou superação de si na essência bondosa, luminosa e divina.
Falamos no início deste texto que Kubra apresenta a ascese como uma parte do caminho e de facto a sua ideia é a de que há necessidade na alma tanto da purificação, arrependimento e pacificação, para que se torne verdadeiramente coração, como no desejo ou apetite, o qual deve trocar os objectos dos cinco sentidos perecíveis pelo que é permanente e eterno, o espírito divino, passando do nível corporal para o desejo do coração e a aspiração ao Alto, e recebendo então as luzes da beleza e da compaixão divinas.
A evolução ou maturação do ser humano é caracterizada pelas asas da esperança e do receio dos jovens, no seu limitado saber, da contracção e da dilatação (do coração) do homem maduro, com o seu livre arbítrio emanando do poder do espírito pré-eterno (e assentes nas suas qualidades de paciência e de gratidão), e as da intimidade e veneração do ancião (assentes na sua satisfação e confiança), que ainda se transformarão nas do conhecimento e do amor, até chegar às da renúncia e da estabilidade. 
A revelação então dos atributos divinos pode surgir em duas linhas, a da beleza íntima, e a da majestade venerada, a primeira mais doce e generosa, a segunda mais poderosa, impetuosa ou violenta até. É interessante observar que para Kubrâ os atributos divinos de beleza e compaixão-benefício sejam visionariamente virgens belíssimas e puras, por detrás dos seus véus, certamente aludindo às houris, entidades celestiais angélicas compreendidas e interpretadas demasiado carnalmente
E fiquemos para concluir este segundo texto com uma aproximação de Kubra ao mistério do Amor, valiosa e algo raramente vivida dada a sua excelência de Fiel do Amor: "O Amor é a obediência do amado à amada."

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