Conheci ainda Francisco Peixoto Bourbon (1908-1992), um dos admiradores e amigos de Fernando Pessoa que se reuniam no café lisboeta Montanha à volta do genial poeta nos últimos seis anos de sua vida terrena (1935). Natural de Celorico de Basto, engenheiro agrónomo, activo em alguns organismos oficiais e professor, muito culto e com boa biblioteca que já lhe vinha de família , era amigo, conterrâneo e ainda parente do meu pai, vivendo com a mulher e a filha no seu belíssimo e antigo solar ou Casa do Melhorado, junto a Fermil, e onde me acolheu ainda nos anos 80/90 para animados diálogos, sobre os quais escrevi alguns registos, além de ter conservado cartas (50), fotocópias de artigos de jornais (acima de 40) e três folhas dactilografadas e corrigidas a tinta, enviando-lhe eu algumas fotocópias de documentos do espólio inéditos que lhe interessavam.
Neste dia seguinte ao do meu aniversário, sinónimo de aproximação da morte e logo de pensamentos ou até orações sobre pessoas amigas que já partiram desta terra física, resolvi iniciar a transcrição de alguns documentos da correspondência com uma alma valiosa e simpática, amiga de Fernando Pessoa, e que sobre ele transmitiu muita informação desconhecida.
Anote-se que 66 artigos seus pessoanos, escritos entre 1972 e 1973 no Eco de Estremoz, foram publicados em 2016 pela Câmara Municipal de Estremoz e a edições Colibri, com um prefácio do José Barreto, Evocando Fernando Pessoa. A sua filha Mafalda ofereceu-me um exemplar num encontro de família em Frades em 2017, com uma dedicatória simples mas tocante: "Do Pai para o Pedro! Mafalda", o que me levou a ler o livro, e anotá-lo até bastante, e resumi-lo em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/07/evocando-fernando-pessoa-francisco.html.
Como prometera à Mafalda tentar avançar com a decifração e publicação de algumas das cartas, em homenagem ao pai, e como conversando com o José Barreto lamentámos os dois não ter havido interacção com os escritos de Peixoto Bourbon que possuía, eis o início de uma lenta transcrição de alguns dos artigos e cartas, tanto mais que as informações publicadas no livro complementam-se com estas, enriquecendo a valiosa compreensão do ambiente cultural duma época, dum grupo, de Portugal, e, claro, de Fernando Pessoa.
«Decorrido que são cinquenta anos sobre o falecimento do saudoso amigo conservo, bem viva, na memória e como se fosse ontem, a imagem de Fernando Pessoa. Era de mediania estatura, magro e mantendo sempre porte muito hirto e até quando andava, com os seus pequenos passos apressados, tinha tendência não a curvar-se mas projectar o tórax para trás.
De cor macilenta e pele fina era de notável parcimonicidade de gestos. Tinha testa muito alta e quando o conheci ainda tinha bastante cabelo, andando sempre irrepreensívelmente barbeado e penteado e usando risca do lado esquerdo, nada de risca ao meio do tempo da sua juventude e como foi retratado por certo pintor espanhol.
Mas ao longo dos seus últimos anos sofreu queda abundante de cabelo que deveras o contrariava pois, segundo dizia, o seu formato craneano não era dos mais favoráveis a suportar uma careca.
Mas o que mais impressionava em Pessoa era o olhar, apesar de andar sempre de óculos, género luneta, observava-se um olhar extraordinariamente vivo, directo e tão penetrante e profundo que chegava a quem não estivesse habituado à sua convivência, a incomodar. Mas aqueles olhos escuros e por vezes, maliciosos, emprestavam um ar aristocrático, que nãos e pode mais esquecer. Mas, não raro, e na intimidade, exprimiam uma doçura e nostalgia sobremodo comovente.
E nos dias em que declarava não estar cerebral mas medular, por virtude de noite mal passada, mais se vincava tal doçura e nostalgia. Mas mesmo quando havia nele expressão de melancolia, triste mas doce, o olhar era penetrante e revelando uma inteligência sem par.
Trajava sempre fatos de cor muito escura. O único fato claro que teria mandado executar, e que teria sido escolhido numa tarde de lusco-fusco jamais o vestiu, pois uma vez a obra acabada não se sentia à vontade com ele.
Mas o trajar, o olhar, a parcimónia de gesto, a forma de falar em tom baixo mas sempre sobremodo urbano imprimiam-lhe um ar tão aristocrático que, para a época, era já um anacronismo e que causavam respeito e admiração por parte de todos que dele se abeiravam e com ele conviviam.
E as suas mãos brancas que contratavam com a cor macilenta da face, eram quase diáfanas e acrescentando ainda uma nota favorável à sua grande elegância e maneiras, o que não passava desapercebida mesmo para quem não fosse dotado de espírito observador
E tudo tendo um ar tão natural e não pretensiosamente cultivado, diremos, antes, rebuscado.
Uma particularidade houve que então muito me chocou.
Vinha do Norte onde são mais acentuados os rigores do clima que se torna, como é sabido, bem mais benigno em Lisboa graças às duas massas de água que são o Oceano e o rio Tejo.
Ora no Norte usávamos fatos de Inverno e de Verão, que se usavam ou punham de lado, quase por determinação do calendário.
Pois nunca vi Fernando Pessoa trajar um fato nitidamente de Inverno ou de Verão. Havia como que lançado a moda do fato da meia estação. Quando vinha o inverno envergava um sobretudo mas e apesar de ser um friorento, nos últimos anos como que pôs de parte o sobretudo envergando gabardine azul, mas de azul muito escuro.
(...)»
Continuarei a transcrever, em progresso....

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