sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Amor muda a natureza, a todos dá asas, a todos eleva. Otto Vaenius, "Amorum emblemata". Emblémes d'Amour. Emblemas do Amor.

 Na emblemata amatória - livros de emblemas ou divisas de amor -, as obras de Otto Venius (o holandês Otto van Veen, 1556-1629) são inegavelmente das mais belas e instrutivas, e cada imagem e pequena legenda ou verso abre-nos para o mundo perene da beleza, da sabedoria, do amor. 
É certo que já no século XVI alguns livros de emblemas tinham surgido, começando com Alciato, e depois com Horapollo, Paradin, Junius, Beze, Boisard, etc., mas a delicadeza e perfeição artística e a utilização de anjinhos ou cupidos incarnando as qualidades e  poderes, desafios e dificuldades da vivência do Amor entre os seres tornaram-nos uma fonte de encantamento, tanto mais que a Reforma protestante aumentara o distanciamento dos Anjos em relação aos fiéis e crentes e a Contra-Reforma reprimia os cupidos do Amor .
Cada gravura emblemática de Otto Vaenius é uma fonte pluridimensional de sabedoria para quem a sabe ver, sentir e contemplar, a que as palavras ou versos provindos da sabedoria greco-romana e medieval (tais Ovídio, Horácio, Séneca e Petrarca) acrescentam valiosas ideias-forças  na nossa compreensão, meditação e assimilação do Amor, entrando no nosso vasto teatro de memória semi-consciente mas bem actuante nas nossas relações humanas mais ou menos amorosas e felizes. No fundo era uma angelizada arte amatória psicológica, moral e social a fornecida aos jovens europeus dos belos tempos do séc. XVII.
A primeira criação do Otto Venius, humanista e pintor, mestre até de Rubens, foi emblematização do romano Horácio (68 a.C. a 8), dada à luz em Antuérpia em 1607, Quinti Horatii Flacci Emblemata. Imaginibus in aes incisis, notisq. illustrata,  na qual desenhou 103 emblemas, ilustrando  os motes em latim extraídos da obra horaciana, acrescentados de versos em francês e holandês, com sentidos morais e éticos, de virtude, sabedoria e auto-realização.
                                       
Em 1608 publica a obra que se tornará paradigmática deste tipo de livros filosóficos-morais-devocionais-a
morosos com o anjo-cupido, os Emblemas do Amor, ou Amorum emblemata, figuris aeneis incisa, com dez textos ou poemas valiosos introdutórios e laudatórios, e com 124  emblemas em forma de oval, simbolizando o Amor e seus poderes e provações, desenhados e abertos por ele em cobre, com divisa ou título inicial seguindo-se uma mesma quadra em latim, holandês e francês, como se verá em breve. A versão da quadra em latim é porém mais erudita, compreensivelmente, face à das línguas vernáculas mais simples. O sucesso foi tão grande na apresentação tão artística duma arte amatória, ou aprendizagem do amor, concebido como sagrado, criativo, aperfeiçoador e destinado a todos, que outras edições se sucederam e nas quais ao texto em latim, holandês e em francês se juntaram alternadamente as línguas italianas e inglesas.

 Já alguns  anos depois, uma edição francesa intitulada Emblemes d'Amour illustrez d'une explication en prose fort facille pour entendre le sens moral de chaque Embleme, é dada à luz sem data nem local, mas que se crê (tal Mario Praz) por volta de 1620,  por um sábio (impressor?) francês que selecionou cinquenta emblemas dos cento e vinte e quatro originais e inseriu-os dentro de um duplo círculo e duma moldura quadrada, numa página, ficando na seguinte e ao lado o texto em francês, contendo a quadra original, com pequenas diferenças, e em letra mais pequena dez ou doze linhas de hermenêutica ou interpretação sábia, onde em geral está incluído um dito em latim, de autores greco-romanos ou dos adágios universais, que Erasmo compilou e comentou excelentemente.

  Após esta já longa introdução e na qual não referimos outras obras valiosas  emblematizadas de Otto Vaenius, tal o Amoris Divini Emblemata, de 1615, onde inseriu 60 emblemas gravados sob cobre, com citações em latim e versos em espanhol (pois fora pedido e dedicado à princesa Clara Eugénia, de Espanha), e ainda em francês e holandês,  e mais dedicado ao amor a Deus, num diálogo entre a alma e o anjo, passemos então ao emblema que escolhemos e que na sua pictura é bem mais doce ou movente que a hermenêutica moral, contudo esta sem dúvida mais substancial ao transmitir por exemplos, analogias e preceitos o poder transformador e intensificador na psique humana do Amor.
 O emblema foi selecionado ao fazermos istixara, a designação persa para o abrir dum livro à sorte ou fortuna, na tradução francesa da obra original. E vou partilhar a duas versões do verso em francês, a primeira a original, impressa em 1608 na Holanda, trilingue (e que está online), e a segunda na edição apenas em francês, com traduções minhas.

Edição de 1608, de Antuérpia, mais perfeita.

      

AMOR ADDIT INERTIBVS ALAS. 

Nemo adeo est stupide, natura mentis asellus,
Cui cor et ingenium haud indere possit Amor.
Pegaseas pecori Arcadico ille accommodat alas:
Mopsum hebetem in blandum format et arte procum.

[Trad: O Amor adiciona asas aos fracos [ou inertes].

Ninguém com mente de burrinho é tão estúpido,
que o Amor não possa introduzir coração e engenho. 
Ele acomoda ao rebanho da Arcádia as asas de Pégaso:
 o pesado Mopsus 
modela com arte num jovem atraente.

 Amour change nature.

«Il n'y a parmy nous de chair masse si lourde,
A qui ne puisse Amour ses aislerons donner,
Il peut aux grands esprits l'asne páragonner,
Et au plus gros rustau esueiller l'ame gourde. »

           «Trad: O Amor muda a Natureza                                                     Não há entre nós corpo de carne tão pesado,
A quem  não possa o Amor as suas asas dar
Ele pode aos grandes espíritos o asno elevar,
E ao maior rústico a alma adormecida despertar.»

 A edição francesa, c. 1620, as gravuras com leves diferenças da original de 1608, sobretudo nos cenários.

«Il n'y a parmy nous nature si grossiere,
A qui ne puisse Amour ses aislerons donner,
Il peut aux beaux esprits le plus asne egaller,
Et le rendre bien tost a lui meme contraire.»  

Trad. Entre nós não há natureza tão grosseira,
A quem não possa o Amor  suas asas dar,
Ele pode aos belos espíritos o mais asno igualar,
E torná-lo rapidamente o contrário de si mesmo.

Trad. Among us there is no nature  so coarse,
To whom Love cannot give its wings,
It can equal the most dizzy to the beautiful minds,
And turn him 
very quickly the opposite of himself.

                                      
Hermenêutica: um dos ensinamentos que podemos extrair ainda desta valorização do fogo do amor intensificando o coração e alma e aperfeiçoando as pessoas é entendermos que o burro ou animalzinho somos nós próprios ou, melhor ainda, a nossa natureza animal, instintiva e mais ou menos rude. É sobre ela, nela, que o anjo, o mestre, o espírito, o eu superior em nós, põe cuidadosamente as asas. E que asas são estas? As irradiações do amor, da devoção, da aspiração, da compaixão, da abnegação que brotam de nós...
E quando são postas ou manifestam-se em nós? Quando conseguimos vibrar nesses actos de amor, de aspiração, de comunhão, ou de abnegação a qualquer momento, em qualquer situação, seja pelo amor à amada, ao próximo, ao Bem, à Divindade.
São postas sobre nós ou crescem em nós, e o Anjo é tanto ele como a nossa consciência alcançando a subtileza da alma e a existência de asas nela, asas que são raios de energia ígnea, psíquica, que brotam do coração, e do espírito e que irradiam como asas seja para vencer obstáculo, preguiças, egoísmos, seja para nos elevarem ao alto, cósmico e divino, ou ainda ao bem da família, ao bem comum, à multipolaridade equitativa mundial.
O que é que este emblema nos pode dizer mais em hermenêutica espiritual? É que para as asas crescerem e
 nos elevarmos, o burro ou asno,  mente limitada, o eu-ego, tem de se curvar, silenciar, e depois deixar que do seu interior e do Cosmos as energias aladas brotem, manifestem-se mais.

O burro, isto é, a mente ou personalidade limitada, aquiesceu, baixou as orelhas, e está agora pronto a sentir as energias espirituais elevativas que o Amor em si faz nascer ou intensifica. As asas não se erguem na cabeça mas do peito, do costado, da zona cardíaca e respiratória...
Silenciar, aquiescer, não ouvir nem se deixar envolver tanto com a conflituosidade competitiva e egóica das pessoas, ideologias, partidos, governos e sobretudo meios de informação manipuladores é fundamental para aprofundar o sentir o amor, o consagrar-nos mais consciente e perseverantemente a estar em Amor: - Ama e Adora. E age no amor, criativamente, solidariamente, na equidade multipolar e harmonizadora do mundo.

O autor francês, nas suas interpretações morais a este emblema, desvanecido pelo tempo no exemplar que consultámos, realça os efeitos benéficos de perfectibilidade e sociabilidade que o Amor causa em quem o sente, sofre ou acende e conclui até nas duas linhas finais em latim com a capacidade de o amor tornar doce ou mel o que é amargo, ou o que é triste em alegre e lépido, lembrando-nos que quando estamos em situações difíceis ainda o melhor vector transformador é o Amor, a aspiração à unidade, a vivência da energia psíquica amorosa para o amado ou a amada, o outro, o bem comum, a harmonia divina dos mundos, em sintonia com o Anjo ou a natureza angélica.   Saibamos pois invocá-lo, assumi-lo e irradia-lo mais clara, corajosa e perseverantemente....

"L'Amour n'a peur"." O Amor não tem medo", é corajoso e imortal...

2 comentários:

Anónimo disse...

SANTAS palavras, a minha alma acredita .

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas. E boas realizações.