segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

"Funken", "Centelhas", por Bô Yin Râ. Resumo das XXII centelhas, orações ou mantras. E com duas das suas belas pinturas espirituais.

Funken, Centelhas, é uma valiosa obrazinha, publicada em 1922, na Talisverlag de Leipzig,  num in-12º de 31 páginas, seguido duma 2ª edição em 1924, com os mantras ou pequenas orações em alemão criados por Bô Yin Râ : poemas -  orações, que pela  leitura e sensação ressoante,  meditação e realização, são adequados aos que prosseguem o elevado caminho espiritual ensinado por ele. Uns meses depois, um artista expressionista e espiritual, amigo de Bô Yin Râ e grande estudioso de Jacob Böehme, Fritz Neumann-Hegenberg (1884-1924), publicava na revista Magische Blätter uma transcrição dos mantras, com leve contextualização e comentários, estes mais pessoais e artísticos, os quais foram dados à luz numa pequena brochura na mesma editora de Leipzig em 1922. 
                                                                 

Em 4.12.2020 publiquei no blogue um texto sobre este livro e o II mantra, apresentando-o trilingue, e comentando-o levemente, e está intitulado: "Uma Abóbada de Cristal envolvendo-nos", um mantra de Bô Yin Râ, actual. E com pintura de Anna Zappa;  e a ligação será: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/12/uma-abobada-de-cristal-envolvendo-nos.html

                                        

Funken contém XXII mantras, e o I é uma invocação da realidade espiritual e divina, para que ela envolva o orante e lhe permita afirmar como experiência que ele é um santuário do espírito divino, e que o espírito divino é também santuário dele.

Não há uma distinção clara de quem é adorado, se o Espírito, se a Divindade ou Deus vivo, mas apenas a afirmação: - Eu sou um teu templo, santuário ou sacrário (schrein). É o primeiro mantra a ser apresentado e deixa em aberto  o destinatário, se o espírito se a Divindade.

O II mantra  ajuda-nos a fortificar o templo, pois invoca-se  um muro de cristal erguido a toda à volta de quem ora ou medita, e que o protege e o inclui dentro de si. O orante pede que na Luz seja transformado e nada senão a Luz possa estar no seu interior.

É um exercício de protecção mágica que encontramos noutras tradições,  e Bô Yin Râ criou-o em alemão com versos rimados, bem valiosos, sobretudo para quem consegue sentir tais palavras em si bem ressoantes.

O III mantra é muito pequeno e põe-nos diante de um portal fechado, que é saltado e permite a sensação complementar ou simultânea de se estar de fora e  dentro. Talvez uma das funções dele seja mentalizar-nos para que nos mundos invisíveis não fiquemos estagnados ou especados perante as barreiras e portas fechadas, se por entre elas merecermos entrar.

O IV mantra tem rimas muito conseguidas e de novo somos projectados para os mundos subtis espirituais onde entre montanhas elevadas e profundezas do Caminho tomamos consciência de que cada um de nós é um degrau no Caminho.

O V mantra é talvez o mais flamejante e fácil de ser decorado e meditado pois  é uma invocação simples do fogo em nós, nos outros ou em todos e  em si mesmo, para nos tornarmos mais flamejantes. Insere-se na linha típica do fogo espiritual, tão desenvolvido por Bô Yin Râ ou ainda por outros mestres e místicos, como por exemplo na tradição russa, S. Serafim Sarov e Nicholai Roerich, no fundo apelando a realizarmos e a irradiarmos mais a centelha ou chispa do Fogo Cósmico de que somos portadores...

O VI mantra  é uma invocação, em que se nomeia expressamente o destinatário, o espírito, para que ele paire, voa e nos entreteça, e para que possamos vê-lo tanto no mais íntimo do interior como no do exterior  e sê-lo. É um apelo à meditação e à possível vivência da unidade espiritual dos seres e coisas.

O VII  mantra levanta duas das questões mais frequentes  na demanda da desvendação ou presentificação do espírito: "Onde? Quando?"  E a resposta é o "aqui e agora", o saber-se que podemos realizar-nos no estar-se plenamente no presente.  Um "aqui e agora" visível em muitas tradições, tal em Portugal vindo de Roma antiga no hic et nunc, ou mesmo no É a hora. É um chamamento, um convocação da força, da qual o dito querer é poder é outra perspectiva da mesma realidade.

O VIII é um dos mantras em que Bô Yin Râ procura estimular a não localização da consciência, a ultrapassagem das dualidades, tentando fazer-nos meditar as ideias-forças contidas na oração e sentir que embora sejamos um só, somos também todos, e tanto no interior como no exterior.

Levanta certamente alguns problemas o  admitirmos ou reconhecermos que interiormente somos todos, pois é permitir que eles estejam mais presentes no nosso interior. Resta saber se admitindo-se ou não, eles estão sempre dentro de nós nos planos subtis e portanto que o mantra apenas nos desperta para estarmos mais conscientes de tal entretecimento ou emaranhamento de todas as mentes e almas e que devemos necessariamente desenvolver a nossa unificação interna com o espírito ou eu espiritual, para conseguirmos lidar bem e serenamente com todas estas interacções possíveis.

                           

O IX mantra é um dos mais conhecidos dos ocidentais nas suas três vogais vindo da Antiguidade, IAO, e que teve particular uso nos grupos  gnósticos pois considerava-se ser o nome de um regente ou arconte dos sete que correspondem a cada planeta. Outros viram nele um nome grego para evocar certos deuses. Mas é claramente antes de mais um mantra sonoro divino, influenciado possivelmente pelo AUM indiano.

Bô Yin Râ apresenta-o  como a movimentação dum ponto inicial, que fende o espaço como linha, alarga-se ao ser traçado como compasso e arredonda-se por fim como esfera,  e nesta o Um inicial está em Todos. É um mantra operativo directamente pela sua sonoridade. Bô Yin Râ concluirá no XXII mantra com nova exploração dos sentidos e poderes incluíveis ou desabrocháveis na meditação no IAO.

O X mantra é outro caso de afirmação da unidade universal dos seres e portanto um exercício de alargamento de consciência, ao sugerir e tentar que o ser individual sinta que está ligado ao Mundo, aos outros, à Humanidade, e que tudo isso cada ser é.

 O XI mantra tenta apresentar por várias perspectivas o Ser Original não fundado mas que é o fundamento único e de tudo, apontando ou afirmando como conclusão final que o "Eu sou" é Ele. É dos mais complexos e profundos, e  dito em alemão por quem dominar bem o sentir das palavras empregadas, tem bons efeitos de aprofundamento e alargamento da consciência... 

O mantra XII é dos mais simples mas também mais valiosos ao chamar-nos à realidade do presente, com todas as suas potencialidades: não estarmos presos ou influenciados pelo passado ou futuro, mas antes focar-nos plenamente no presente, ou no entre ser, confiantes nas fronteiras e horizontes novos que se abrem dele. É uma lembrança de acalmia, perante as nossas impaciências.

O mantra XIII é um apelo e semeadura da aceitação da vida, do amar, o do que temos de vivenciar e de que no perder-nos podemos encontrar-nos e que  em ambos somos, ou estamos serenos perante tal oscilação dialéctica, face tanto ao que se perde como ao que se encontra e que tal oscilação externa é frequentemente necessária para ultrapassarmos o ego e vivermos mais o espírito que está acima dele.  

O mantra XIV apela ao sentirmos e irmos para além do que conhecemos ou não conhecemos, pois  há uma dimensão da realidade da sabedoria omnisciente a que podemos ter acesso pela meditação sentida e a cuja identificação Bô Yin Râ indica ao concluir a oração-centelha com uma das grandes afirmações, as mahavakyas, da tradição indiana, Tat Twam Asi, que surge originalmente na Chandogya Upanishad 6.8.7 ao ser transmitida pelo pai e guru Uddalaka Aruni ao seu filho e discípulo Svetaketo: «essa realidade suprema tu és (ou tu és tal Realidade», «sa ya eso nima aitadâtmyam idam sarvam, tat satyam, sa âtmâ. tat tvam asi».

 O mantra XV é dos mais elevados e misteriosos, pois nomeia os Pais, os espíritos mestres mais elevados, como sendo os  que ajudam a descobrir o nosso verdadeiro nome, a nossa essência vibratória, e sabemos bem como tal é muito difícil e trabalhoso, os nomes de baptismo ou mesmo de iniciação sendo apenas sucedâneos mais ou menos apropriados a ligarem-nos interiormente com o nosso verdadeiro Eu e seu nome, ou apenas a representarem-no. Este mistério é trabalhado por Bô Yin Râ em alguns passos na sua opera omnia, o Hortus Conclusus, de 32 livros. 

O mantra XVI, um dos mais longos, tenta fazer-nos tomar consciência da unidade do Único eterno, do outro e do relacionamento de ambos, nessa tríade que substancia a unidade e  a vida e que devemos procurar sentir e realizar, chamando-nos, inspirando-nos e descobrindo-nos interiormente como Eu, e exteriormente como AUM, a omnipresença da vida divina.

O mantra XVII retoma  a realização da unidade do presente e a eternidade: sermos peregrinos ou caminhantes, sempre subindo por degraus da vida, e em que somos na realidade o degrau em que estamos, ou a consciência da eternidade do movimento espiritual ascensional  consciencializado no presente.

O mantra XVIII é dos que trabalha a dialética de sabermos desprender-nos ou  perdermos o pequeno eu para nos reencontrarmos expirando e inspirando-nos na dimensões invisíveis e descobrindo o nosso verdadeiro ser, o Espírito individual, o Jivatman, e que vive em unidade com o Aum, a vibração ou vida divina no Universo.

O XIX mantra é  algo misterioso, pois ao contrário do que Bô Yin Râ ensina como regra geral de vida - o de não haver necessidade de reincarnação -, neste mantra afirma  ter vivido e morrido muitas vezes, e que esse que foi morto renasceu para a unidade com o Ser inicial, a unidade com a Divindade. E sentindo perpassar em si a corrente de vida eterna, apresenta em eco ou fonte uma outra das quatro  grandes afirmações (ou mantras) indianos, as mahavakyas, Aham Brahma Asmi, "Eu sou (um com) a Divindade", a qual surge como conclusão do processo iniciático iluminativo, possível de passar-se numa só vida, ou em geral prosseguida mais lentamente no além, ou não...

O XX mantra é bem forte no apelo à vontade que indica ou impulsiona o caminho, para que se manifeste na nossa vida, e que estando sobre nós nos ilumine e guie e se torne acção, se torne a nossa própria vontade.

 «Vontade impulsionadora!
Quer em mim!
Torna-te efectiva!!

Ó supra-Eu!
Convence-me!
Ilumina-me!
Torna-te efectivo!
Torna-te
–  Eu!! »

No XXI mantra, um dos muito rítmicos e simples, encontramos uma palavra utilizada simbolicamente, e que remete tanto para a tradição alquímica como maçónica, mas também cristã: a "pedra", a pedra de fundação. Nele apela à luz do espírito para que intensifique a sua chama em nós em todo o corpo, para que ilumine o santuário da alma ainda pouco claro, e intensifique a luminosidade da pedra, alquímica, que nós somos, ou que está na nossa base.

                          

O XXII é dos mais difíceis de se compreender, e logo o senti-lo ressente-se pois apresenta uma hierarquia numérica, de difícil hermenêutica em alguns dos seus níveis ou concretizações, pois brota de uma tríade inicial, passa pelo quaternário, talvez das 4 estações e seus arcanos, nomeia o 10, a década pitagórica, e logo o 12, talvez dos signos do Zodíaco e, por fim, chega aos muitos mestres e discípulos que com a régua e o compasso constroem e descobrem-se como IAO, um em todos.

Eis uma obra bem valiosa, com centelhas ou orações simples e profundas, uma  ou outra mais difícil e que nos estimulam a gerarmos as nossas próprias e aprofundá-las. Anote-se que as edições modernas de Bô Yin Râ juntaram o Funken e o Mantra Praxis num só volume. E que no livro Das Gebet, A Oração, de 1926, que eu traduzi e editei [e ainda tenho alguns exemplares], Bô Yin Râ explica muito bem a arte da oração e dá outros exemplos, menos mântricos ou concentrados como estes XXII mantras.  No Youtube encontra uma gravação do I e II mantras:  https://youtu.be/kUXIulIPYTQ

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Carta de Pico della Mirandola ao seu sobrinho Giovanni Francesco, de 2.6.1492, sobre o caminho espiritual. Com vídeo.

Finalizando as comemorações dos 561 anos do nascimento de Pico della Mirandola (24.2.1463-1494) partilhamos a tradução de uma das suas cartas. Imagem provinda da comemoração dos 500 anos do aniversário organizada por José V. de Pina Martins...

Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) viveu bastante retirado do mundo nos últimos anos da vida, dedicado aos estudos e à vida espiritual. Trabalhava numa obra que veio a ser publicada postumamente as Disputationes adversus Astrologos, extensa defesa da incognoscibilidade do futuro face ao livre arbítrio humano e as múltiplas causalidades circunstanciais; mas ia escrevendo cartas, algumas bem valiosas, que deixam transparecer tanto a sua espiritualidade interna e universalista como a sua piedade religiosa e crença católica, além de serem testemunhos da sua psicologia e estado anímico.

Giovanni Pico della Mirandola, numa pintura quinhentista que pertenceu José V. de Pina Martins, sábio confabulator espiritual de Pico, Erasmo, Ficino e Thomas More... 
Das cartas  dirigidas ao seu sobrinho João Francisco, duas de Maio e Junho de 1492 são valiosas. Já transcrevi partes duma delas, a mais valiosa, de Maio de 1492, e pode lê-la em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/12/carta-de-giovanni-pico-della-mirandola.html  e desta vez resolvemos ler traduzindo e gravando a de Junho, e a partir da versão francesa de Olivier Boulnois e Giusepe Tognon publicada nas P.U.F., Paris, em 1993. Posteriormente  lemos-la  em latim  e é a partir desta que vamos transcrever (sobretudo para quem não tiver paciência de ouvir os 30 minutos da tradução) as partes mais valiosas, agora numa tradução minha do latim com  alterações fortes em relação à versão do francês lida e gravada, a qual não consegue transmitir bem, ou não quis, a força espiritual do texto e de  Giovanni Pico, para além de que a língua portuguesa deve ser, após a italiana, a que permite traduções mais perfeitas ou fidedignas do  latim, ainda que esta minha possa ainda ser aperfeiçoada...

«(...) Feliz és, filho, quando Deus não só te atribui o que precisas para viver bem, mas porque tu vivendo bem, ouves dizer  mal de ti    pelos maus, precisamente por viveres bem. É o mesmo louvor seja os que são louváveis louvarem-te seja os que são improbos denegrirem-te.

Mas chamo-te feliz, não pela razão que tal calúnia é gloriosa para ti, mas porque o Senhor Jesus, que é verdadeiro, ou mais ainda a própria verdade, afirma que a nossa mercê [ou graça, ou ganho] será copiosa nos céus quando os homens disserem males de nós  e disserem mentirosamente todo o mal contra nós por causa dele [a Verdade, e Jesus, o verdadeiro].

(...) Finalmente, se o mundo te aplaude, é difícil que a virtude que devia estar toda erecta para o alto, e só agradar a Deus,  não se torne ela a pouco e pouco inclinada para às graças dos homens que a aplaudem; e se não perde a sua integridade perde contudo o prémio, pois este ao começar a ser pago neste mundo onde todas as coisas são exíguas,  pequeno será no céu onde todas as coisas são imensas.

Bem aventuradas as afrontas que nos protegem e impedem que a flor da juventude não estiole sob o vento pestífero da glória inane, ou que o nosso prémio na eternidade não seja diminuído pelo rumor vão popular. Abracemos filho, estas afrontas e orgulhemo-nos, na santa ambição de servidores fiéis, somente da ignominiosa  Cruz do Senhor.

(...)  Cogita  quanta seria a tua insânia, se o juízo dos insanos te demovesse da vida recta estabelecida. Pois todo o erro deve ser removido pela sua correção e não ser aumentado pela sua imitação. Que eles relinchem, ladrem, rujam. Tu avança no teu caminho intrépido. E pesa cuidadosamente quanto deves a Deus pela negligência e miséria deles. O que estava sentado à sombra da morte ele iluminou, e tirou-o das  reuniões dos que em trevas densíssimas se desviam em frenesins sem guia, e associou-o aos filhos da Luz. Soe aquela voz suavíssima do Senhor sempre nos teus ouvidos: «Deixa os mortos sepultar os mortos, tu segue-me» [Lucas IX, 59-60]. Mortos estão de facto  aqueles em quem Deus não toma lugar, e que, neste este espaço temporário de morte, adquirem para si laboriosamente  a morte eterna.

(...) Portanto fecha os ouvidos com cera, caríssimo filho, e o que quer que digam, o que quer que pensem de ti os homens, tem como nada; considera só o juízo de Deus, que dará a cada um segundo as suas obras aquando da sua revelação do céu, com os Anjos da sua virtude, libertando pela chama do fogo aqueles que não conheceram Deus e que não prestaram atenção ao seu Evangelho. A quem serão dados penas (como o diz o Apóstolo), em extinção eterna  da face do Senhor e da glória da sua potência, enquanto que todos os que acreditaram nele serão glorificados na virtude dos seus santos e na sua admirável  contemplação.

(...) Faz isso, e cogita sempre na morte, sempre iminente e ameaçando-nos. Assim vivemos em menos que um instante, e cogita  como é mau o antigo inimigo, que nos prometeu os reinos da terra para nos retirar o reino dos céus, como são falsos todos esses prazeres que por essa razão nos abraçam para estrangular, como são dolosas essas honras que nos elevam para nos precipitar em seguida, como essas riquezas alegres que ao alimentar-nos delas mais nos envenenam; cogita como é breve, incerto, vão, falso e imaginário  tudo isso que  nos poderiam oferecer se pudessem satisfazer  os nossos desejos ou votos, e como é grande o que está prometido e preparado para os que menosprezam as coisas presentes e suspiram por aquela pátria cujo rei é a Divindade, cuja lei a caridade, e cujo ritmo é a eternidade.  
Nesta e em semelhantes cogitações ocupa o teu ânimo para que possam  despertar-te se dormes,  acender-te se estás morno, confirmar-te se vacilas, e produzir as asas do amor da Divindade tendentes ao céu, para que, quando voltares a nós,  o que todos nós aguardamos  com  desejo, e não só pois o queremos,  te vejamos como queremos ver-te. Avança bem [Vale] e ama Deus, a quem já começaste a temer.
Ferrara, 2 de Julho de 1492»
Segue-se a gravação da carta toda, embora seguindo a tradução francesa, e com um pequeno mas razoável comentário pontual:

                              

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Esboço biográfico de Pico della Mirandola por José V. de Pina Martins, para os 500 anos do seu nascimento,em 1963, e agora nos 561 anos digitalizado...

Comemorando-se hoje 24 de Fevereiro de 2024 o 561º aniversário do nascimento de Giovanni Pico della Mirandola, resolvemos homenageá-lo com dois artigos, um comparando-o com Sri Ramakrishna Paramahansa, o grande místico bengali do séc. XIX, e já publicado no blogue, e outro, este, a transcrição dum Esboço Biográfico que José Vitorino de Pina Martins realizou em 1963, no V Centenário do seu nascimento, editado então pelo Instituto Português da Sociedade Científica de Goerres, num pequeno folheto de oito páginas, hoje bastante raro, e que era distribuído a quem visitasse a exposição bibliográfica na sede do referido instituto, na rua Visconde de Seabra.   

Portada 
José V. de Pina Martins foi o nosso maior especialista e amante de Pico della Mirandola, tendo defendido a sua tese de doutoramento na Sorbonne de Paris sobre aspectos da sua vida, obra e edições, e em  livros e em catálogos de exposições biografou ou abordou Pico della Mirandola no contexto do Humanismo europeu, da história das mentalidades e do livro, pelo que este resumo para uma pequena exposição é bastante simples, ainda que tivesse uma segunda parte, Esboço Bibliográfico que talvez transcrevamos noutra ocasião. Encontram-se neste blogue ainda vários textos sobre Pico bem como traduções da sua obra. Oiçamos o nosso querido amigo José Vitorino de Pina Martins:

José V. de Pina Martins, na sua veste doutoral sorbónica, sob as bênçãos de Pico, na sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, hoje já flutuando no akasa ou éter da memória nossa, ou sabedoria de cor de quem a viu e amou. Demos graças.

«Giovanni Pico della Mirandola, um dos maiores humanistas do Quattrocento, nasceu no castelo de Mirandola a 24 de Feverero de 1463 e morreu em 17 de Novembro de 1494, com 32 anos incompletos. No breve ciclo da sua vida, realizou uma obra verdadeiramente singular, mais única do que raro, quer pelo ardor com que se entregou à sua missão de conciliador entre as mais diversas e antitéticas doutrinas quer pela universalidadde de interesses culturais que definiram e caracterizaram a sua forma mentis. [a sua vera fisionomia ou forma psíquica.]

Aos 14 anos incompletos frequenta já a Universidade de Bolonha, onde estuda Direito canónico. Um ano após, livre das suas decisões por via da morte da mãe, abandona a carreira de legista, que o não fascinava, e dedica-se às Letras, tendo sido discípulo em Ferrara, de Giovanni-Battista Guarino. Em 1480, encontramo-lo na metrópole do aristotelismo averroísta, em Pádua, onde Elia del Medigo  o dirige nos primeiros estudos da especulação oriental. A estada paduana é interrompida por uma visita a Paris durante o inverno de 1482-1483, e na capital francesa toma um primeiro contacto com a orientação escolástica parisiense.

Em 1483-1484 Marsilio Ficino acabara de compor e dar à luz a sua versão e comentários do corpus platónico. Giovanni Pico. que então visita Florença convence o amigo a que decida verter em latim a obra de Plotino. O Conde de Concórdia encontra-se, portanto, na origem dos estudos neoplatónicos de Florença e especialmente dos estudos plotinianos.

Em 1485, com vinte e dois anos, o humanista volta a Paris, desta feita para aprofundar os seus estudos sobre a Escolástica tomista e escotista, que encarava o pensamento aristotélico  de maneira diversa. Pico, todavia, procura eliminar todas as diversidades, para só pôr em realce os pontos de concordância. É em Paris que concebe o grandioso plano de reduzir o scibile a 900 teses, que redige, auxiliado pelo seu mestre Elia del Medigo [judeu cretense,1458-1493]. Essas conclusiones deviam ser defendidas em Roma perante um público formado por estudiosos que aceitassem o desafio da disputa, fixado para depois da Epifania de 1487. O objectivo essencial deste plano, que não agradou a muitas amigas de Pico entre eles Ermolau Barbaro, era o de estabelecer uma apologética audaz da verdade universal do Cristianismo, a cujos princípios fundamentais seria possível, segundo o proponente, reduzir todas as filosofias e doutrinas, ainda as mais aberrantes e contraditórias. [Uma utopia de universalidade, condicionada pela supremacia do Cristianismo, mas que mesmo assim não foi aceite pelas autoridades cristãs.]

A Cúria romana, contudo, não aprova a realização da disputa e condena mesma, como heréticas, treze das teses a apresentar. O humanista defende-se com energia das acusações da comissão inquisitorial, nomeada por Inocêncio VIII, considerando os seus membros como ignorantes, mas de nada lhe vale um tal juízo, pois vê-se obrigado a uma retratação em Março de 1487. Não renuncia, todavia, à sua defesa, e redige a Apologia das suas proposições, obra que, como é natural, mais exacerbou as cóleras romanas. Em Agosto o Papa condena, em bloco, todas as teses e o jovem sábio, perseguido por um breve pontifício que recomenda, aos príncipes cristãos, a detenção do Conde Mirandolano, foge para França e é preso em Janeiro de 1488, perto do Lyon. A Universidade de Paris, por seu lado, proíbe a Apologia do seu antigo aluno, mas junto do Papa sucedem-se as diligências a favor do ardoroso «herético». Na primavera desse ano, o nobre humanista vê-se restituído à liberdade e aceita a hospitalidade de Lourenço o Magnífico, que o presenteia com uma vila nos arredores de Florença, nas doces colinas fiesolanas.

O desco de parto, prato de mesa de nascimento oferecido à mãe de Lorenzo, Lucrezia Tornabuoni, quando este nasce, fadando-o para a Fama.

O período 1488-1492 é, talvez, o mais fecundo deste «excomungado» tão religioso e pio. Em Novembro de 1488 Pico completara os vinte e cinco anos, e as teses, assim como o discurso De Hominis dignitate e a Apologia, tinham-no tornado conhecido e admirado pela sua ciência universal. A oratio em louvor do homem constitui mesmo, na verdade, o autêntico manifesto do humanismo quatrocentista. Da mesma época ou pouco depois é o seu Commento alla Canzone d'Amore, escrita por Girolamo Benivieni segundo o estilo dos platónicos, isto é, segundo a orientação das ideias de Ficino no comentário ao Simpósio [de Platão]. A atitude de Pico não é de aceitação sem reserva das ideias de grande autor da Teologia Platónica, e chega ao ponto de verberar a superficialidade de Marsilio Ficino e algumas das suas inexactidões, ou por ele tidas como tal.

O Heptaplus, composto segundo o início do Génesis, é de 1489: nesta obra, que é um verdadeiro tratado de opificio [do italiano, fábrica ou obra] mundi e de opificio hominis, alia o humanista toda a ciência bíblica e patrística aos preceitos mais arrojados do hermetismo hebraico e alexandrino. Não era livro que pudesse conciliar-lhe o beneplácito da Cúria romana...

As suas relações com Frei Jerónimo de Ferrara, o famoso Savonarola, intensificam-se. Num grande sábio e tratado sobre a astrologia judiciária, Pico della Mirandola retomava a dialéctica anti-astrológica da tradição cristã e patrística, para pôr em evidência, contra a opinião de alguns humanistas como Pontano, por exemplo, a liberdade suprema do homem. Savonarola redige, por esta altura, uma súmula destas ideias, aceitando como seu mestre aquele que, na ordem espiritual, o seguia docilmente pela senda de uma espiritualidade eleita.

Da mesma época é o tratado De Ente et Uno, formoso e inacabado capítulo de uma inacabada suma sobre a concórdia universal, tentativa audaz de conciliação do aristotelismo com o platonismo. O discípulo das escolas de Pádua e de Paris sabe muito bem harmonizar os princípios da escolásticas arabizante e da glosa tomista com uma interpretação platónica do mundo e da vida. Era a visão plotiniana do homem que lhe permitia poder efectivar essa concórdia. Mas, de 1491 a 1494, o filósofo fica silencioso. Em 1493, o Papa Borgia Alexandre VI que, no ano anterior, ascendera à cátedra romana, absolve Pico e declara-o livre de qualquer heresia formal, enquanto o vibrante autor  da Apologia leva agora, mansamente, uma vida de exemplar austeridade, na contemplação que uma pia philosophia lhe facultava e nas serenas reflexões para cujo mundo excelso uma docta religio o conduzia progressivamente. 

 [E agora um tão belo quão evocador fim por Pina Martins:] Aquele 17 de Novembro de 1494, dia outonal que, nas colinas de Florença, encerra o ciclo de vida do Mirandulano, condena o pensamento europeu a ficar para sempre privado do estudo que seria, porventura [ou muito provavelmente não, pois o que escreveu já tem muito para muitos século], a sua obra-prima: a «Concórdia» do Conde Mirandolano, príncipe dos humanistas, o mais puro espírito do pensamento quatrocentista. Envenenado, talvez, por um dos seus fâmulos. Pico segue de perto para o túmulo aquele que o protegera, Lorenzo de Medici, morto em 1492, Ermolao Barbaro em 1493 e Poliziano em 1494 [os seus  principais amigos]; segui-lo-ão naquela década, para  mundo ultra-terreno, Frei Jerónimo de Ferrara [Savonarola], tragicamente sacrificado em 1498, e Marsilio Ficino desaparecido em 1499.» Muita Luz e Amor Divinos religando-nos a todos!

                                                          
Pico della Mirandola, entre Marsilio Ficino e Angelo Poliziano. Fresco por Cosimo Roselli, de 1488, na igreja de Sant'Ambrogio, em Florença.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Pico della Mirandola e Ramakrishna Paramahamsa, dois espíritos universais, em si e nas mensagens. Nas comemorações dos 561 anos de Pico della Mirandola.

Pico della Mirandola no meio de Marsilio Ficino e Angelo Poliziano. Fresco por Cosimo Roselli, de 1488, e ainda hoje contemplável na igreja de Sant'Ambrogio, em Florença...

Para celebrarmos os 561 anos do nascimento de Pico della Mirandola, pois nasceu em Mirandola a 24 Fevereiro de 1463, um espírito pioneiro na sua universalidade filosófica e teológica, resolvemos compará-lo com Sri Ramakrishna Paramahansa, nascido em Karmapur a 18 de Fevereiro de 1836, já que ambos, embora separados por uma grande diferença temporal,  e um na Itália e outro na Índia, nas suas filosofias, teologias e visão espiritual  sintetizaram e unificaram longas tradições anteriores e brilharam e influenciaram muitos...

Pico della Mirandola não se limitou à tradição filosófica grego-romana nem a religiosidade Católica, pois aceitou tanto a Cabala e textos apócrifos judaico-cristãos como nos seus amplos estudos filosóficos, religiosos e espirituais acolheu ainda a sabedoria egípcia, caldaica, persa e árabe discernindo uma mesma tradição de Filosofia Perene em todas e considerando os diversos profetas e mestres como elos dessa mesma tradição, posição que também tinha sido investigada e defendida pioneiramente pelo seu amigo Marsilio Ficino (19.10.1433 - 1.10.1499).

Já Ramakrishna, conhecendo  desde cedo por vivência e diálogos (na sua aldeia, desde criança, ouvia os yogis e sadhus que estacionavam junto ao templo) quase toda a tradição indiana, que depois aprende mais profunda e intimamente com yogis que o vão visitar ao seu templo junto ao Ganges, vai por fim pela sua humildade, curiosidade e sensibilidade conhecer também a essência da religião cristã e islâmica, bem como ainda a jaina e budista, não por estudos nem  pelos diálogos com religiosos ou devotos delas, mas pela sua capacidade psico-espiritual de conseguir vivenciar por dentro (a islâmica impulsionada por um sufi que lhe transmitiu o dikr, ou oração-repetição sagrada adequada) e ver subtilmente os mestres fundadores dessas religiões e ter como que fusões, unificações ou samadhis com eles.

Pintura naif indiana de um discípulo de Ramakrishna, representando a fraternidade ecuménica cristã, islâmica e das diferentes tradições indianas...

Ambos viveram significativamente em épocas denominadas de de renascimento, Pico della Mirandola no do Humanismo Europeu, do culto das letras e filosofias antigas e da dignidade humana, nos séculos XV-XVI, e Ramakrishna, no Renascimento de Bengala, no séc. XIX,  das tentativas de modernização ou racionalização da sociedade indiana e do Sanatana Dharma (eterna religião ou ordem), e em que se destacaram Raja Ram Mohan Roy (22.5.1772-27.9.1833),  (Devendranath Tagore (1817-1905), e seu filho Rabindranatah Tagore (1861-1941), que receberia mesmo um prémio Nobel de Literatura em 1913, Dayananda Saraswati (1824-1883), Keshub Chandra Sen  (1838-1884) e Bepin Chandra Pal (7.11.1858-20.5.1932) que chegou a afirmar:«Ramakrishna Paramahamsa não pertencia a qualquer seita ou denominação, ou se quisemos, pertencia a todas as seitas e denominações, tanto Indianas como não-Indianas. Era um verdadeiro universalista, mas o seu universalismo não era o universalismo da abstração».

Ambos sendo muito sensíveis e místicos, ou seja, dotados de capacidades de vivência interior, clarividente e, sobretudo Ramakrishna, instática  e extática, chegaram a percepções dos mundos e seres espirituais e da Divindade por diversas tradições e modos ou metodologias.

Pico della Mirandola trilhou contudo um caminho bastante mais intelectual e filosófico, com estudos do aristotelismo averroísta em Pádua, e da escolástica de S. Tomás de Aquino e de Duns Escoto em Paris, pois dotado de alma bem sensível e devota também intuiria, ou pelo menos descreveu bem e com maior ou menor clarividência, algo dos níveis mais elevados da realidade, tal o espírito, os Anjos e demais espíritos celestiais da Hierarquia, o Amor, a Trindade, a Divindade.

Pintura quinhentista de Pico della Mirandola, que chegou a ser oferecida ao Museu de Arte Antiga, por Primula, a mulher de José V. de Pina Martins, após a partida dele para os mundos espirituais, quem sabe tornado vizinho ou confabulator de Pico.

Em muitas páginas transmite-nos os seus ensinamentos unificadores e ascensionais valiosos, embora a dado momento  se tivesse envolvido demasiado na Cabala e tentasse explicar o Génesis (tal como no começo do séc. XX o padre Lagrange, que foi impedido de publicar os seus trabalhos porque abalavam a literalidade do entendimento comum cristão) dando à luz em 1489 o Heptaplo, Exposição septiforme dos seis dias da Criação, com uma complicada hermenêutica, platónica, cristã e cabalista, ora com bom sentido espiritual, ora muito imaginativamente, esoterizando algo forçadamente a narrativa simples ou primária mosaica, que para Pico enraizava na sabedoria egípcia, e ambas ocultando alegoricamente as profundas verdades que Pico agora desvendava e partilhava...

Anote-se que em 1486-1487, a sua tentativa de discutir 900 teses de conhecimento universal não foi bem recebida pelo Papa e por alguns teólogos da comissão de inquérito, os quais, face a teses provenientes de fontes extra-católicas ou com sintomas de simpatia por doutrinas suspeitas, consideraram heréticas treze dessas proposições, porque “renovam os erros dos gentios e as perfídias dos judeus”, que contudo eram das mais estimulantes de aprofundamentos...

Giovanni Pico resolveu corajosamente replicar e escreve uma valiosa e profunda Apologia às treze proposições, condenadas (tais como: se Jesus descera aos Infernos, o que aconteceria no fim dos tempos aos condenados por pecado mortal, se a magia e a cabala certificavam a divindade de Cristo, o que devíamos pensar de Orígenes estar condenado, e outras sobre a Eucaristia, os milagres de Jesus, os Anjos, etc.),  o que irritando a Cúria romana  leva à sua condenação por  um breve pontifício em Agosto  de 1487, pedindo-se a sua prisão às autoridades. Pico foge para França, chega a ser preso por uns meses, mas Lourenço de Medicis intercede e recebe-o em Florença onde ele estabiliza e se dedica às obras seguintes, um Comentário a uma canção de Amor e GirolamoBenivieni, o Heptaplo, os Comentários ao Salmo 195 e os Argumentos contra a Astrologia Adivinhatória, defendendo fortemente o livre-arbítrio, e que teve muito cedo tradução parcial para português por Frei António de Beja (1493-1517), Contra o Juízo dos Astrólogos. Só em 18 de Junho de 1493 é que por um breve dirigido ao "dilecto filho e nobre homem Ioanni Pico  conde de Mirandola", o Papa Alexandre VI, um Borgia sábio, retira tal carga das costas e coração do genial e inocente conde da Concordia, que de facto viveu antes do tempo propício e morreu tão precocemente. Será o seu sobrinho Giovanni Francesco Pico que editará as suas obras completas em 1496, com várias cartas, que terão então grande sucesso no século XVI (com sete edições em Itália, a última de 1557, e visível na imagem) e por diante, sobretudo a sua Oração da Dignidade Humana, hoje tão necessária de ser lida e ouvida em alguns aspectos tocantes à identidade do género humano no cosmos hierárquico e das suas potencialidades de degeneração  e de elevação.

                                                 

Já Ramakrishna Paramahamsa foi um mestre vivo sem problemas quanto à ortodoxia, já que era um sacerdote, de casta imemorial brâmane, e soube, quando questionado ou investigado, brilhar tanto com a sua sabedoria,  boa disposição, simplicidade e sobretudo capacidade de entrar em contacto com o espírito e com a Divindade, que convencia, ou então tocava as pessoas que o visitaram, ou o viam a celebrar o culto da deusa, ou a ensinar, a cantar e em meditação profunda. E muitos dos  diálogos nos últimos anos da sua vida foram registados por um discípulo sábio, Mahendranath Gupta, que os veio a publicar como o Evangelho de Ramakrishna, em 1897, sem dúvida um dos mais belos registos diários de um mestre na tradição dos Vedas, do yoga, da bhakti ou devoção, do Sanatana Dharma

Com efeito a metodologia básica vivida, realizada e depois ensinada, frequentemente em parábolas, foi a tradicional da Índia, a yoguica e, numa síntese das diferentes vias, Ramakrishna privilegia e realça para a época, idade ou era em que se estava (e está, na ciclicidade das Yugas), a Kali Yuga, a sadhana bhakti, ou seja, as práticas de aproximação afectiva, devocional e de amor à Divindade, qualquer que seja a forma ou encarnação, concepção ou nome com que Ela seja adorada, invocada,  vivenciada.

Pico também exerceu um magistério porém mais irradiação da presença luminosa e graciosa nas conversas e debates, nos livros e nas cerca de setenta cartas (e a extensa, dirigida ao seu sobrinho, uns meses antes de morrer, é bem notável na vibração e nas recomendações espirituais), pois não era um sacerdote e foi mesmo condenado, e foi pois pela dimensão de filósofo e metafísico universalista, bom conhecedor da tradição grega (desde Pitágoras e Orfeu aos neo-platónicos), cristã (e em especial a patrística e Orígenes) e oriental (além dos persas chega a referir os gimnosofistas, os yogis e jainas da Índia, antepassados de Ramakrishna), que conseguiu libertar-se das malhas das concepções limitadoras judaico-cristãs.

 A sua obra mais especulativa, e em que tenta conciliar Platão e Aristótles,e chegar ao conhecimento da igualdade do Ser e do Um, título da sua obra de 1489, De Ente et Uno, representa no fundo um conhecimento muito  elevado mas teórico ou intelectual face às vivências  e realizações do Ser e do Um de Ramakrishna, que via e vibrava tanto com a Divindade una, o Brahman, transcendente e imanente e que estava por detrás da sua forma preferida pessoal, a deusa Mãe, Kali, que ele via e adorava na sua mulher Sarada Devi e nas mulheres, tanto com os fundadores das religiões que mais tinham realizado o Ser  ou Realidade primordial, e assim, em Dashineswar, no seu quarto, tinha uma estátua de Mahavira, o último Tirtankara do Jainismo, e outra de Jesus, diante das quais na aurora e no crepúsculo acendia incenso e devoção.

E tal como Ramakrishna valoriza bastante a via do amor à Divindade na época sombria (Kali Yuga) em que segundo a tradição védica estavamos, também Pico della Miranda, ao aceitar mais  a visão sombria do Renascimento que  o monge dominicano e profeta Savonarola denunciava na Florença dos Medici, sobretudo pelo paganismo e o sensualismo-luxúria,  enveredará e apelará a uma  vida simples e ascética e de entrega do coração a Jesus e à Divindade.

Ora se no caminho de realização de Ramakrisna houve iniciações, passagens de um estado limitado, o da exclusividade do seu amor à deusa Kali, a outro mais abrangente, nomeadamente ao deixar essa visão feminina da Divindade e chegar ao Primordial Brahman, e de estar em plena comunhão com o espírito e frequentemente com a Divindade, em Pico della Mirandola houve uma certa retração face à sua universalidade inicial, pois tanto sofreu a condenação papal por seis anos como se emaranhou nas infinitas complexidades da conciliação do aristotelismo e do platonismo, ou na de encontrar uma harmonia intelectual entre as diversas escolas filosóficas e tradições religiosas, pelo que, quando por fim, mais influenciado ou afim de  Savonarola desvaloriza as tradições pré-cristãs e torna-se mais um simples devoto e místico cristão, não sabemos se nessa dinâmica, por um lado de estreitamento, terá intensificado ou ampliado  a sua auto-gnose espiritual e religação divina íntima....

Giovanni Pico della Mirandola morre muito cedo, aos 31 anos, ardendo de converter as pessoas a um Cristianismo mais espiritual, e  de febre no seu corpo-alma luminoso, satvico. Ramakrishna, que passou anos a tentar iluminar e harmonizar, e até curar os que o rodeavam, sofre um cancro na garganta e em pouco  tempo parte mas já com 50 anos, o que nos yogis da Índia na época não era assim tão pouco. Serão swami Vivekananda e os outros discípulos, que formam a ordem Ramakrishna, que irão fortalecer a filosofia (sobretudo a vedântica) e a religião indiana, tomando de certa forma o facho que os homens do Renascimento bengali tinham acendido com o Brahmo Shaba, o Arya Samaj, o Brahmo Samaj e a Nova Dispensação mas que depois grupalmente se foi apagando ou extinguindo, embora sucessivos mestres em diferentes linhas  ou tradições (darshanas) e práticas (sadhanas) nunca tenham faltado ou faltem na Índia.

Se hoje as celebrações do nascimento e morte (segundo o calendário lunar) de Sri Ramakrishna e de swami Vivekananda (o seu discípulo principal, e que estivera presente com grande impacto no I Parlamento das Religiões, em Chicago, em 1893, tão pioneiro no comparativismo religioso universalista ao vivo)  juntam milhares de pessoas com grande fervor devocional, com cerimónias transmitidas online,  havendo vários centros e templos activos da Ordem, já o espírito de Pico della Mirandola é invocado  comungado por poucos (e entre nós devemos mencionar o meu amigo e mestre José V. de Pina Martins), embora a sua saga e obra continuem a gerar estudos e livros de alguns estudiosos do Renascimento e sobretudo do Hermetismo, já que vêm nele um dos pioneiros, em especial com Marsilio Ficino, da afirmação de uma Filosofia Perene, que  alguns autores foram prosseguindo e desenvolvendo até chegarmos aos últimos de mais valor, já no séc. XX, tais Ananda Coomaraswamy (1877-1947), René Guénon (1886-1951), Julio Evola (1898-1974) e Jacques de Marquette. A jovem russa Daria Dugina Platonova, filha do notável pensador russo Aleksander Dugin, estava a desenvolver-se bem nesta linha, mas extremistas cortaram-lhe a vida na Terra, tão promissora que era... Um pecado contra o Espírito Santo, imperdoável, dir-se-á...



Deve-se realçar-se que a unidade das religiões, assente ou exponenciada como religião universal, de Ramakrishna Paramahansa estava baseada nas diversas realizações espirituais e divinas que ele vivera e ensinara. Era pois de experiência e vivência psico-espiritual, enquanto que a tradição da Filosofia Perene nos últimos mencionados foi mais intelectual, mais de compreensão e não tanto de realização com os sentidos espirituais já despertos nesta vida, algo que Paramahansa Ramakrishna conseguira,  algo inatamente e algo a partir de práticas meditativas e devocionais, nas quais  a realização afectiva ou amorosa, para o ser divino no interior da alma, foi  demandada com persistente devoção até  atingir-se tal ligação, visão ou unificação.  
Ramakrishna Paramahansa ensinava isto aos seus discípulos, conseguindo mesmo despertar em alguns fortes experiências espirituais e de visão divina, algo que nem Pico della Mirandola (mas sabemos pouco dos seus encontros-diálogos-orações mais afins espirituais) nem os últimos expoentes da Filosofia Perene conseguiam tão plenamente, embora saibamos que, mesmo assim, eles impressionaram alguns, e, por exemplo, Jacques de Marquette conta esse impacto intelecto-espiritual de Ananda Coomaraswamy, em Boston, e sobretudo o efeito espiritual do seu mestre indiano, Guru Ranade (3.6.1886-6.6.1957), outro valioso pioneiro do comparativismo filosófico e da espiritualidade, e por experiência directa, e a quem já consagramos alguns artigos no blogue. 
Anote-se que dois notáveis pensadores ocidentais admiraram muito Ramakhrisna e dedicaram-lhe duas obras importantes que contextualizam a sua vida e obra e realçam a sua universalidade: Max Müller (6.12.1823 a 28.11.1900), um dos fundadores da Ciência das Religiões e do seu Comparativismo, com Ramakrishna, His Life and Sayings, de 1898, e Romain Rolland (29.1.1866 a 30.12.1944), prémio Nobel da Literatura em 1915, La Vie de Ramakhisna, de 1947, ambos já abordados no blogue. A estes, seguiram-se muitos outros estudos. Quanto a Pico della Mirandola são também inúmeros e bem valiosos...

Meditemos, para concluir luminosamente, um dos belos ensinamentos de Pico della Mirandola,  saudando-o com muito amor!

"A única coisa que nos faz receber de Deus o que lhe pedirmos é o esperarmos conseguir tal. E se respeitarmos estas duas condições, a de só pedir a Deus o que nos é salutar e a de pedir ardentemente o que queremos, com a esperança firme que Deus nos satisfará, nunca serão realizadas em vão as nossas orações".

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O despertar no além de que depende? Qual a eficácia das orações pelos que partiram, ou sofrem?

Quando morrermos com quem vamos estar? -, interrogo-me diante de fotografias de antepassados...

Será com eles, podendo mesmo ser recebidos por alguns ou, mais provável, só após estarmos interiorizados  algum tempo é que poderemos vê-los, encontrá-los, bem como às pessoas mais próximas, afins ou queridas?

Sabemos pouco das causas da menor ou maior capacidade de energia auto-consciente activa no corpo psico-espiritual e nos seus sentidos espirituais, com que sobrevivemos no além, determinando o nosso campo de cognição e acção, embora as artes de bem morrer e orar tenham sido muito ensinadas, e citarei apenas dois autores, porque os traduzi e publiquei, Erasmo e Bô Yin Râ, e onde o amor e a lucidez de sintonia com a vontade (ou até dharma) mais elevada ou divina são indicados como as melhores causalidades...

Quantos conseguem porém sair do corpo e estar logo conscientes e activos, dominando à vontade a sua movimentação subtil nos planos ou mundos a que terão acesso? Quantos é que ficam presos num umbral dos mundos astrais? Quantos é que são logo atraídos para o sub-mundo subtil ou espiritual a que estão mais ligados por frequência vibratória e estrutura anímica, religião e espiritualidade, causas e conhecimentos, lutas e artes? Quantos é que desprendendo-se libertadoramente ascenderão  rumo aos mundos espirituais e à Divindade?

Vou escrevendo estes fragmentos interrogativos de auto-gnose, enquanto que na Palestina o genocídio vai sendo praticado a céu aberto, mas muito disfarçado pelos meios de informação, na sua maioria pagos ou controlados por pessoas ou corporações que apoiam plenamente Israel e facilmente o sionismo.

Os já mais de 29.00 tragicamente mortos, e onde predominam as mulheres e crianças inocentes, imaturas, impreparadas para tal decepar precoce, onde estão, como estão?

Estarão no plano astral da Terra Santa, assim chamada pela vida e morte do mestre Jesus, quem sabe agora dinamizando as operações de ajuda aos recém desincarnados, com o apoio de guias islâmicos, cristãos e anjos?

Ou serão encaminhados inconscientes para outras localizações do plano astral terrestre ou mesmo para dimensões não conectadas com a Terra?

E será que muitos, dos mais velhos e conscientes, recusam-se a abandonar as suas casas e lojas, terras e olivais, altos e mesquitas e são avistados por alguns clarividentes como fantasmas, em vez de espíritos em ascensão?

Que orações poderemos nós lançar sentidamente da alma, coração e até voz que tenham impacto neles, ou no ambiente tão dilacerado? Teremos força de sentimento e de pensamento para chegar até lá, numa acção à distância da mente e coração, que circula pelo Campo unificado de energia consciência informação que entretece todos,  ou apenas alguns frágeis eflúvios se elevam de nós, ao orarmos, e espíritos caridosos, humanos ou angélicos, redirecionam-nos para as almas mais necessitadas, ainda vivas ou já fora dos corpos?

Eis interrogações que poucos saberão responder mas que todos podemos demandar pois, apesar de tantos séculos de vivências e comunicações, de tanto livro  e lápide, tanto a vida da oração como a do além continuam um mistério. Saibamos então perseverante e criativamente rezar, meditar e orar com sentimentos profundos,  seguindo o que o nosso coração espiritual, ou espírito, em comunhão subtil realizar e irradiar de paz, amor e luz, e algo resultará de acréscimo de Bem e de Amor no Universo, como entre nós tão bem afirmou idealisticamente Antero de Quental na sua magistral carta (e pode lê-la no blogue) a António Moleirinho: «O Universo só dura pelo bem que nele se produz», ou que o sustenta...

Desenho de auto-gnose e demanda juvenil.

 

Desenho interrogativo ou de auto-gnose dinamizante, dos vinte e poucos anos...

1) Será lícito entristecer-me?
Teremos liberdade para tudo?

2) Meu pensamento voa, mas cá em baixo jaz o sofrimento.

3) Bem lá no alto a estrela do Espírito que Eu sou brilha, mas nós pobres por cá [em baixo] em palavras e pensamentos finitos.

4) Os dados estão lançados. Aceitemos o irmão corpo e Portugal. E demos as mãos em acção de graças, antes que em mágoas de tristeza

HUMANO SER.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Três desenhos espirituais, realizados imperfeitamente por mim há anos e anos, na demanda da gnose e da Luz.

 Desenhados há bastantes anos, e já no Colégio Militar era sofrível em tal arte, tornaram-se com o tempo algo misteriosos, sobretudo o primeiro no qual é difícil lembrar-me das circunstâncias e do que senti, ou do que operou, de motivação na gestação. Teria de ter uma boa memória psicanalítica ou jungiana, ou então meditá-lo "de novo" bem....

                           

Consigo   discernir ainda assim no 1º desenho, o mais antigo, dos meus 20 e tal anos,  uma alegoria à Nova Era de Aquário, com uma sereia, um deus ou mestre, talvez egípcio (com muitas forças psíquicas), um elfo ou gnomo, e um ser (e quem será ele?) que recebe os impactos dos outros três. Ao fundo, as montanhas, seja apenas físicas, seja da aspiração ou das dificuldades da ascensão, e o Sol. Assinei Datatom, talvez em ligação com o Egipto. 

 Ascensões

  No 2º, a que chamei agora Ascensões posso sentir e discernir símbolos da ligação entre a Terra  e o Céu, entre a Humanidade e a Divindade, tais como o triângulo, a montanha, as escadas, as espirais aéreas, partindo do sangue e fogo do coração e rumo ao ser espiritual e divino, lá no alto aureolado.  É o mais suave e belo, e talvez sugira inspirar-nos ou esforçar-nos mais pela beleza espiritual e as suas cores suaves e luminosas.

                                   

 O 3º, mais recente, retoma a representação das montanhas sagradas, seja as nossas seja mais os Himalaias, e sobre elas  ergue-se uma mandala flamejante, com uma cruz pateada irradiando e no centro uma misteriosa figura crucífera Linhas de força em espiral elevam-se da terra e do interior das montanhas e no cimo de tudo a estrela de cinco pontas brilha resplandecente, símbolo da nossa identidade mais elevada e à qual a um dia estaremos mais identificados.

 Que efeitos estimuladores podem suscitar, ou intuições gerar, seja para quem desenha, seja para quem os analise psiquicamente, seja para quem os contemple misticamente, não sabemos, mas valem, na sua imperfeição, por serem testemunhos semi-artísticos duma demanda..., e entram ainda no blogue para variar tanta partilha de textos em palavras...