quinta-feira, 21 de agosto de 2025

A homenagem (1ª parte) plena de amor de Alexander Dugin a Daria sua filha, e uma valiosa hermenêutica da sua visão e incarnação do Logos. Do prefácio ao livro "Optimismo Escatologico".

 Na continuação da homenagem à Daria Dugina, no aniversário do seu martírio, traduzimos um extracto do prefácio que o seu pai fez à recente edição do Optimismo Escatológico (Eschatological Optimism. PRAV Publishing, 2023) e que me chegou através do Alexander Dugin Substack, uma das suas páginas, e onde o pode encontrar. É bastante valioso mas, atarefado, apenas me esforcei por traduzi-lo bem e uns breves comentários (nomeadamente acerca da intuição ou iluminação do Logos Divino) virão no fim da partilha do texto. Apenas realço que ninguém senão o seu pai poderia fazer uma apresentação tão perfeita do ser, vida, obra e livro de Daria Dugina, na qual o amor e a filosofia brilham tão unidos. E sim, o que Aleksander Dugin nos diz sobre o Logos e o raio do Logos nela são parágrafos sublimes dignos da nossa meditação contemplativa! Invoquemos as correntes cósmicas e divinas de  Luz, Amor e Força do Logos, para a família e em especial para Daria, e também para os seus amigos e amigas, sobretudo na Rússia, para quem ela é Dasha.

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Última fotografia, umas horas antes de ela desincarnar, após participarem num Festival da Juventude,

                                         O Momento de Sophia

É muito difícil para mim escrever sobre Daria porque nos últimos tempos em especial  ela tornou-se tudo para mim: uma amiga, uma pensadora, uma alegria a ser valorizada, uma parceira no diálogo, uma fonte de inspiração e um pilar de apoio. A dor da sua perda não ousa diminuir; pelo contrário, toda ela persiste em ressurgir com força sempre renovada. Contudo, compreendo que é necessário abrir o seu livro, Optimismo Escatológico, com palavras que ela mesma teria gostado de ouvir e que podem ser úteis ao leitor.

                                                 

Daria Dugina era uma pensadora, uma filósofa. Ela era assim  organicamente e de todo o seu coração. Sim, estava no início de seu caminho filosófico, e alguns pensamentos e ideias exigem muito tempo, às vezes muitos anos (e outros muitos séculos), para serem elaborados, mas isso é outra questão.
Antes de tudo, decide-se algo
 fundamental: se se é filósofo ou não. Daria era uma filósofa. Isso significa que, seja qual for o caminho que ela pudesse ter trilhado pelos mundos da filosofia, o início de seu caminho já é valioso, importante e digno de atenção. O mais difícil de tudo é entrar no território da filosofia, encontrar uma entrada no palácio fechado do rei. Podem-se sitiar os seus muros quanto se quiser, mas ainda assim permanecer-se-á do lado de fora. Para romper e encontrar-se no  tão bem guardado palácio depende da vocação, do Chamamento, que o verdadeiro pensador ouve nas suas profundezas. Daria ouviu este chamado.
Aristóteles distinguiu entre dois tip
os de pensamento sistemático envolvidos na filosofia. O primeiro é o momento de sophia (σοφία), o lampejo súbito e instantâneo da mente, a intuição [insight] iluminadora do Logos. Tal relâmpago pode ocorrer na juventude, na idade adulta ou na velhice. Pode não acontecer de modo algum. De acordo com a lenda, Heráclito afirmou que até certo momento ele nada sabia, e de repente ele conheceu  imediatamente tudo. Este é o momento de sophia. Para Heráclito, assim como para Aristóteles, o Logos é uno e indivisível. Se alguém foi agraciado com a honra de experimentar a sua presença, a partir de então torna-se um tipo diferente de ser humano: um filósofo. Doravante, tudo o que tal pessoa pensar, para onde quer que dirija o seu olhar, age e vive agora nos raios do Logos, em comunhão com a sua unidade. É isto que acontece quando alguém é iniciado na filosofia. Na República de Platão, isso é chamado de noesis (νόησις), a capacidade de elevar as conclusões intelectuais individuais ao mundo primordial e supremo das ideias eternas. Daria Dugina tinha em si [ou carregava] esta marca. Ela passara pelo momento da sophia, e tal era irreversível.

                                     A sua Phronesis
Há ainda outro, segundo tipo de pensamento. Aristóteles chamou isso de phronesis (φρόνησῐς), e Heráclito pejorativamente chamou de “polimatia,” ou seja, “ter muito conhecimento” (que, em sua opinião, “não ensina a mente”). Em Platão, isto corresponde à dianóia (διάνοια), ou àquele pensar racional que não reúne tudo num só, mas divide tudo em partes, classes e categorias. Se a sophia vem instantaneamente (ou nunca), então a phronesis necessariamente requer tempo, experiência, estudo, leitura, observação, exercício e diligência. A phronesis é também importante. O cerne da questão está neste ponto: se a experiência da sophia ocorreu, então o exercício adicional da mente é sempre construído em torno do eixo imutável do Logos. Se não o tiver, então a phronesis torna-se algo como uma sabedoria comum e mundana, que é, claro, valiosa, útil e digna de todo tipo de louvor, mas que não tem nada a ver com a filosofia. Não importa o quanto as pessoas phroneticas possam exercitar a leitura, a análise e as operações racionais, se elas não tiverem anteriormente entrado no palácio fechado da filosofia, pois a sua atividade — não importa o quão obstinada e intensa — permanecerá como o vaguear pelos arredores. Isso pode ser tecnicamente útil, mas ainda assim permanece algo de completamente externo e, de certa forma, profano.
É nesse sentido que a phronesis de Daria estava apenas no início de um grande caminho filosófico. Ela estava apenas a começar a dominar a filosofia num nível fundamental, a aprofundar o seu conhecimento de teorias e sistemas, a familiarizar-se plenamente com a história do pensamento, a teologia e o infinito campo da cultura.
Aqui, talvez, esteja o ponto mais importante deste livro, Optimismo Escatológico. Este é um livro de pensamento vivo. O que é importante aqui não é a escala, profundidade ou o mero volume das teorias, nomes e autores citados nele. O que é importante é como um verdadeiro filósofo revela, vive e incorpora o que pensa no seu próprio ser. O que é importante é que eles pensem filosoficamente, à luz da Sophia. Aqui reside a novidade e a frescura deste livro. No fim [de contas], Daria escreve e fala não para se mover para o exterior para encontrar divergentes linhas  de interpretações e observações de detalhes, mas para convidar aqueles a quem se dirige a fazerem a sua jornada interior, a viverem a filosofia, a comprometerem-se com um "virar-se" (ἐπιστροφή), como os neoplatonistas a chamavam, e que Daria,  sem ser por acaso, reitera. Esta virar-se é fundamental para ela. Tendo experimentado Sophia, ela queria ajudar os outros — leitores, ouvintes, todos nós — a vivenciar a mesma intuição iluminadora pelo Logos. O seu livro consiste em abordagens multifacetadas e amplamente diferentes para o fechado tribunal do rei — num lugar há uma brecha imperceptível na parede, noutro há um túnel subterrâneo, noutros há uma cerca baixa. Quem já esteve lá dentro sabe como entrar, como sair e como voltar.
Portant
o, o livro de Daria Dugina é iniciático e dedicatório. Para alguém que tem o dom, a vocação, a vontade de filosofar, este livro pode tornar-se uma revelação. Para as pessoas phronéticas, pode ser uma enciclopédia útil e concisa do Platonismo. Para os estetas, pode ser um modelo de pensamento gracioso. Para aqueles que buscam o mistério da Rússia, este livro pode ser um humilde marco ao longo de um caminho tão difícil e nobre.

                                                               
                                            Daria como um Sinal

O livro de Daria Dugina também é um sinal. Martin Heidegger reclamava que as pessoas que são surdas ao verdadeiro chamamento do Logos tendem a considerar o signo, o ícone, como algo  que aponta para outra coisa e que é em si autos-suficiente. Nisto reside uma idolatria filosófica. O significado, a importância e o propósito predestinado de um sinal é que ele não aponta para si mesmo, mas para algo mais. O seu apelo é este: não olhe para mim, mas para o que eu aponto, pois nisso é o que eu sou, a minha missão, a minha natureza, o meu chamamento; eu não sou a resposta, mas conheço o caminho para a resposta e estou a trazê-lo para conhecê-la; eu não sou o conteúdo, mas apenas o mapa, que por o seguir você pode deixar o reino da superficialidade omnipresente e abrangente e mover-se para as profundezas e até as alturas do ser vivo e significativo. Não é coincidência que o segundo livro de Daria Dugin se chama As Profundezas e Alturas do Meu Coração (Topi i vysi moego serdtsa, Moscovo: ACT, 2023).
Daria sempre se via como um s
inal e as suas obras filosóficas como um guia compilado. Ela não fingia nem afirmava que este sinal seria o final e conclusivo, ou que o seu mapa estava completo e mostrava a todos os nódulos e objetos mais importantes no mundo das ideias. Ela era uma pensadora modesta, sabia o que é o tacto filosófico, o que é um limite e o que acontece quando se ultrapassa esse limite. Daí a sua atenção ao tema da Fronteira (a que outra obra de Daria é dedicada). Nos seus textos, palestras e apresentações, ela apontava apenas para os segmentos do caminho filosófico que ela conhecia, ou que ainda não havia percorrido mas que a atraíam, prometendo revelações, encontros, compreensões e talvez até mesmo amargas decepções. Mas assim é a vida filosófica. Qualquer uma e todas as suas experiências nesta vida são inestimáveis.

                                          O Herói Filosófico

Daria é uma filósofa, além disso, porque toda a sua vida, desde o seu nascimento até a sua trágica morte, desenrolou-se em  harmonia completa com o elemento primordial da filosofia. O principal ponto de orientação na nossa família é a Tradição, e isto significa que a filosofia é concebida principalmente como religiosa, vertical, orientada para Deus e o céu, onde os começos e os princípios do pensamento devem ser buscados. A verdade absoluta que nos é transmitida no Evangelho de João, “No princípio era o Verbo” (Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος), é a estrela guia. Daria Dugina foi morta pelo inimigo quando voltávamos do Festival da Tradição [nos subúrbios de Moscovo]. A tradição é o começo e o fim, o alfa e o ómega. No seu destino filosófico, o ómega de Daria, o ponto final, foi atravessado pelo mesmo raio, o raio do Logos.
Daria Dugina tornou-se uma heroína filosófica. Ela desceu ao mundo com o raio do Logos e subiu 
com  dele de volta  ao céu. O selo do martírio foi colocado no seu pensamento, na sua missão, na sua vida intelectual. Tal é valioso - e custa - muito.
Os antigos gregos
 não podiam aceitar que um verdadeiro pensador pudesse partir para sempre, morrer e desaparecer. Eles tinham certeza de que um devoto do Logos, leal até o fim, ao ómega, não morre, mas se torna uma nova estrela no horizonte eterno e celestial das ideias, ou até mesmo se torna um deus. Sócrates e Platão foram reverenciados por gerações inteiras de seguidores sensíveis à filosofia como sendo encarnações de Apolo, e o neoplatónico Plotino era visto como a figura de Rhadamanthus, o juiz eterno que veio ao mundo para lembrar as pessoas submersas no tempo do brilho imutável da eternidade.
O cristianismo deixou essas noções pagãs para trás, mas elevou o feito a um pedestal ainda mais alto, anteriormente impensável. Agora Deus em si mesmo, o Logos em si mesmo, veio ao mundo corpóreo, tornou-se homem, sofreu, foi morto, ressuscitou e ascendeu ao céu, ao trono eterno que lhe é devido. Após Jesus Cristo, este caminho foi seguido por uma infinidade de santos e mártires cristãos. Eles partiram para seguir o Logos, sofreram por Ele, morreram n'Ele, foram ressuscitados n'Ele e ascenderam ao céu. No cristianismo, além disso, ninguém simplesmente desaparece sem deixar rastro. Aqueles que deram as suas vidas por seus amigos, por Cristo, o Filho de Deus, pelo Logos e pelo pensamento luminoso e vertical, estão ainda mais vivos e brilharão dos céus eternos para aqueles de nós que permanecem aqui.
Não basta nascer e viver como um filósofo, é preciso morrer como um filósofo. E fazê-lo em plena conformidade com o próprio espírito, a própria fé, com o sinal apontando para os céus é a essência do verdadeiro pensador. Um verdadeiro filósofo não pode deixar de ser um herói. O selo trágico impresso na vida do filósofo é o mais alto reconhecim
ento.
Somente aquilo que cre
sce a partir do sofrimento é genuíno e digno. Tal é o destino daqueles no mundo que carregam dentro de si algo que não é deste mundo. Esta é a fonte da dor filosófica que Daria viveu de forma tão penetrante, e que ela perseguiu não como uma rapariga, não como uma criança, mas de maneira cavaleiresca e corajosa. (...)»  Continua...... Anote-se que hoje 21 há poucas horas foi inaugurada a sua estátua evocadora entre nós em Moscovo...

                                                                                   

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