A Nossa Senhora das Almas não é uma representação feminina divina muito comum na iconografia portuguesa, nomeadamente em pinturas, desenhos, gravuras e registos mas sabemos que houve irmandades ou confrarias (tal a da vila de Moura, que viveu cerca de 300 anos), e que ainda há uma ou outra ermida ou capela com esta devoção ou invocação, nomeadamente nos Açores, arquipélago do Espírito Santo, perenemente misterioso na conceptualidade da sua imanência e cosmicidade.
O problema da vida no post-mortem sempre desafiou ou inquietou a humanidade e a muitas entidades ou facetas divinas se pediu a proteção para os que partiam para esse além brumoso, misterioso. O Cristianismo substituiu Hermes e Orfeu, deuses e deusas antigas, por Jesus e Maria, o Anjo da guarda e o arcanjo Miguel, tornando-se estes os destinatários seja de orações seja de representações artísticas que procuravam consubstanciar o desejo e a ideia da proteção ou salvação divina, mas não só numa forma passiva pois sempre implicavam orações dos familiares, amigos e comunidade pelos que tinham desincarnado, uma sábia medida já que a grande maioria dos seres não está bem preparada para estar logo desperta e activa no seu corpo psico-espiritual, recebendo portanto dessas orações e sentimentos algumas energias de luz e de amor úteis ao fortalecer psico-espiritual.
Testemunhos destas preocupações e aspirações podemos encontrar na nossa Tradição religiosa a Encomendação das Almas, com orações, ladainhas, cantos, procissões, ou ainda as Alminhas, que povoam por vezes zonas desabitadas ou curvas da estrada nas quais alguém faleceu por acidente ou de repente, e que são inegavelmente uma especificidade portuguesa arquitectónica, artística e de devocional valiosa, e razoavelmente estudada e que, na sua rusticidade ou dramatismo, detêm os viandantes e fazem-nos balbuciar algumas preces, enviadas assim para uma pessoa, familiares ou a generalidade dos seres que se consideram estar no além ou num Purgatório, no Cosmos subtil uma realidade dinâmica (pese a oposição dos Protestantes ou de modernismo católico), e que é um sub-plano do mundo astral, com sofrimento purificador mas que, podendo ser muito demorado, se deseja ser aliviado pelas energias das orações enviadas da Terra ou das abençoadoras do Céus, pois levam amor e luz clarificante às almas aí detidas temporariamente em semi-inconsciência ou em dor.
Ora entre as várias entidades cristãs já mencionadas recaiu sobre algumas imagens ou ícones de específicas nomeações de Nossa Senhora, ou ainda Mãe Divina, a missão de transmitirem aos que morriam eflúvios de pacificação, aquietação e confiança, surgindo assim a Nossa Senhora do Bom Despacho, a Nossa Senhora da Boa Morte, em que Maria surge sossegadamente adormecida, a Nossa Senhora da Boa Viagem, da terra para o céu, como alguns registos explicitavam, ou ainda a Nossa Senhora do Carmo, prometendo boa elevação ou salvação para os seus devotos, sobretudo munidos do seu escapulário, uma bela recorrência no Cristianismo (com outros bentinhos) das orações que egípcios e órficos e pitagóricos punham inscritas em papiro ou lamelas sobre o peito dos que partiam, quais passaportes ou palavras de passe para se franquearem os planos intermediários na ascensão espiritual para a Luz, o Bardo Thodol.
Mas será a Nossa Senhora das Almas a que mais se venerou, e com uma iconologia simples: as almas no Purgatório, entre as chamas dos desejos impossíveis de se satisfazer ou dos sofrimentos, os Anjos que as tentam ajudar, despertar, salvar e, ao alto, a Nossa Senhora, em geral com um resplendor forte, mostrando, numa das possíveis hermenêuticas, que a Divindade, na sua face feminina, na sua Materna Compaixão, pode ser tocada pelas nossas orações e ajudar o processo relativamente libertador, em processos subtis energético-conscienciais que a Providência divina sustém no Cosmos.
Como é que os fiéis assumiam operativamente mas subjectivamente estes registos ou ícones não se poderá saber ao certo, e apenas se pode deduzir que nos nossos dias alguns fiéis poderão sentir diante deles o mesmo que outrora, embora o receio das penas purgatoriais tenha diminuído, cremos que bastante, e tanto para o bem como para o mal das pessoas, assim por vezes menos preparados para as causalidades obscurecedoras em que incorreram.
Não é contudo uma invocação da qual se conheçam muitos representações e Ernesto Soares, no seu incontornável Inventário da Colecção de Registos de Santos, conheceu e registou apenas doze, uma delas sendo mesmo recente: a de Nossa Senhora de Fátima, assinalada com tal função de Nossa Senhora das Almas. Ora não há entre elas grandes diferenças na representação de tal ideia e crença de uma possível salvação ou melhoria do estado das alma no além pela acção tripla intercessória do mundo humano, do celestial e do divino, este Mariano ou de Nossa Senhora, embora o que os registos destaquem, e Ernesto Soares, seja sobretudo a «representação em busto sobre nuvens, cercada de grande resplendor, incutindo esperança às Almas do Purgatório», E. Soares veiculando aqui a sua hermenêutica, quem sabe se mais acertada, da acção e pensamento de Maria: «-Aguentem-se, mantenham a Esperança viva.»
Cumpre indicar que os registos assinalados por Ernesto Soares ostentam a costumeira propaganda algo enganadora (pois há muitos factores em causa) dos efeitos salvíficos (as chamadas Indulgências) obtidos por quem rezar diante de tal imagem da Nossa Senhora das Almas. E que alguns deles ostentam na parte superior, dois Anjos com uma fita, onde se lê: «Mostra que és Mãe (May)», este sim um contributo psicologicamente valioso para a compreensão da operatividade imaginal da fé, contemplação e oração face a estes ícones acessíveis a quase toda agente, e que tinham nos religiosos e religiosas um público que especificamente os trabalhava melhor, como algumas vidas das nossas sorores ou irmãs místicas narram, tanto mais que orarem por pessoas vivas e já nos mundos invisíveis era uma das suas principais tarefas, com algumas narrando os sucessos que obtinham na libertação das almas...
Tendo encontrado há tempos uma pintura conventual da Nossa Senhora das Almas, fins do século XVIII - princípios do XIX, dimensão média, sobre papel que foi minuciosamente pontilhado, numa bela moldura de esquadrias e orlas vegetalistas muito cândidas e frescas, obra provavelmente de uma freira com bons dotes e paciência, resolvemos partilhar a imagem operativa de ligação entre os mundos, quem sabe se estimulando por este modo a nossa oração eficaz por familiares ou amigos já partidos.
Na oval central, Maria, incarnação do princípio Divino feminino, da sofianidade ou Santa Sophia da tradição ortodoxa e da filosofia russa, representada em busto, acima das nuvens, emana um sorriso perfeito de amor e compaixão, enquanto um anjo, provavelmente seu enviado e ajudante, liga-a às almas do Purgatório, vigilante sobre elas. É um anjo pequeno, discreto, que paira como que à altura do seu coração, e que emerge das nuvens que diferenciam os planos do Cosmos e separam a denominada rainha dos Anjos em relação ao plano das labaredas purgatoriais, como que só o Anjo por lá dentro pudesse entrar e salvar, embora saibamos que o processo metamórfico consciencial se realize na interioridade das almas que detêm sempre pelo apex do seu espírito a capacidade da religação divina.
A aureola dourada da Sabedoria Divina é inspiradora, tal como o finíssimo pontilhado do lenço que cobre o seu cabelo e nos transmite grande doçura e intimidade, e por esta criatividade são nos oferecidas visivelmente qualidades espirituais invisíveis ou acesso ao prototipo divino, e que poderemos ver, sentir, meditar, intuir e quem sabe emanar, deste modo contribuindo para que a contemplação deste ícone conventual (assim cremos), acompanhada ou não de orações vocais ou mentais, possa ser um acto de comunhão intercessória e eficaz com os que já partiram, e a graça dos Anjos, Maria e Santa Sophia, Providência Divina no devir do mundo e da Humanidade. Pax. Lux.
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domingo, 7 de julho de 2024
Nossa Senhora das Almas, uma face feminina da Divindade iluminando ou salvando do Purgatório astral. Arte conventual portuguesa.
sábado, 6 de julho de 2024
Palavras embarcadas em carreira ondulada mandálica. 1ª travessia.
Nas ondulações inseri palavras, sentimentos, aspirações.
Quis descobrir algo, trazer ao de cima de mim alguma luz nova, gerar estados luminosos...
Conseguirei ter semeado luz e amor, bem e verdade no texto que se segue?
Quem o conseguir ler e sentir, logo saberá...
Decifremos as vinte e uma linhas escritas num fluir e que em ondas tentam levar-nos a ligar-nos mais ao Oceano da Divindade...
1 Morrer é parte do Ser, uma linha que termina... aos nossos olhos...
2 Escrever tem princípio e fim, uma linha que termina... mas que pode continuar.
3 Gostaria de escrever a palavra que pronunciada cura e ilumina os seres: Deus, Amor, Fé?
4 Quantas dores temos de suportar antes que mais plena realização o Ser em nós se estabilize?
5 A demanda da Verdade é árdua, exigente e não pode condescender com a mediania e o desânimo.
A demanda da Harmonia implica muito discernimento do que está certo e útil e o que é ilusório e inútil.
6 Quantas vezes conseguiremos nós meditar e estar mais em alegria, paz e plenitude espiritual?
7 Sabe discernir o que é o mais importante e valioso para a vida eterna que estás a gerar desde já na Terra.
8 Descobre as tuas ligações verticais mais importantes, valiosas, beatificas...
9 Aspira a realizar os teus níveis mais importantes.
10 Quereria estar puro, simples, saudável, alegre, decidido, iluminado.
11 Quantas palavras nos foram dadas para dizer ou escrever, e que bailam desejosas de manifestar-se?
12 Do espírito sabemos algo, mas nunca o suficiente para descansarmos ou distrair-nos.
12a Do Espírito sabemos que está em nós e por vezes brilha como ponto ou estrela, mas fugazmente.
13 O mundo gira dividido por tantos partidos, grupos, ideologias, religiões, conflitos. Quem vive na Pax?
14 A Divindade primordial e eterna por poucos é adorada, invocada, algo conhecida e amada. Poucos se ligam a Ela.
15 Amizades e amores são flores no Caminho, mas têm espinhos.
16 Cada alma tem luzes e sombras, flores e espinhos.
17 Como descobrir e manifestar mais a plenitude do nosso ser, e sermos felizes e partilhar com os outros e Ela?
18 Tentar concluir a escrita ondulada da vida e abrir-nos aos ventos e aves que inspiram
19 Sabe, ama, sê, irradia, vence, ganha.
20 Não desanimes. Sê.
21 Om.
sexta-feira, 5 de julho de 2024
On prayer and meditation. Video by Pedro Teixeira da Mota.
A short improvisation about some aspects of the spiritual path, done in a slow mood... All the time in the same image,,,,
quinta-feira, 4 de julho de 2024
Gurudev Ranade: hermenêutica espiritual de Kabir, poeta e místico do séc. XV. Nas comemorações do aniversário de Ranade.
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| Kabir, mestre dos sant. |
Um dos mestres espirituais mais apreciados e estudados por gurudev Ranade (1886-1957) foi o famoso poeta e místico do século XVI Kabir, tendo-lhe dedicado várias páginas na suas obras, abordando-o numa hermenêutica verdadeiramente espiritual e não meramente histórica, teórica ou esotericista. É o caso de The conception of spiritual life in Mahtama Gandi and Hindi Saints, 1956, onde no prefácio Ranade escreve: «a terceira parte deste livro é dedicada ao desenvolvimento da experiência mística em Kabir, o Apóstolo da unidade espiritual, não só entre os hindus e os muçulmanos, mas entre os membros de todas as comunidades religiosas do mundo. Se Kabir vivesse hoje, seria a primeira pessoa a pregar o evangelho da unidade espiritual universal».
É na realidade sempre actual e importante este posicionamento: sem se menosprezar as diferentes religiões, a unidade espiritual que as subjaz deve ser reconhecida, estudada, anunciada, para melhoria da paz, entendimento e inclusividade entre os fiéis das várias religiões e tradições.
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| Ramchandra Dattratreya Ranade. |
A data do nascimento de Kabir é controversa, para uns em 1398 para outros 1440, mas a da sua morte, 1518, já é unanimemente aceite. Varanasi, ou Kashi, a luminosa cidade gangética, foi o local, embora sejam incertas as influências espirituais iniciais: teria nascido provavelmente numa família Nath yogi shivaísta, e talvez também praticante do sufismo islâmico, sabendo-se que foi ainda discípulo do mestre Ramdas na linha dos devotos de Vishnu, o que se torna manifesto nos poemas em que critica os Nath yogi por não desenvolverem a devoção, o amor, prembhakti.
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| Kabir, tecendo, cantando, ensinando. |
Foi um tecelão, poeta, yogi, místico e assim a inspiração brotava fortemente em poemas ricos de sentidos espirituais e aparentemente paradoxais dada a profundidade das suas experiências e que foram musicados e cantados por milhões de seres, neles inserindo também críticas sócio-religiosas fortes aos sacerdotes e fiéis hindus e islâmicos que se deixavam estar quase que só nos dogmas, aparências e superstições, perdendo a realização viva.
Kabir canta as suas experiências espirituais, as dos Nath yogi e as dos sadhus ou sants, seres libertos da ilusão (maya) e realizados, orientadas pelo amor a Deus ou, talvez melhor, à Realidade Suprema, que designou por diferentes termos das várias tradições e religiões, tais como os vedânticos Brahman, Atman, Purusa, Tat, Gyan (ou Jnana, Sabedoria), Ek (o único), Niranjan (o Sem nódoa) mas também o dos avatares Ram, Hari e Govinda, ou ainda, já na tradição do Islão, Allah, Hazrat (o Majestoso), Khuda (Deus em persa), Karim (o Dignificado).
Só no século XVII é que surgiram as compilações dos seus poemas principais, no Kabir Bijab, no Kabir Granthawalli, na escritura sikh Adi Khant e noutras compilações. Nos tempos modernos destacaram-se as publicações e traduções de Westcott (com o seu Kabir and the Kabir Panth, 1907), Rabindranath Tagore, Ranade e Charlotte Vaudeville.
Para o professor Ranade, Kabir será sempre um dos grandes unificadores das várias religiões pela sua boa nova ou evangelho de paz e de universalidade, e pelos ensinamentos autobiográficos espirituais que semeou, e destacará e comentará na obra referida Spiritual Life... certos aspectos valiosos para os praticantes do caminho espiritual, da sadhana:
Para Kabir, o verdadeiro mestre, ou seja, o Sat Guru, o Sadguru, é quem está apto a estabelecer o seu discípulo na visão de Deus para onde quer que este lance o seu olhar. Não pode ser só interiormente nem só no mundo exterior. Podemos considerar tal uma realização completa, pois tanto há a visão interior mística, em geral obtida por bhakti. amor devoção, como a visão intelectual e a intuição da unidade da Divindade omnipresente, jnana.
Característica do sadguru é a de ensinar o discípulo a estar no sahaj samadhi, na unificação interior natural, sem depender de práticas respiratórias ou concentrativas, e dando a original imagem de se estar numa cabana sem fundo entre a terra e o céu, o que é também entre a base da coluna, ou talvez melhor o umbigo, e o cimo da cabeça, ou seja, estar mais no peito, sem contudo se deixar prender nele, nem enredar os outros, um aviso muito pertinente pois vemos constantemente como os gurus modernos prendem tanta gente afectivamente, tornando-as dependentes ou mesmo quase que hipnotizadas.
O centro (chakra) do coração é anahat, e anahata é o som interior espiritual que se pode ouvir nas práticas mais profundas de meditação mas que segundo Kabir deve ser subordinado a Shabda, a Palavra ou som, que é tanto a característica ou qualidade do espaço, como um dos dez sons que se podem ouvir interiormente, nomeadamente nos canais subtis, como ainda a primordialidade divina, o Espírito, e que repetida, ouvida ou meditada, por exemplo, como Om, ou como Ram, nos pode levar até à Divindade.
Outra característica do verdadeiro guru é a enunciada na Bhagavad Gita. IV. 18: «Aqueles que veem a ação na inação e a inação na ação são verdadeiramente sábios entre os humanos. Embora realizem todo o tipo de acções, são yogis e mestres de todas as suas acções», ou seja, observamos um elogio da capacidade de não se estar ansioso ou dependente dos resultados, mas desprendido e permanecendo em paz e felicidade mesmo na acção.
Outro aspecto destacado por Ranade em Kabir é a importância da prática da meditação em Deus utilizando-se o mantra ou nome (nama) de Deus dado pelo guru ao discípulo na iniciação. Alerta contudo que para Kabir não é este nome, nem menos ainda o que uma pessoa escolhe para si, que é o verdadeiro Nome, o qual é Ajara e Amara, imutável e imortal: «Quando estamos a meditar, diz Kabir, há um nome celestial que se revela ou desdobra a si próprio ao nosso sentido auditivo, no estado mais elevado da meditação. Tal nome é Ajara e Amara. Quando uma pessoa entra na posse ou fruição deste Nome, o seu caminho para a Divindade fica claro, limpo.»
Esta repetição do Nome de Deus deve ser contudo silenciosa, pois nos quatro níveis da fala ou voz: vaikharii, a física, madhyamma, a mental e que pensamos antes de pronunciar, pashyanti, a que se vê ou se compreende inicialmente, e a para, a transcendente e silenciosa, esta é a do nível mais elevado e embora difícil de se realizar dela nos aproximamos ao tentarmos transcender os outros níveis e ao meditar em silêncio íntimo receptivo.
Em termos de fisiologia interna, a meditação ganha em ser realizada pela abertura da janela existente nos ventrículos do cérebro e em seguida pelo voo ascendente do espírito até ao Triveni Samgama, a confluência das três correntes ou rios no olho espiritual, onde se poderá então receber a visão de Deus.
Para isto acontecer Kabir recomenda a concentração forte na Divindade, desprendimento do mundo exterior (para diminuir ou extinguir-se a ondulação mental), intensidade de aspiração e sermos na vida, na linha pitagórica (refere até Ranade, já que conhecia bem a filosofia e tradição grega), espectadores ou viajantes que não se carregam de pesos nem de envolvimentos desnecessários.
Uma das boas imagens da meditação (e que deveremos cogitar) dada por Kabir é a de que a sua mente ou alma é o pavio, o Nome de Deus o óleo e a Divindade em si mesma o fogo que acende o pavio. Quando tal acontece a luz interior cintilante manifesta-se dentro do tabernáculo do coração, e então devemos consagrar-nos (nyochhavar) mais a Deus, tornar a nossa vida mais dedicada a Ele, até para que haja crescimento espiritual e aconteçam experiências interiores que nos elevem à Divindade.
Quais são as mencionadas por Kabir na sua poesia? Sobretudo os sons interiores, as visões da Divindade, ou então dos avatares (tal Rama e Krishna), o sentido da eternidade bem como do poder infinito de Deus, dando uma valiosa pista de de prática interna dos iniciados yogis nas técnicas denominadas de luz, som e néctar: após a concentração no nome de Deus, quando o extracto doce ou néctar (amrita) escorre das células para os ventrículos laterais cerebrais, então o som interior tanto se eleva para o céu como permite encher mais o lago do 3º olho e ventrículo da beatífica sensação-sabor de amrita, numa dupla ou recíproca causalidade entre o som e o néctar, estado interior que diz ele pode chegar a absorver ou atrair a si a comunhão com o Oceano da Divindade, na Índia tão cultuado como Narayana.
Fiquemos com o excerto inicial de um poema de Kabir, numa tradução a partir do francês da sábia orientalista Charlotte Vaudeville:
«Ó Kabir, o resplendor do Eterno é como o nascer de toda uma sucessão de sóis.
Perto do marido, a mulher despertou e diante dela um espectáculo maravilhoso se formou.
Ela contemplou o espectáculo sem os olhos do corpo e, sem o Sol e sem a Lua, a Luz brilhou,
O servidor está absorto no serviço do Mestre e não se preocupa com nada mais.
A Majestade do Senhor Supremo está para além de toda a imaginação.
A sua beleza é indizível. É preciso contemplá-la.
Ao inacessível, ao invisível não há qualquer acesso, lá brilha a Luz; lá onde Kabir prestou as suas homenagens nem o pecado nem o mérito podem chegar.
Esse lótus que floresce sem flor, só os íntimos (da Divindade, Rama) podem contemplar.»
quarta-feira, 3 de julho de 2024
Gurudev Ranade e os seus ensinamentos: meditação, Avatar, Luz, Forma e Nome de Deus. No dia do seu 138 aniversário.
«A minha filosofia não é diferente da minha vida... As dores e as misérias que possa vivenciar ajudarão a purgar a mente das suas impurezas...
Uma vez gerada a devoção, a qualidade torna-se mais importante que a quantidade...
A miséria pode ser suportada; os ataques de tentação, o ódio, podem ser tolerados; mas a dor física torna-se insuportável a partir de certo limite. Em tais ocasiões a única via que permanece aberta é orar a Deus para nos permitir meditar...».
«A forma (subtil, vista no olho espiritual) de Deus deve descer sobre nós, e para isso acontecer deve haver um instrutor ou mestre de elevado nível espiritual. Só então ele pode fazer descer tal [visão de forma pessoal da Divindade] para o nível inferior do discípulo. Se o mestre nada tem, o discípulo nada recebe. Por vezes pode acontecer o discípulo receber algo, mesmo que o professor nada tenha. Mas havendo um limite para isso, o discípulo pode deixar de fazer progressos», se continuar ligado a esse instrutor, o que sucede frequentemente ao criarem-se laços nos grupos e em relação ao instrutor os quais tendem a prender as pessoas neles.
A sua sadhana, ou caminho de prática espiritual, assentava sobretudo na devoção ou sentimento amoroso (bhava) para com Deus e depois na meditação no nome (nama) de Deus e na sua forma (rupa). E nessa prática desenvolveu notável sensibilidade e profundidade, fazendo a dança da mente cessar (conforme os Yoga sutras, I-2: Yoga citta vritti nirodha), e chegando ou estabilizando na atmaswarupa, a sua forma espiritual (conforme Yoga sutras, I-3 Tada drashtuh svarup evasthanam), e discernindo até particularidades da fisiologia subtil, tal a necessidade de abrir a abertura existente no ventrículo do coração espiritual, algo que já o poeta santo Kabir cantara. Ou que o pôr em movimento simultaneamente os oito chakras ou centros-órgãos do corpo subtil, era um bom sinal de avanço no caminho para Deus.
Numa das suas cartas, quando doente, dizia ao seu guru Shri Bhausaheb of Umadi: «Estou a tentar praticar a sadhana o mais possível. Muito raramente tenho a visão suprasensorial da lua crescente em luz azul. Se recuperar a saúde praticarei a repetição do nome de Deus pelo menos uma hora duas vezes por dia», referindo assim cores e formas típicas da meditação.
terça-feira, 2 de julho de 2024
Afonso Cautela, discípulo de Camões e Antero de Quental: sonetos juvenis, um camoneano e dois anterianos. Da sua poesia reunida "Lama e Alvorada".
A recente e meritória publicação da obra poética completa de Afonso Cautela, realizada por José Carlos Marques, sob o título Lama e Alvorada, em dois volumes, permite-nos conhecer dezenas de poemas inéditos, a maioria datados, e discernir melhor as múltiplas tendências e fases no seu percurso poético criativo lírico, de crítica, de ironia e de idealismo, e assim encontrar, na sua época mais juvenil, com 13 e 14 anos, os veios e sopros baptismais de Luís de Camões e Antero de Quental. A recente participação no IX encontro do círculo de poesia do Montado do Freixo do Meio, organizado pelo Manuel Calado, a Cassandra Querido e a Fátima Sequeira Remédios, e dedicado a Afonso Cautela (com a presença da sua filha Cristina), na qual mencionei tais veios, como ainda as de Walt Whitman e de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, impulsionou-me a escrever este artigo, provando tais asserções com três sonetos.
No Soneto III, escrito em Beja a 13-3-1946, Afonso Cautela inicia-se com mais juvenil doçura e esperança no Amor e, seguindo a linha platónica de reconhecimento do Bem, do Belo e do Verdadeiro primordiais ou arquétipos, glosa o famoso soneto de Camões:
«Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?»
Eis como o glosou Afonso Cautela, menino de treze anos:
As trevas desta vida descontente.
Como um bem guiará eternamente
No caminho feliz a nossa sina.
Puro como a rosa amena e fina
Terno o seu calor manso e dolente.
Como eterna verdade que não mente
A saudade o amor sempre confina.
E mesmo sendo assim todo o alento,
Da vida o mais doce e belo encanto,
Em suas garras somos fraco vime...
Abate, esmaga e fere com crueza
Sem atender ao mal de tal vileza,
- ele o belo imenso, o bem sublime».
| O original manuscrito do poema de Afonso com 4 anos na contracapa do II volume da Lama e Alvorada. |
Sonhei a vã quimera, um louco ideal.
Sonhei o tudo imenso, o tudo nada.
Sonhei da vida a morte, o bem, o mal.
Vivi na bruma escura quão cerrada
Desse sonhar imenso, desse irreal.
Vivi a vida triste e desesperada,
Eu só, só terra e pó, fui imortal.
E perco o gosto amargo de viver,
Perco o receio, o medo de morrer,
Imploro da vida a morte que não vejo.
Quero viver num sonho de incerteza,
Trocar da vida o peso e a vileza
Por um sonhar eterno, é meu desejo!
N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!»
segunda-feira, 1 de julho de 2024
Prefácio de Georges Bernanos aos "Poemas" de Jorge de Lima, em 1939, e leitura do poema "Espíritu Paráclito", em vídeo.

O exemplar que utilizamos tem a particularidade de ter uma dedicatória agradecida de Jorge de Lima a Luís Forjaz Trigueiro (que conheci e ainda o visitei em sua casa) escrita em português, tornando a obra de certo modo trilingue.
Como George Bernanos foi um escritor bastante valioso, seja pelos romances (tal os Sob o Sol de Satan e o Diário de um Pároco de aldeia), seja pelos seus ensaios e manifestos, seja pelo seu texto para o filme que sairá como o Dialogues des Carmelites (on-line) e que recusou até entrar na Academia Francesa, e é hoje quase desconhecido em Portugal, e ainda porque não lera o prefácio e me pareceu valioso, resolvi traduzi-lo gravando-o, e creio que valeu a pena, tanto mais que ainda houve tempo para ler, desta vez na tradução espanhola, o poema Espíritu Paráclito, sem dúvida forte e inspirador.











