domingo, 17 de agosto de 2025

George Roerich: Shambhala. Contextualização e extracto do seu diário da expedição à Asia Central de 1925 a 1928, da família Roerich, "Trails to inmost Asia"

Yuri ou George Roerich (1902-1960, e ver neste blogue a sua biografia) transmite o que ouviu e soube durante a sua expedição, com o pai e a corajosa e resistente mãe, à Ásia Central, sobre Shambala, o rei do Mundo, Rygden Jyepo, e a vinda de Maitreya, o novo Budha...

                                       
Em 1925, após alguns meses na Índia e no Sikim,  Nicholai e Helena Roerich e o seu filho Yuri Nikolaevic,  e com alguns ajudantes, começam a pioneira expedição de Srinagar a Darjeeling através da Ásia Central, percorrendo 25.000 quilómetros pela China, Rússia, Sibéria, Mongólia e Índia que durará cerca de quatro anos (finda em Maio de 1928) e recolherá muita informação, livros (500 da religião Bo) peças e documentos pioneiros de arte, história, etnografia e arqueologia, linguística, religião, magia e ciência botânica. 

  Yuri ou George, Roerich destacar-se-á tanto pelos seus conhecimentos linguísticos e era o intérprete ideal ao saber pali, sânscrito, chinês, tibetano e mongol, como pelos militares, e por isso foi o encarregado da segurança de expedição por vezes bem complexa: quarenta e quatro camelos (e só chegarão dois) com as pessoas e coisas, exploração perigosa face aos confrontos que houve, mas que Yuri, um ser de grande capacidade de síntese e de clarividência, conseguiu controlar e ajudar a superar, e talvez destas experiências se formasse o seu conselho, mais tarde frequente, de que devemos ver qualquer assunto a partir das mais diferentes perspectivas ou fontes.

                                                 
 George transcreveu o diário que foi escrevendo com científica objectividade durante a expedição, documentou-o com boas fotografias, enriqueceu-o com equilibrada e ajustada erudição histórica, etnográfica e religiosa, e seu livro Trails to inmost Asia sai em 1930, com tradução francesa três anos depois prefaciada por Louis Marin, Sur Les Pistes de l'Asie Centrale, tornando-se um marco no conhecimento da Ásia Central, até então pouco conhecida cientificamente. O pai realizou 500 pinturas durante a expedição, das quias 350 Yuri oferecerá a dois museus russas, as outras hoje espalhadas pelo planeta...

                                                                   
Deste seu livro, já que Yuri publicara antes um Tibetan Paintings com muita informação pioneira, Trails to inmost Asia, resolvemos traduzir duas páginas  em que trata de Shambhala, a misteriosa dimensão espiritual mais elevada da Terra, situada seja no Pamir, Turquestão ou deserto central do Gobi e cujo rei ou hierarca supremo é Rig-den Jye-po, que se crê sempre estar para voltar à Terra com o seu exército para vencer as hordas do mal e iniciar um novo ciclo de luz. A iconografia dele e de Shambhala é muito rica e George Roerich estudou-a bastante, para além do seu pai também a ter descrito e a ter enriquecido com várias pinturas, algumas delas muito famosas de Rig-den Jye-po flamejante, e vários textos flamejantes.

Tanka, ou bandeira-pintura de Rigden Jyepo, por Nicholai Roerich

 Enquanto o seu pai e Helena escreveram ora como historiadores e  etnógrafos, ora como pedagogos e crentes entusiastas na sua vinda, ora como mestres espirituais e iniciados no ensinamento do Agni Yoga de mestre Morya, valorizando muito tal vinda, dimensão e reino, e logo após a viagem Nicholai utilizou muita da informação recolhida nos seus livros Altay Himalayas e, sobretudo quanto a Shambhala, no Heart of Asia, dado à luz em Nova Iorque, em 1929, George, mais cientista, mas também bom conhecedor e vivenciador das práticas e realidades espirituais, opta no seu livro publicado em 1931 apenas por referir a história e as tradições ou crenças que ouviu e, sem as validar já, prefere reservar a sua opinião para quando todo o corpo documental estiver pronto, num posicionamento crente e admirador mas menos entusiasta que os seus pais que pensavam, vendo e ouvindo tantos sinais durante o longo percurso, que Maitreya estaria mesmo para vir, ou avatarizar, brevemente... 

Uma das esculturas de Maitreya, o futuro Budha, fotografada por George Roerich
 Já antes o imaginativo Saint-Yves d'Alveydre, o viajado Ossendovsky  ou mesmo René Guénon (em 1927 com o seu tão esquemático Rei do Mundo),  e depois outros. escreveram ora mais acertadamente ora mais mistificadoramente sobre Shambhala, Kalapa,  Agartha ou Himavat, referida de facto em várias tradições e por várias designações, mas só poucos seguiram e trabalharam, ou trabalham, os ensinamentos e práticas iluminantes e libertadores, ligados ao Kalachakra de Shambhala, à tradição tibetana, tântrica, yoguica e mântrica, ou à Tradicão Espiritual perene e universal, conseguindo então sentir, ver ou ligar-se aos grandes seres e mestres e sobretudo realizar os estados conscienciais ligados aos níveis internos e elevado do mundo espiritual na Terra, no fundo, a pureza da psique, a presença viva do espírito, a primordial natureza de Buda, o reino de Deus ou do espírito no coração.  
Oiçamos então o que Yuri ou George Roerich prudentemente e sem confirmar revelações e clarividências, sem se entusiasmar com profecias e sinais, algo que talvez possamos discernir no casal Roerich, espectadores sofridos do drama das duas grandes guerras, nos  narra no seu livro, Trails to inmost Asia, a partir da página 155:

«O Tsurkha-yin-siima, ou o Templo da Astrologia, é uma importante instituição erudita na capital mongol. Foi construído em 1798 d. C. durante a vida da Quarta Incarnação de Je-tsiin tam-pa Hutukhtu. É considerado de grande santidade e os visitantes geralmente não são autorizados a entrar. É necessária uma autorização especial para ver o edifício e as imagens dentro dele.
Um corpo especial de lamas oficia no templo e uma preparação especial é exigida aos que pretendem entrar no templo. Cada aspirante deve passar por vários exames em astronomia lamaísta e disciplinas relacionadas para se qualificar como estudante ou membro do Templo de Astrologia. 

Mandala do Kalachakra, ou Roda do Tempo, com uma complexa doutrina ligada a toda a simbologia desenhada e colorida, e que ainda hoje está viva nos mosteiros tibetanos, por vezes até apenas como arte efémera realizada por uns dias sobre areia colorida.

 No templo encontram-se pinturas ou pergaminhos pintados representando o mandala ou a esfera mística de influência do sistema Kalachakra ou a Roda do Tempo. Um conhecimento profundo de kar-tsi ou astronomia é essencial para uma compreensão correta da doutrina. Esta doutrina mística foi introduzida no Tibete pelo grande Dipankara Shri-jnana ou Atisha, um famoso mestre do convento indiano de Vikramashila, no século XI. A doutrina, que provavelmente apareceu na Índia por volta do final do século X, originou-se contudo no Reino de Shambhala, uma região situada ao norte do Tibete propriamente dito. 
Entrada para o mosteiro Tashi-lhun-po, em Shigatse, na actualidade. Nele estive e fui convidado a assistir semi-secretamente a uma cerimónia demorada ao lado do abade do mosteiro.

O centro da doutrina Kalacakra era o mosteiro Tashi-lhun-po. Um dos colégios monásticos de Tashi-lhun-po foi consagrado ao estudo do Kalacakra e é conhecido pelo nome de Diin-khor-gyi da-tshang (Tib. Dus-’khor-gyi gra-tshang) ou colégio de Kalacakra.
Este colégio foi por muito tempo a principal sede de aprendizagem, onde os alunos especialmente aprovados podiam dedicar o seu tempo ao estudo dos complexos tratados sobre a doutrina. Os livros acerca da doutrina Kalacakra são dados apenas a alunos de confiança, e um estrangeiro pode obter tais livros somente depois de ter obtido uma autorização especial para fazê-lo do Dalai Lama ou das autoridades clericais do Tibete. Estes livros são raramente impressos e as impressões em bloco de madeira são preservadas em grandes oficinas monásticas. Quando uma pessoa recebe a autorização necessária, o livro é impresso em papel fornecido pelo solicitante, sem que seja cobrada qualquer preço pela impressão.
O Grande Lama de Tashi-lhun-po foi na sua Segunda Incarnação, Rig-den jam-pe dak-pa (Tib. Rigs-Idan ’"jam-dpal grags-pa), um dos governantes de Shambhala, que se diz que governam o reino por cem anos. Em sua futura reencarnação, Sua Santidade o Tashi Lama renascerá como Rigden Jye-po, o futuro governante de Shambhala, cujo destino é conquistar os seguidores do mal e estabelecer o reino de Maitreya, o futuro Budha. A doutrina de Shambhala é a doutrina oculta do Tibete e da Mongólia, e Sua Santidade o Tashi Lama é considerado o principal expositor da doutrina neste mundo. 

O nono Panchem Lama, ou Tashi Lama (por ser de Tashi-lhun-po), numa fotografia de Sven Hendi, em 1907, quando tinha 24 anos. Em exilio na China  de  1923 a 1937 quando desincarna. Yuri elogia-o pela sua devoção a Maitreya e viu a estátua de 26 metros de altura construída por ordem dele entre 1915 e 1919.

Desde a partida do actual Tashi Lama em 1923 [de Tashilhunpo e Shigatse para a China devido aos impostos do Dalai Lama, de Lhasa] a doutrina recebeu um poderoso  impulso novo, e numerosos colégios Kalacakra foram estabelecidos pelo próprio Sua Santidade na Mongólia Interior e na China Budista [para onde se exilara]. Até mesmo na distante Buriácia pode-se observar o mesmo movimento. A maioria dos mosteiros estabelece colégios especiais de Kalacakra com um corpo especial de lamas para oficiar neles. 

O Rei de Shambhala ou Rig-den Jye-po, pintura de Nikolai Konstantinovich Roerich.

Shambhala não é apenas considerada como a abóbada da aprendizagem oculta do Budismo,  é o princípio guia da próxima kalpa ou era cósmica. Diz-se que eruditos abades e lamas meditativos estão em constante comunicação com esta mística fraternidade que guia os destinos do mundo budista.  Um observador ocidental tende a menosprezar a importância desse nome ou a relegar a volumosa literatura sobre Shambhala e a ainda mais vasta tradição oral à classe de folclore ou mitologia; mas os que estudaram tanto o budismo literário quanto o popular sabem da força terrífica que esse nome possui entre as massas de budistas da Ásia Alta. Pois ao longo da história não só inspirou movimentos religiosos mas até mesmo moveu exércitos, cujo grito de guerra era o nome de Shambhala. As tropas mongóis de Sukhe Bator, que libertaram a Mongólia das tropas do General Hsii, compuseram por eles próprios uma canção de marcha, que ainda é cantada pela cavalaria mongol. A canção começa com as palavras Jang Shambal-in dayin ou "A Guerra do norte de Shambhala" e convoca os guerreiros da Mongólia a erguerem-se para a Guerra Santa de libertação do país dos inimigos opressores. "Que todos nós morramos nesta guerra e renasçamos como guerreiros de Shambal-in Khan," diz a canção.
No passado, grandes nomes da hierarquia budista da Mongólia e do Tibete dedicaram volumes inteiros à doutrina de Kalacakra e Shambhala. Entre eles, os nomes de Atisha e Brom-ston, Khe-dup-je, o terceiro Tashi Lama Pal-den ye-she (Tib. dPal-Idan ye-shes) e  Je-tstin Taranatha destacam-se. 

Nos dias de hoje, uma vasta literatura oral, que às vezes assume a forma de profecias, canções, nam-thar ou lendas, e lam-yig ou itinerários, vem à tona, e numerosos bardos cantam a balada da futura guerra de Shambhala, que marcará a queda do mal. Não diminuamos a importância desta força de despertar, que é amada ou valorizada nas tendas dos nómadas e nos numerosos mosteiros do centro da Ásia lamaísta.
Reservemos a nossa opinião até ao momento em que toda a vasta literatura do Kalacakra for traduzida e adequadamente comentada e a vasta tradição oral do Budismo for estudada e rastreada até suas fontes. Espero, num futuro volume, traçar o desenvolvimento da doutrina e literatura Kalacakra e estudar em detalhe a sua influência sobre as massas da Ásia Central
Budista. 

 Existem várias representações iconográficas de Shambhala e do Kalacakra. O Rei de Shambhala ou Rig-den Jye-po é geralmente representado sentado num trono coberto por uma almofada. Com a mão esquerda colocada no seu colo, ele sustenta a Roda da Lei; a sua mão direita faz o sinal da caridade (vara-mudra), ou às vezes é vista segurando o caule de uma flor de lótus que sustenta o livro e a espada—símbolos de Manjushri, o Príncipe do Conhecimento. Em algumas pinturas antigas, o Rei é visto vestido com uma armadura de peitoral e usando um capacete pontudo. Em imagens mais modernas, ele é visto vestido com vestes fluídas ornamentadas com ricos desenhos dourados. À volta do seu trono sentam-se os seus pais, designados pelo nome de Rig-den Jye-po ’i yab-yum, ou, às vezes, em vez deles, Rig-den pema karpo, o primeiro expositor da doutrina Kalacakra na Índia, e o Bodhisattva Padmapani.

No canto inferior, às vezes vemos representado Atisha Shrijnana, o introdutor do Kalacakra no Tibete.
Em algumas pinturas debaixo do trono do Rei de Shambhala, está retratada a guerra iminente de Shambhala contra o Lalo’i jye-po, o Rei dos seres do Mal (Evil ones). Nela vemos o Rei de Shambhala montado em um corcel negro derrotando o Rei dos La-los. Os detalhes são interessantes porque nos mostram todos os apetrechos dos antigos guerreiros tibetanos—armaduras de peitoral, capacetes com pequenas bandeiras, espadas pesadas, arcabuzes, arcos e flechas, e até mesmo armas de bambu colocadas em estranhas carroças.
Outras imagens representam a mandala de Shambhala. O Rei de Shambhala é representado sentado em frente a uma das torres de seu palácio. O palácio, uma grande estrutura no estilo Sino-Tibetano, é cercado por um círculo de altas montanhas nevadas, pois diz-se no lam-yig de Shambhala ou Itinerário de Shambhala que o Reino de Shambhala está situado em uma região montanhosa abrigada de todos os lados por altas cadeias nevadas. 
Caminho para Shambhala, Path to Shambhala, 1928, Nicholai Roerich

 No canto superior de tais pinturas, vemos a representação de Pal-den ye-she, o terceiro Tashi Lama, segurando a malga monástica e a forma de uma cabeça do yi-dam de Kalacakra (Tib. dPal-dus-kys ’khor-lo yab-yum). Muito frequentemente, o yi-dam é representado com quatro cabeças e doze ou vinte e quatro braços. A cor de seu corpo é invariavelmente azul; sua shakti ou yum é de um amarelo-laranja escuro ou às vezes vermelho. O ydam de Kalacakra é frequentemente representado como um bodhisattva. Quando representado como tal, ele veste o traje de bodhisattva e segura em suas mãos unidas a Roda da Lei ou Dharmacakra. Nesta forma, a cor de seu corpo é ocre amarelo. O yi-dam de Kalacakra tem sido frequentemente mal interpretado na literatura ocidental sobre o assunto como um deus Kalacakra. Na realidade, o yi-dam de Kalacakra simboliza a força mística do sistema e nunca é considerado um ser divino.
No Templo da Astrologia em Urga, os estudantes lamas são primeiro treinados na astronomia e astrologia e depois iniciados nos segredos de Kalacakra. Existe uma ordem prescrita de assuntos na qual o estudo do Kalacakra deve ser abordado; mas como isso requereria uma longa descrição longa dos sistemas tântricos aliados, teremos de a omitir aqui.
Em Urga, o templo dedicado a Maitreya, o próximo Budha, aquele que está para vir, mas inegavelmente sem condições actuais no mundo exterior, por muito que se deseje e se afirme a sua vinda em várias tradições e grupos...

O melhor templo no küren [em Urga] está dedicado a Maitreya. A enorme estátua do Budha vindouro foi executada por artesãos chineses em Dolon-nor. O primeiro templo a abrigar a estátua foi construído durante a vida da Quinta Incarnação do Bogdo Gegen, mas como logo desabou  foram enviados e representantes ao Tashi Lama no Tibete para investigar a razão de tal calamidade. O Tashi Lama deu a explicação de que a imagem do futuro Buda preferia um templo de arquitetura tibetana, e diz-se que ele mesmo contribuiu com um plano geral para o novo templo.
 O templo actual foi construído durante a vida da Sétima Incarnação de Je-tsün tam-pa Hutukhtu. É um edifício quadrado de madeira com uma cúpula no meio do telhado, coroada com um gañjira, e as bandeiras tradicionais ou jyal-tsen nos cantos. A colossal imagem de Maitreya, com cerca de quinze metros de altura, fica no meio do templo. Atrás da figura na parede norte, estão cinco enormes figuras de bodhisattvas acompanhantes. As outras paredes estão cobertas com vitrines contendo imagens de bronze dos mil Tathagatas.[seres que se foram. que já atingiram a libertação.]
Em frente à imagem de Maitreya, há uma mesa de altar com as lâmpadas de oferenda habituais, os oito símbolos auspicioso e grandes potes de incenso. No meio do altar está colocada uma representação emoldurada da Samsaracakra ou da Roda da Vida.  Colunas 
maciças de madeira pintadas em cores brilhantes sustentam uma galeria na qual são colocadas prateleiras ou kün-ra, contendo dois conjuntos completos do Känjür e Tänjür. Fora do templo, há numerosas rodas de oração, e os peregrinos geralmente caminham ao redor do templo e colocam as rodas em movimento.»
Os oito símbolos auspiciosos da tradição himalaica, bem redesenhados por Nicholai Roerich. Que eles nos inspirem e abençoem  a realizar mais os níveis espirituais e a sermos mais lúcidos, corajosos, criativos, multipolares, fraternos. Aum Hah Hum...

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