quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Diário de 1995. Velha Goa e Pangim. Com Selma Vieira Velho, António de Menezes e Maria Ferreira da Silva.. Peregrinações, meditações e diálogos.

«Goa, gondola dourada no rio do passado, vai-se comercializando pelos novos colonos indianos. Nas ruas estão acocorados os mesmos pobres de sempre vendo passar os novos senhores com dinheiro. Não se julgue contudo que haja ódio, ou ressentimento; não, qualquer indiano sabe intuitivamente sentir a unidade de todos os seres e ver passar os endinheirados é sê-los por algum tempo. 

As ruas da cidade são ora dolorosas, enquanto se degradam as suas casas antigas, dos séc. XVIII e XIX, ora indiferentes quando reconhecemos a inevitabilidade de Goa ir perdendo as suas características antigas indo-portuguesas e em certos aspectos poder degradar-se pelo aumento populacional.
Hotel Mandovi, o mais caro e famoso, está cheio, o Park Hotel não cheira muito bem e está algo sujo nos três quartos que visitámos. O Sun Rise só tem um quarto vago a partir das 18 horas. Por fim, o Mayfair acolhe-nos, limpo, simples, barato.
Saída ao centro da cidade e entramos no Instituto Menezes de Bragança, uma das principais instituições de cultura desde há muito, [pois foi fundado em 1871 como Instituto Vasco da Gama. por iniciativa do escritor Tomás Ribeiro, então secretário do Governador da Índia, e nele houve grandes conferências, além de um boletim com artigos muito interessantes. Com dois membros dialoguei bem há uns anos, Padre Filinto Dias e o Reverendo Alberto de Mendonça, seres de grande amor, sabedoria e cultura...]
Aqui está ainda Portugal presente nos azulejos do átrio onde as cenas principais dos Lusíadas ao estilo de Roque Gameiro mas de Jorge Colaço, de 1935, falam-nos silenciosamente da história antiga de Portugal. Mas que significado e valor terão hoje para a generalidades dos habitantes? Provavelmente 80 ou 70% das pessoas de Goa já pouco ou nada saberá disto.
                     Velha Goa
A Basílica de S.
Francisco Xavier alta, imponente, espaçosa, recebe-nos de braços abertos: ao fundo no altar-mór, o santo tem-nos virado para o alto, para o sol do Espírito. 
Altares poderosos, sob a invocação da Senhora e do arcanjo Mikael.
O corpo de Xavier no cofre dourado [de prata]  está calmo [ou transmite tal vibração na sua perenidade devocionada...] 
Passamos à grande Sé onde, sem o movimento de visitantes da basílica, já é possível meditar em frente a uma grande capela onde está o Santíssimo Sacramento exposto e que por entre as grades deixa ver as pinturas de Melkitsedek recebendo Abraão, e Jacob recebendo a visita dos Anjos. 
Saudar a Ordem Espiritual de Portugal, designável por ordem de Mariz, e na meditação bem cardíaca e serena, sinto como estes locais têm um excesso de energia espiritual, e que é derramada generosamente no cálice que os peregrinos elevam, e possivelmente em especial quando são de Portugal.
Porque houve aqui grandes seres, obras e vidas, certas energias foram criadas. Havendo pouca gente a sintonizar nelas, estando quase despovoada a zona de Velha Goa, essas energias (e provavelmente almas a elas ligadas) estão mais concentradas e podem descer com facilidade.
Na meditação veio-me o velho dito."Não tenho medo de nada nem de ninguém". Agora tenho de realizar outro preceito "Não desejo nada nem ninguém" .
                                       
Ao fim da tarde vamos até à Igreja
da Conceição, já de novo em Pangim ou Nova Goa, com a sua escadaria imponente, verdadeiramente purificadora, na linha ad astra per aspera. Oramos e meditamos no interior. Umas senhoras goesas e uns senhores esperam que comece a missa das seis horas que é dita em concani e em que nós participamos  devotamente com a sintonização que conseguimos...
Agora já são 23:12, no sossegado e limpo hotel Mayfair, e vou meditar...
~~~~~~~~~
So
nhos nocturnos com mar, ondas, águas, piscinas. Predomina esta elemento em Goa, ou são as emoções-paixões a causa deles?
Num primeiro, o mar estava forte avançava em o
ndas altas e cadenciadas. Eu e outras pessoas apreciávamo-las e cavalgávamos-las ou lidávamos com elas. (...)
(...)
Como se vê é tão difícil correlacionar e interpretar correctamente os sonhos (já para não falar sequer do registar), sobretudo quando tantos níveis se cruzam nestes restos da Roma do Oriente e da sua sucessora Pangim, quando um português com consciência do passado os atravessa e procura [discernir, sintonizar] o futuro certo

Hoje na meditação [matinal] de 20, sexta-feira, veio no olho espiritual a luz, ao fim de algum tempo, e ainda compreensão do que acabar a meditação quando a luz se derrama é um dos sentidos do misterioso "pecado contra o Espírito Santo". Antes havia apenas o apelo a Cristo. Talvez aqui em Goa esta energia talhada com tanto sangue e sacrifício esteja ainda bem presente e exercendo a sua influência subtil sobre todos os que por aqui passam, ou sobretudo os que oram e meditam.
Às 12 horas, a investigadora Selma de Vieira Velho [amiga de Margarida Correia de Lacerda, em casa de quem a conheci, e da Maria Ferreira da Silva, e autora da A Influência da Mitologia Hindú na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI E XVII, em 2 vols. 1988, tão valiosa em especial nos capítulos sobre A influência indiana (hindu) em Gil Vicente e Camões], veio visitar-nos  ao hotel e ficamos a almoçar e a conversar até às 17.40 sobre vários aspectos da história e da espiritualidade de Goa e da Índia, que ela conhece bem e vibrantemente. Meditação antes do jantar com algumas compreensões valiosas acerca do que dialogamos mas que depois me escapam da memória da superfície, embora  na meditação da noite fossem recuperadas em parte e agora de manhã transcritas:
A Ordem de Cristo, a Ordem Templária, são estados de consciência, são ordens internas, místicas. É cada ser por si próprio que se acerca e se insere nelas, alcançando ou merecendo certos níveis, conforme o seu estado anímico e as suas realizações. São recriadas ou reactualizadas constantemente com o fluir dos tempos, conforme os que as animam, ou, externamente, ao contrário, que as desfiguram, distorcem, abusam. Certo, há nelas a designação particular de Cristo, que exclui portanto Buda, Maomé, Nanak ou Krishna, embora se saiba igualmente que palavra Χριστός, Khristos, Cristo, significa fundamentalmente Ungido, pelo espírito divino.  E assim é natural que certos seres, ainda que avançando por uma dessas linhas religiosas não cristãs, cheguem depois à universalidade delas, ao ungimento espiritual, a uma cristificação interna e, logo, tenham acesso aos níveis mais elevados das Ordens espirituais, ou ao nível em que todos aqueles fundadores ou sábios vivem, sendo apenas mestres da mesma Fonte Divina...
             
Velha Goa
[Domingo] Estamos à somb
ra das duas árvores centenárias e gigantescas do jardim da Igreja de S. Caetano, após meditação no seu interior. As folhas desprendem-se dos ramos nas rabanadas do vento e dão-nos um certo sabor de Outono.
Dentro da Igreja a vibração fresca permite-nos lançar nos apelos orativos e nas consciencializações do Espírito [energias luminosas].

Alguns pássaros cantam e incitam-nos a redescobrir a alegria divina.
Esti
vemos antes na igreja da Sé Catedral em boa meditação, com a luz a vir, e as pessoas a sorrir [ao verem-nos a meditar, unindo Cristianismo e Hinduísmo ou pelo menos Yoga indiano].

 [Notas escritas já ao findar do dia:]
- A compreensão clara de que a Ordem de Cristo é interna, subjectiva ou íntima. Chegar à ordem de, ou ligação, ou direcção de Cristo.
- O que é em cima é igual [ou semelhante] ao que está em baixo, aplica-se ao olha para o espírito, que tanto pode ser visto para o alto, como para o chacra da raiz [da coluna e suas profundezas]
- A exuberância e vitalidade da energia ambiental colora e modela a energia anímica interna. Curioso intuir a situação da energia interna dos seres (e dos cavaleiros e iniciados de outrora), ao ser influenciada por este sítio.

                                                 

À tarde ida das 13:30 às 17.30 ao cemitério português do Oriente, em Velha Goa, ao convento dos Agostinhos. E afirma-nos a Selma de Vieira Velho que já  não estão 1/10 das sepulturas, pois dezenas e dezenas delas foram feitas em bocados para se pavimentarem as estradas que ligam Velha Goa a Nova Goa e sua capital Pangim.
O Museu do Convento S. Francisco é outra desgraça: das centenas ou mesmo milhares de peças maravilhosas que intensificaram a espiritualidade de Goa, muitas delas perdidas, exportadas, escamoteadas e vendidas, conservam-se no museu cerca de vinte peças de arte cristã com pouco valor artístico ou de raridade, parecendo que querem até diminuir o valor do cristianismo, [embora seja verdade que as melhores existentes em Goa foram recolhidas em 1994 num museu de arte sacra no seminário de Rachol].
Mas que beleza e alegria ao encontrarmos o chão da torre e igreja e Santa Maria dos frades Agostinhos tão cheio de sepulturas de fidalgos, religiosos e notáveis ou esforçados, que aqui deixaram o sangue, os ossos e a fama sepultada e que ainda,  passados 300 ou 400 anos, fazem vibrar a nossa alma. Que sensação espiritual caminhar sobre eles em admiração e gratidão, oração e comunhão...
Reina aqui um silêncio santo desde há 200 e tal anos quando a cidade de Velha Goa foi sendo abandonada por causa das epidemias.
 
Escrevo estas memórias do Domingo na noite final de Diwali [festa das luzinhas, algo correspondente ao Natal, móvel, de 21 a 23 de Outubro em 1995] em Pangim. Os tambores tocam como num concurso ou cortejo de Carnaval. Os carros processionais com o demónio (Ravana) vencido por Rama passam. O pagode está na rua. Já Velha Goa repousa ainda em silêncio. Mas por pouco tempo. Casas e mais casas começam a ser construidas nas imediações. No centro do próprio perímetro sagrado o Estado indiano deixa fazer uma pequena indústria química, disse-nos a Selma. Com efeito, vê-se edificar uma casa semi-disfarçada pelas árvores. O que virá a ser? 
 Velha Goa, Igreja de Santa Maria, dos frades Agostinhos:
Vamos lendo, decifrando os epitáfios sagrados, que jazem aos nossos pés: aqui um capitão de Ormuz, ali uma sua alteza, as mulheres, os herdeiros, pedem orações ou transmitem-nos símbolos religiosos, o que vou fazendo, com Aum e Amens...
Cerca de 2000 estudantes chilrearam por aqui na época áurea. Que cerimónias mais luzidas, de estudos ou da religião, não foram estas pedras, caminhos, largos e igrejas testemunhas?
Hoje o chão e as paredes do convento e da igreja estão cobertos de ervas e poeira, e o vento é o único oficiante. Mesmo assim ergo algumas orações e invocações das bênçãos divinas pelas almas aqui celebradas ou presentes...
Caminhamos sentindo sacralidade do sítio, e a sua queda a pique. Atravessamos constantemente as barreiras do tempo, e entre as memórias do passado e os ideais do futuro, o presente torna-se inquisitivo, exigente.
Onde está o ideal espiritual e de liberdade dos cavaleiros e iniciados?
Onde está o Amor da Ala dos Namorados e dos Cavaleiros do Amor? Onde está o Templo e o V Império?
Estamos nós a trabalhar suficientemente para isso, para acender e manter o Amor sempre a brilhar?
Velha Goa é ainda um chakra ou centro de forças fundamental para este trabalho?
Deverão vir aqui alguns iniciados reactivar e intensificarem-se?
Eis desafios que as pedras e almas de Velha Goa nos transmitem impulsionadoramente, elos duma mesma Tradição Perene...

                                                       
Visita da Igreja de S. Catarina onde Afonso de Albuquerque em 1510 assistiu e dirigiu do alto a conquista de Goa. Bela.
Depois a igreja de S. Francisco, belíssima, algo orientalizada ao estilo de Constantinopla e com um Espírito Santo clarissimamente irradiando o mistério da fecundidade tropical.
Mas já o museu tem quadros retocados ou restaurados pessimamente, talvez até para diminuírem a pujança dos governadores iniciais. 
A Igreja de S. Caetano tem um poço no centro da igreja, debaixo da cúpula. Há uma cripta onde estão até ossadas de cavaleiros mais modernos. Para a Selma era um local iniciático. Passamos ainda à igreja de S. Catarina, mas só por fora. À saída de Velha Goa, à direita, uma igreja sempre fechada surge aberta, a celebrar a missa da tarde de Domingo e há ainda umas quarenta pessoas. Com os anos irá diminuindo provavelmente, mas nunca se sabe bem dos regionalismos religiosos em povos de milenárias devoções....
Regresso a Nova Goa ou Pangim, ao bairro das Fontainhas, para encontrar e conversar com António de Meneses, óptimo para os seus 80 e tal anos. Um amante extraordinário de Goa, da cultura portuguesa e do amor divino que tem bem acesso em si. 
 Novo dia, [Segunda, 23]. Regresso, ou outra peregrinação, a Velha Goa.
Visita de novo da Torre e interior da igreja dos Agostinhos, hoje só com as paredes e o seu fabuloso lagedo de almas vivas em lápides. Fazemos uma meditação equatorial, no húmido calor-amor.
De António Lopes Mendes,  A Índia Portuguesa, de 1886, desenhos seus.
Visita à igreja do convento das Mónicas onde belas pinturas sobrevivem no arco da porta, e onde o claustro está ainda vivo de devoção, pois o antigo convento de S. Mónica, o único para mulheres em Goa, fundado em 1606, está transformado ou alberga um Instituto Religioso Feminino, com artes e lavores de grande delicadeza em exposição, conservando a sua igreja bela de S. Maria. [O convento partir de 2001 acolherá, num projecto de arquitectura museológica moderna, o Museu de Arte Cristã de Rachol, com cerca de 180 peças de valor.]
                     
Basílica de S. Francisco Xavier. Compreendendo uma das mensagens das pinturas e esculturas florais e arborícolas tão presentes nestas igrejas e altares: da Natureza bruta podem-se extrair flores e frutos maravilhosos. A arte, a cultura, a educação são capazes de fazer brotar a perfeição, a manifestação da Divindade. Esta mensagem está dada sobretudo em quatro pinturas esculpidas no mais alto do altar central. Boa meditação.
Passagem para a igreja da Sé catedral onde estão muitas invocações da Ordem de Cristo, sobretudo pela sua cruz, sobretudo no 1º altar, de Nossa Senhora. Fazemos um boa meditação. 
Depois passeio a pé à volta da igreja de S. Caetano indo pelo arco da Conceição. Entrada pelo arco dos Vice Reis. Os arcos são sempre sinais, símbolos, invocadores da grande passagem da dispersão para a eternidade ou a Unidade, e fazemo-lo por alguns momentos em pé, numa meditação intensa, comungando na eternidade da história aqui vivida e da transcendência imanente dela.
Meditação final na igreja de S. Caetano.
Terça-feira, noite 24 de Outubro
De manhã foi o eclipse do sol e meditei na sua luz e vi-o bem, embora parcialmente. Depois de comprarmos bilhetes para Nova Delhi para quinta-feira, fomos realizar um périplo de igrejas, praias e fortes, com um bom banho em Calengute. Água não fria, ondas amigas e demorei-me em brincadeiras com o mar. 
 Ida a Mahem, à tarde.
Lá chegámos à antiga casa do trisavô materno, o conde de Mahém [D. José Joaquim de Noronha] agora na posse de uns parentes quase não parentes. Estava lá Dona Elsa e visitámos a capela, a casa e conversamos um pouco. Quem conseguirá imaginar a vida familiar, convivial e cultural tão grande que aqui houve? [Algo foi registado por Higino da Costa Paulino e mais detalhadamente pelos seus filhos Francisco, 2º conde Mahem,  e o António de Noronha Paulino, nos seus livros Goa Nossa Terra, 1957, e Relembrando Goa, 1963, além das fotografias preservadas e pequenas descrições por Caetano Gonçalves e outros].
 Bela vista da sala principal sobre uma enorme extensão de arrozais, e um jardim agradável à volta da casa. Dos tempos antigos conservaram dois móveis e na capela um crucifixo, imagem do sacrifício, e as leituras das partes principais da missa em latim, em quadros para o sacerdote ler e que eu recito em voz alta, nomeadamente o início do Evangelho de S. João, "Ao Princípio é o Logos", com votos que chegue aos antepassados e familiares que por aqui passaram, os Noronhas e quem a eles se juntou, como o Fernando Leal, Wolfgango da Silva e Higino da Costa Paulino...
Lago de Mahem, frondoso, calmo e belo. Pagar uma rupia para entrar quem é descendente do dono do local... E regresso, com travessia de ferryboat, percorrendo os 92 kms de estrada entre Pangim e Mahem em quase seis horas e meia de viagem, e 450 rupias para o rapaz de boa vibração.
Quarta-feira 25
Manhã visitámos a Fundação Oriente e Fernando Aires Sá recebe-nos simpaticamente. Fala-se das dificuldades e possibilidades da cultura portuguesa na Índia.
À tarde passo a buscar ao Instituto Menezes Bragança alguns números da sua valiosa revista e depois vou encontrar-me com António de Menezes e sua mulher em sua casa. Com as suas memórias fabulosas de tantas décadas de jornalismo em Goa, conta-me algumas histórias, tal como a do presidente de Moçambique Samora Machel perguntando-lhe: - "Onde estão os goeses", porque só via hindus. Ou ainda nas comemorações do IV centenário da morte de S. Francisco Xavier, em 3 de dezembro de 1952, em Velha Goa, o legado cardinalício do Papa Pio X, ao beijarem-lhe tanto a veste, ter exclamado «Isto nem em Roma", tal a devoção do goês cristão. E compreende-se pois ao fundo já tão místico e devoto dos mestres e deuses do milenário Sanatana Dharma e hinduísmo enxertara-se a religiosidade católica portuguesa, também ela cheia de devoções aos santos e sacerdotes e as faces divinas das Nossas Senhoras e de Jesus. 
Quando António de Menezes dirigia o Jornal da Noite, na década de 50.
 Falo-lhe de algumas questões que o Cristianismo não esclarece perfeitamente, tal a possibilidade das reincarnações, tão aceites, pelos hindus, ou ainda as dimensões e características do Céu e do Inferno, provavelmente muito mais individuais e temporárias que prémios ou castigos para sempre e ele vai a acolhendo atento ou receptivo o que lhe digo num sentido de despertar a sua consciência de espírito imortal para além da morte física
Conto-lhe a história do nosso encontro transfigurante há 17 anos, e ele sorri com o seu amor-bondade íntimo, mas não sentiu tanto como eu senti e vi ao contactar e dialogar fusionalmente, como almas de Luz e no caminho do Bem, com um goês cristão....
"Pisar tudo o que é católico", foi uma expressão usada por António de Menezes para definir uma tendência de mentalidade de certos indianos.
Tem 81 anos, nunca foi a Portugal. Pergunto-lhe se gostaria de ir, se pode ir, mas ele com grande naturalidade ou simplicidade de aceitação, diz-me: - "Mas se Goa é Portugal".
"As pedras falam à alma", sente ainda no coração, quando vai a velha Goa, confidenciar-me-á por fim, e será como sua última mensagem.
Sim, é isso mesmo: um homem de coração, um fiel do Amor, António de Menezes. 
 Quinta manhã: a cor do rio Mandovi, é ainda uma mistura de azul do céu e de castanho do ferro das minas de Mormugão. As bandeiras dos barcos concorrem com as folhas das árvores na tremeluzir o vento, que entra pela janela e acaricia o meu braço. Uma pomba vem esvoaçar no resguardo da janela e os corvos continuam a sua crocitagem incessante.
Preparamo-nos para sair de Goa, e despedimo-nos de manhã duma grande alma portuguesa goesa, Selma de Vieira Velho.» 
Muita luz e amor para a denodada Selma de Vieira Velho e o António de Menezes e mulher, tão afáveis anfitriões em Fontainhas e agora sabe-se lá bem onde... Om, Amen!

O Mundo Russo e a sua Catedral, por Aleksandr Dugin. 13 de Dezembro de 2023. Versão portuguesa.

Clarificação da universalidade do Mundo Russo, pelo pai da filósofa e mártir Daria Dugina Platonova (15-12-1992 a 20-2-2022).

       O Mundo Russo e a sua Catedral, por Aleksandr Dugin.

«No limiar do congresso do jubileu do Conselho Mundial do Povo Russo no Kremlin, Moscovo, dedicado ao Mundo Russo, é necessário abordar o próprio conceito de “Mundo Russo” com um pouco mais de detalhe.
A própria designação
de "Mundo Russo" causou muita controvérsia histórica e política acalorada. Quase todos tentaram interpretá-la de forma arbitrária e, dependendo da posição de cada autor, alteravam o seu verdadeiro significado. Alguns transformaram-na numa caricatura, outros, pelo contrário, glorificaram-na de todas as formas possíveis, mas muitas vezes em prejuízo do conteúdo. 

                           
Em primeiro lugar, deve fazer-se a distinção mais importante: o Mundo Russo não significa a mesma coisa que a Federação Russa como um Estado-nação. Isto provavelmente é reconhecido por todos. Mas alguns acreditam que o Mundo Russo é mais amplo e maior do que a Rússia, outros acreditam que ele é mais restrito e localizado, e finalmente outros  colocam-no numa posição intermédia
É claro que a base do Mundo Russo é a Rússia como um Estado, e isto vê-se claramente no facto de que o próprio Presidente da Federação Russa participar dos acontecimentos mais significativos do Congresso do Povo Russo, transformando, realmente, essas reuniões nacionais solenes e totalmente voluntárias numa espécie análoga ao Zemsky Sobor [Parlamento dos estados russos nos séc. XVI-XVII]. Mas o mundo russo é mais amplo do que apenas o Estado, e o povo russo é maior do que a totalidade dos cidadãos russos. Nesse sentido, o mundo russo é formado em torno da Rússia, e o seu Presidente e o Primeiro Hierarca da Igreja Ortodoxa Russa, são símbolos e eixos de toda a civilização, um imã de atração e o núcleo de uma comunidade complexa e não linear de povos, culturas e cidadãos individuais.

                              
Vale a pena mencionar duas outras interpretações – não verdadeiras, mas bastante comuns – do Mundo Russo, porque qualquer conceito adquire [melhor o] seu verdadeiro significado quando é comparado com o que não deveria ser entendido como tal.
Assim, sob [a designação de] Mundo Russo nunca se deve  entender apenas a totalidade dos grão-russos étnicos, ou seja, os eslavos orientais, concentrados historicamente nas regiões orientais da Rússia Antiga, onde Vladimir, mais tarde a Rus moscovita, foi formada e para onde, em determinado momento, foi transferida a capital, juntamente com o trono grão-ducal e a catedral metropolitana.

                                                   
                 Fotografia de: https://brewminate.com/the-princes-of-rus-varangians-to-the-rise-of-moscow/
Essa interpretação distorce completamente o sentido inicial, excluindo do mundo russo os russos ocidentais (bielorrussos e malorussos) e todas as etnias não eslavas da própria Rússia. Com rigor, praticamente ninguém entende o "Mundo Russo" dessa forma, mas seus oponentes, ao contrário, tentam distorcer artificialmente o significado e dar a essa expressão um sentido totalmente inadequado. Portanto, não será supérfluo enfatizar mais uma vez que, sob o “Mundo Russo”, estão compreendidos todos os eslavos orientais (e, portanto, não apenas os grão-russos, mas também os bielorrussos e malorussos), bem como todos os outros grupos étnicos que, em um momento ou outro, associaram o seu destino ao povo russo. Portanto, o Mundo Russo pode incluir, por exemplo, georgianos, arménios ou azeris, e que, embora estejam atualmente fora da Rússia, mantêm a sua crença na proximidade histórica e no parentesco espiritual com os russos.

De Ivan Bilibin (1876-1942) para um dos contos populares russos que ilustrou genialmente

Aqui, no entanto, o principal não é se esses ou aqueles grupos étnicos se consideram parte do Mundo Russo, pois isso pode mudar e depender de muitos fatores, inclusive alguns podem-se considerar parte dele, outros não, e outros não se consideram parte dele agora, mas amanhã o farão. O principal é que o próprio Mundo Russo está sempre aberto aos povos irmãos. É importante que os próprios russos estejam prontos para considerar como parte do Mundo Russo aqueles que o desejam, lutam por ele e compartilham connosco nosso destino comum. E essa abertura não depende do momento histórico ou do clima histórico. Quando falamos sobre o Mundo Russo, essa abertura é um axioma fundamental. Sem ela, o Mundo Russo não é válido. Esse é seu eixo semântico profundo. O Mundo Russo não exclui, mas apenas inclui. Podemos chamá-lo pelo termo ocidental de “inclusão”, mas estamos falando apenas de uma inclusão especial – sobre a inclusão russa e, de fato, sobre o amor russo, sem o qual não existe um russo.
Portanto, o Mundo Russo não pode, de forma alguma, ser mais restrito do que a Rússia, mas apenas mais amplo.
E, por fim, seria errado identificar o Mundo Russo com os três ramos da tribo eslava oriental, ou seja, apenas com os grão-russos, bielorrussos e malorussos. Sim, nós, os três povos eslavos orientais, formamos o núcleo do Mundo Russo. Mas isso não significa que outros povos não eslavos não sejam sua parte orgânica e integral.
Assim, tendo fixado a interpretação correta do Mundo Russo e rejeitado as erradas, podemos continuar pensando sobre ele.
A pergunta que surge imediatamente é: quais são os limites do Mundo Russo? Depois de defini-las, fica claro que essas fronteiras não podem ser nem étnicas, nem estatais, nem confessionais. Essas são as fronteiras da civilização, e elas não são lineares e estritamente fixas. Como podemos colocar o Espírito, a cultura e a consciência dentro de limites físicos rígidos? Mas, ao mesmo tempo, quando nos afastamos muito do centro do Mundo Russo, não podemos deixar de perceber que em algum momento nos encontramos em um território estrangeiro, no espaço de outra civilização. Por exemplo, europeia ocidental, islâmica ou chinesa. E não são apenas o idioma, o fenótipo e os costumes da população local que são importantes aqui. Saímos dos limites do Mundo Russo; a civilização se desintegrou, estamos em um novo círculo cultural diferente do nosso. 
Darya Dugina chamou a atenção para o conceito de “fronteira”. Não é uma fronteira linear, mas uma faixa intermediária, um território neutro ou de ninguém que separa uma civilização da outra. A propriedade da fronteira é mudar constantemente, deslocando-se em uma direção ou outra. Além disso, a fronteira tem vida própria; seu território é um local de intensa troca de códigos culturais, onde duas ou mais identidades convergem, entram em conflito, divergem e voltam a dialogar. Darya vivenciou a fronteira na Novorrússia, enquanto viajava pelos novos territórios. Ela capturou com astúcia a própria vida dessa área, onde o destino do mundo russo está sendo decidido hoje. Sem dúvida, a Ucrânia e Malorossiya [a pequena Rússia, abrangendo Donbas e a Crimeia] pertencem ao mundo russo. Historicamente, ela é seu berço. Porém, mais tarde, quando o centro se deslocou para o leste, ela própria se transformou em uma fronteira civilizacional, tornando-se uma zona intermediária entre a Rússia eurasiática e a Europa. Daí a interseção de influências – no idioma (influência do polaco), na religião (influência do catolicismo), na cultura (influência do liberalismo e do nacionalismo, profundamente estranhos ao código russo). Assim, a fronteira ucraniana, por sua vez, tornou-se uma área de tensão entre dois centros, polos de atração, entre o Mundo Russo e o Ocidente Europeu. Isso foi claramente observado na política eleitoral da Ucrânia (quando ainda havia eleições no país) e levou a uma terrível guerra fratricida. 
                              
Outro exemplo das fronteiras do mundo russo é a irmã Belarus, [Bielorrússia, a Rússia Branca]. Seu povo também foi separado de nós, os grão-russos, por um tempo, e tornou-se parte do Grão-Ducado da Lituânia e, depois, do Estado Polaco. Com toda a originalidade e autenticidade da identidade Bielorrussa estabelecida, as peculiaridades do idioma e da cultura, essa fronteira não foi dividida em dois polos de atração. Com total soberania e independência, Belarus é uma parte orgânica e integral do Mundo Russo, permanecendo um estado totalmente independente. 
Portanto, o Mundo Russo não significa necessariamente nem absorção, nem guerra, nem a presença ou ausência de fronteiras estatais. Se a fronteira ucraniana se comportasse da mesma forma que a fronteira bielorrussa, ninguém atacaria a integridade territorial da Ucrânia. O Mundo Russo é aberto e pacífico, pronto para a amizade e a parceria em vários aspectos. Mas não pode responder a atos de agressão direta, humilhação e russofobia.
Uma vez o Presidente Putin respondeu à pergunta sobre onde a Rússia termina e, nesse caso, “Rússia” significava o Mundo Russo: lá, onde um russo pode chegar, onde seremos forçados a parar. E é bastante óbvio que não pararemos antes de restaurar a integridade de nossas terras do “Mundo Russo”; os contornos naturais e as frentes harmoniosas (embora complexas) de nossa civilização.
O Mundo Russo está baseado na Ideia Russa . E essa ideia, é claro, tem suas próprias características peculiares e únicas. A sua construção é determinada por valores tradicionais, absorvendo a experiência histórica do povo. A Ideia não pode ser inventada ou desenvolvida, ela cresce das profundezas de nossa consciência social, amadurece nas profundezas do povo, busca uma saída nas percepções e obras-primas de gênios [tal em Portugal, Antero de Quental, tão adepto e poeta da Ideia], líderes militares, governantes, santos, ascetas, trabalhadores, famílias simples. A Ideia Russa se aplica a todos: as famílias russas que respondem ao seu chamado com fertilidade e trabalho criativo; o nosso exército, que defende as fronteiras da pátria à custa de suas vidas; o aparato estatal, que é chamado a servir o país com base na ética e na lealdade; o clero, não apenas orando incessantemente por prosperidade e vitória, mas também esclarecendo incansavelmente o povo e educando-o nos fundamentos da moralidade cristã [e da auto-realização espiritual e religação Divina, como o fazem os grande starets]; os governantes que são chamados a conduzir o Estado à glória, prosperidade e grandeza. 
São Serafim de Sarov, um dos starets ou mestres mais venerados. 1759-1833.
O Mundo Russo é aquele ideal que está sempre acima de nós, formando um horizonte de sonhos, aspiração e vontade.
E, finalmente, o que significa o Mundo Russo nas Relações Internacionais? Aqui, o conceito adquire um peso ainda mais significativo. O Mundo Russo é um dos polos do mundo multipolar. Ele pode ser unido em um Estado (como a China ou a Índia) ou representar vários Estados independentes, unidos pela história, cultura e valores (como os países do mundo islâmico). Mas, em qualquer caso, é uma civilização estatal com sua própria identidade original e distinta. A ordem mundial multipolar é construída sobre o diálogo de tais “mundos”, Estados-Civilizações. E o Ocidente, nesse contexto, não deve mais ser visto como portador de valores e normas universais, universalmente obrigatórios para todos os povos e Estados do mundo. O Ocidente e os países da NATO são um dos mundos junto com outros, uma civilização de Estados entre outras – Rússia, China, Índia, bloco islâmico, África e América Latina. O mundo Universal é formado por um conjunto de polos separados – grandes espaços, civilizações e frentes, separando-os e conectando-os simultaneamente. É uma construção delicada que exige delicadeza, subtileza, respeito mútuo, tacto, familiaridade com os valores do Outro, mas só assim é possível construir uma ordem mundial verdadeiramente justa. E nessa ordem mundial, é o Mundo Russo, e não apenas a Rússia como Estado, que é um polo de pleno direito, o centro de integração, uma entidade civilizacional única, baseada em seus próprios valores tradicionais, que podem coincidir em parte e diferir em parte dos valores de outras civilizações. E ninguém pode dizer de fora o que deve ser e o que não deve ser para o Mundo Russo. Isso é decidido apenas pelos seus povos, a sua história, o seu espírito, o seu caminho na História.
Todos esses são os principais tópicos do Conselho Mundial do Povo Russo dedicado ao Mundo Russo.

Fonte: Geopolitika.ru. Artigo de Aleksandr Dugin traduzido pela Nova Rússia, do Brasil, e aperfeiçoado por mim

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Diários da Índia. Diálogo no Nepal com um swami sobre a individualidade humana, junto aos templos e cais de cremação de Pashupatinath.

1995. Nepal. Junho. 
Meditação matinal de quarta feira bastante luminosa.
Inventar ou dedilhar durante algum tempo o meu mantra pessoal. Om Sri S. K. prema prajna namah. Para cada chakra, ou centro de forças, uma palavra...
Luz (...) bastante forte e prolongada. Mas donde vem? Do chakra da cabeça?
Ligeira visão de água, quando consegui abandonar um pouco mais o ego e suas coisas ou preocupações. 
 (...)   
                            
Ida à tarde ao rio junto ao templo de Pashupatinath (dedicado a esta manifestação ou forma antiquíssima de Shiva, e logo muito venerado no Hinduísmo) e às habitações ( ashrams e kutirs) de yogis e aos cais (gaths) de cremação .
Conversa mais prolongada com o Swami Sankarananda Bharati, 80 anos de idade.
Veio estudar gramática sânscrita e filosófica para o Nepal e sente mais amor a Deus aqui que na Índia. Recita-me os seus mantras Shivaistas [tais como o Om Namo Shivaya e outros com bijas (sons-raízes) especiais.]
Para ele, só existe um Atman, um espírito-alma, uma só corrente de Luz. Nomes diferentes mas uma só essência. Instado por mim se existe em cada pessoa um Atman, mantém-se afirmativo na sua unicidade ou não dualidade: um só universal...
[Como o seu nome indica ele é um monge ou swami, da tradição Vedanta, ou a culminância dos Vedas, que tomou o nome de Shankara, o mestre principal da linha Advaita vedanta, a não dual: existe só um espírito, uma só consciência, uma unidade, e não há dualidade entre o ser humano e o Espírito ou a Divindade. Em todos os seres um único real ou verdadeiro Eu ou Espírito e é o Divino. Ananda significa beatitude, felicidade, e muitos swamis puseram no fim do seu nome esta valiosa e bela palavra. Bharati, que
significa amante da Luz do Conhecimento, é uma das cinco  linhas de monges ou swamis no Vedanta.. Um dos meus mestres na Índia foi Shudhananda Bharati, um yogi poeta.  Swami Shankarananda desvendou-se no diálogo como um advaita, não-dual, pois há os swamis dvaitas, os duais, que admitem a existência dum espírito individual em cada ser, o qual pode e deve religar-se à Divindade e até numa relação pessoal amorosa.] 
Sorri [quando o interrogo] sobre o Kundalini [a energia subtil da coluna vertebral] e os chakras [ os centros de força ao longo dela] e faz um gesto que eu interpreto como isso agora está estabilizado, [mas também pode ser um sinal de acalme-se, isso não é importante].
Vive numa pequena divisão ou cela, dentro duma stupa, a edificação típica do budismo, sobre o rio Bagmati, onde se incineram os mortos [um rio muito sagrado na tradição nepalesa, sendo auspiciosa a cremação e o banho nele, tal como na Índia se considera em relação ao rio Ganges]. Aqui afluem os vivos para adorar os imortais [seja os deuses nos templos, seja os gurus ou mestres]. Macacos, cães e sadhus [renunciantes peregrinos] são a fauna local, contrastando com os turistas e os peregrinos [seja ao rio, aos templos ou aos ritos crematórios encaminhadores [alguns acreditam que quem for cremado aqui não terá de reincarnar mais, em natural, mas sem que isso signifique iluminação ou libertação das limitações pessoais...].
É um local poderoso pela proximidade dos Himalaias, pela altitude a que está, pela sua longa história de sacralização bem patente na arquitectura e arte, pelo contraste da vida e da morte, pelo rio que flui poderoso e psicopompo e pelas possibilidades de encontros, diálogos e meditações valiosas.

Diários da Índia. 1995. Encontro com um Baul, de Bengala. Dois poemas espirituais.

Bauls, a melhor imagem que encontrei na net para ilustrar os poemas, e extraída duma excelente aproximação a esta tradição místico-poética de Amor e elevada realização espiritual libertadora, com linhas tântricas, vaishnavas e shivaitas: http://www.sutrajournal.com/vaishnava-bauls-of-birbhum-bengal-by-trishula-das
«1995, Junho, Delhi, 22 horas. Hotel [55] chunga, janelas sem panos, acordar às 5 da manhã.
                                                          
Encontro na viagem [de Calcutá para Deli] um Baul [yogi, místico, devoto, poeta e músico itinerante, sobretudo na Bengala] que me dá a morada do seu Guru e canta algumas canções no meio da macacada geral; na realidade, algumas pessoas sempre a gozarem ou não quietas, parecem mesmo descendentes de macacos.


«Please God. Teach me
To be one with thee
Without diet, discipline
or anything,
Just my heart full of Thee.

There is a bird inside me.
He is crying, crying, crying
for liberation
in the middle of the night.
Oh, I don't see any bird like me,
Oh, God, can you be one with me?

I am a Baul, I am a Baul.
Bauls are the ones who sing the God within. 

"Por favor, Deus. Ensina-me
A ser um contigo
Sem dieta, sem disciplina
ou o quer que seja,
Apenas o meu coração cheio de Ti.

Há um pássaro dentro de mim.
Ele está a clamar, a gritar, a chorar
pela libertação
no meio da noite.
Oh, não vejo nenhum pássaro como eu,
Oh Deus, podeis ser um comigo?

Eu sou um Baul, eu sou um Baul.
Os Bauls são os que cantam a Divindade interna.

****---------****
I am full of Love.
No, says the inner Pedro,
You are just a mirror,
look inside.

No, I feel something in heart
so gentle and subtle
That I can not decide
but its is there, it is there.
Wilt thou come to me,
O Lord of my Life?

No, says the inner Pedro,
awaken thy own identity,
make it raise strongly
to the top of the mountain.

Delhi, a place of power.
Great Beings were here.
Prana is seen everywhere.
We don't have to close the eyes
to meditate in the Infinite. »

Estou cheio de Amor.
Não, diz o Pedro interior,
Tu és apenas um espelho,
olha para dentro.

Não, eu sinto algo no coração
tão suave e subtil
Que não consigo decidir,
mas está lá, está lá.
Virás ter comigo,
Senhor da minha vida?

Não, diz o Pedro interior,
desperta a tua própria identidade,
faz com que ela se erga com força
até ao cimo da montanha.

Deli, um local de  poder.
Grandes Seres estiveram aqui.
Prana [energia cósmica] vê-se em toda a parte.
Não temos de fechar os olhos
para meditar no Infinito.»

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

"Porque se matou Antero?" Soneto do 1º Visc. de Carnaxide. E F. Pessoa, Madame Brouillard e Beatriz Delgado, no comentário de Pedro Teixeira da Mota.

O 1º Visconde de Carnaxide, António Baptista de Sousa, em 1915, pouco antes de receber o chamamento da Musa poética, ou do seu Génio...

O 1º Visconde de Carnaxide, jurista e publicista, gerou um valioso soneto acerca da causa do suicídio de Antero, religando-o à Divindade, e encontramo-lo incluído na sua terceira obra poética, intitulada Em Pleno Inverno, publicada em Lisboa pela Parceria A. M. Pereira, em 1923, num in-8º de 323 páginas, com cinquenta e oito de prefácio, pois partilha nelas as críticas de jornais à sua poesia e publica as respostas a duas delas negativas, e em especial  à de Lourenço Cayola, no Diário de Noticias, e que se recusara publicá-las. Nelas rebate as acusações: que as "composições tratam exclusivamente de assuntos frios, vulgares, sem interesse", que «não há uma nota de lirismo ou de ternura em nenhum delas para que a obra seja considerada poética» e que na «técnica havia defeitos, tais elisões abusivas», de facto juízos desagradáveis para o jurista e poeta que as contestara esforçadamente em três cartas, pugnando pelo direito à resposta, mas que Augusto de Castro, director e Lourenço Cayola, redactor e crítico, se opuseram, talvez até por ser um jornal importante e que não convinha mostrar fraquezas. 

É possível ainda que Lourenço Cayola  apreciasse dar umas ferroadas a recém vocação poética de António Baptista de Sousa (1847-1935), natural de Vila Real, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra e logo advogado e jornalista na sua terra natal, nomeadamente redactor do periódico bi-semanal Progresso do Norte (para onde escreviam os amigos bispo de Viseu e chefe do partido Reformista Alves Martins, Veiga Barão e Adriano Antero), e que veio a ser ainda funcionário judicial,  deputado de 1880 a 1890 e mesmo Par do Reino em 1894, sendo feito Visconde em 1898 por D. Carlos. Foi ainda administrador de várias empresas e Sócio da Academia das Ciências e de academias de Espanha e Venezuela.  Pois já com 76 anos de idade, ainda Director da conceituada Revista do Direito, com tal passado, como se atrever a ser poeta? 

Que o Visconde estava ciente da admiração que causava essa nova faceta do seu génio, e o título do livro reflecte-o, Em Pleno Inverno, tal como os dois anteriores, ao intitularem-se No Outono da Vida, de 1920, e No Fim do Outono, dado à luz em 1922, este sendo o visado por Lourenço de Cayola. Anote-se que a veia poética, que mesmo a ele o surpreendera, continuaria com um Quarto Livro de Versos, de 1928 e, finalmente, Canto de Cisne, Quinto e Último Livro de Versos, já de 1932.  Anote-se que desincarnaria no ano de 1935, tal como Fernando Pessoa (com 41 anos menos de vida...) e que até o menciona numa lista de nomes de 205 pessoas importantes às quais Fernando Pessoa enviou (ou listou para enviar...) um ou os dois  panfletos (Aviso por causa da Moral, Sobre um Manifesto de Estudantes) de protesto contra a censura e destruição de dois livros considerados imorais por uma associação de estudantes católicos e que as autoridades aprovaram.

No Fim do Outono, após esse longo prefácio de jurista poeta defendendo o Direito à Resposta, tanto mais que no meio dos vários livros jurídicos que gerara, entre os quais o interessantíssimo As Superstições e o Crime, estava o pioneiro Tratado da Propriedade Literária e Artística (Direito interno, Comparado e Internacional), encontramos as poesias divididas em Quadros Psicológicos, com 62 poemas, e Musa Cómica, com 41, concluindo com  onze páginas de anotações da jurisprudência do Direito de Resposta, na Imprensa. Entre os sonetos destacarei os consagrados a Antero de Quental, a João de Deus e à famosa quiromante Madame Brouillard (1852-1925), transmontana como ele e benemérita, num soneto algo cómico, pois elogiando a sua sagacidade psicológica e filantropia, ao derramar os proveitos das consultas nos mais necessitados da sua terra natal, pede  que na estátua que lhe erguerem em Vila Real seja posta esta inscrição: «Grande bruxa aqui gerada, que explorou meia Lisboa». Anote-se um artigo no blogue que a refere, a propósito de Beatriz Delgado e de Fernando Pessoa ter registado num  diário de 1915 vontade de a consultar. E que anos mais tarde, em 1941, Ramada Curto, Do Diário de José Maria, mencionar "a saudosa Madame Brouillard". :
https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2022/11/beatriz-delgado-uma-poetisa-quiromante.html

 Em geral, a sua poesia manifesta um bom discernimento psicológico, bondade e ironia, e há certamente lirismo e elevação constantes. Sirva de exemplo o soneto Telepatia Celeste, em que vem a considerar que a alegria e paz no nosso estado de consciência é um sinal de reconhecimento enviado do mundo divino.

Mas passemos ao soneto anteriano, a causa desta ressurreição fraterna do arguto sábio Visconde de Carnaxide:

                                                       

                                               Porque se matou Anthero?                                                               ------------------

................................................
Amortalhei na fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento...
Só me falta saber se Deus existe!

                                                          ANTHERO - Sonetos. [Convertido]

«Nascera co' a visão para devassar
os humanos problemas transcendentes,
mas foram seus esforços impotentes,
quando os altos mistérios quis sondar.

Depois de não poder realizar
do génio os anseios mais ardentes,
o vate com os seus cantos já dolentes
par'cera todo calmo descansar.

Mas tanto o faz a dúvida sofrer,
(e sem que em dia algum ele desista
de, embora sempre em vão, a resolver);

Que ao dar-se a morte teve só em vista
partir sem mais demora p'ra saber,
se era verdade ou não que Deus existe.» 

Este soneto de um ser formado em Direito como Antero de Quental e como ele poeta, é uma bela tentativa de compreender Antero na sua essência, demanda e morte voluntária. Que  valiosas caracterizações e intuições do ser de Antero de Quental o Visconde Carnaxide concebe ou alcança e nos transmite?

Ter nascido com visão para os grandes mistérios. Ter-se esforçado por realizar os anseios mais ardentes do seu génio, no fundo ser fiel a si mesmo, ao seu dever intrínseco, o swadharma da tradição indiana. O desprender-se e aquietar-se por algum tempo face ao mudo enigma da vida, tangendo menos dramaticamente. E por fim, com a dúvida continuando a desassossegá-lo, resolve matar-se para mais cedo resolver esse mistério maior da existência ou não de Deus.

Eis-nos diante de um raciocínio correcto e possível, mas que não é porém tão evidente. Eis-nos diante de uma explicação religiosa, ou mesmo justificação, da sua morte: foi vítima do seu anseio de conhecer Deus, ou de saber se ele existe ou não, não conseguindo aguentar a pressão da dúvida que o angustiava...

Mas será que a Ordem do Universo, divina, o Logos spermatikoi, derramado ou substancial ao Cosmos poderá fazer germinar nas almas humanas tal anseio de conhecimento tão forte que leve a pessoa a matar-se ao não conseguir realizá-lo, até para se libertar dum estado de dúvida angustioso, depressivo? 

Que em Antero havia tristeza, uma certa falta de plenitude, que poderia em parte provir da sua ignorância do mistério divino e logo de uma separação ou exclusão da correnteza energética divina, é possível, é natural, é um factor a ter em conta no seu tónus de amor à vida e de plenitude espiritual, sobretudo para quem tinha um fundo místico forte, que fora depois muito misturado com diversas correntes contraditórias mais agnósticas ou impessoais, tal o Budismo com a sua negação da Divindade...

Se perguntarmos qual era o grau de aceitação ou melhor da admissão existência de Deus em Antero não é fácil de determinar. Ou qual o grau de alegria e de estímulo a viver que ele sentiria em si, em média? Seria 20%, 40%, 60%, talvez...

Ou ainda, qual o grau de capacidade e premência de resolver tal questão no líder da Geração de 70  que após ter organizado e publicitado os seus Sonetos completos em 1886 e encerrado esse capítulo ou fase da sua vida, e já tendo dado finalmente à luz, em 1890, as suas ideias filosóficas nos números 2 e 3 da Revista de Portugal, ainda que de modo abreviado e no contexto do pensamento filosófico segunda metade do séc. XIX, e tendo ainda de novo servido de líder, da Liga Patriótica do Norte contra o imperialismo inglês,  sofria física e psiquicamente e dava-se conta que a sua tentativa de aclimatação à ilha natal falhava face ao capacete depressivo climatérico e à fatalidade de perder o contacto com as duas crianças que educara.

Embora se saiba que ainda teve boas conversas com alguns amigos nesses meses finais, não encontramos as questões metafísicas ou mais simplesmente o mistério de Deus mencionado uma vez que seja nas suas cartas, e o que observamos mais é a sua pouca resistência a «esses ares doentios, que o Charcot tanto condenava, e que efeito me torturam, atacando-me sem descanso os centros nervosos», como escreve a Joaquim de Araújo no final de Julho; ou no final de Agosto a Joaquim Oliveira Martins:«Procurava o definitivo e afinal ainda agravei o instável e provisório que tanto me assustava. Paciência. Fui talvez imprudente, contei demais com as minhas forças, seduziu-me a ideia de, depois de tantos anos de excentricidade, acabar como toda a gente. Mas vejo que a excentricidade tinha de ser definitiva, submeto-me a ela, agravada por mil cuidados. Peço à minha razão que comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem mas de que eles não parecem susceptíveis. (...)»

E assim foi, sob o peso atmosférico, depressivo, desvitalizante, os nervos de Antero claudicaram e puxaram o dedo que os libertava de tal sofrimento acumulado desde há muito e agravado circunstancialmente por esse anoitecer abafado e pela separação das suas discípulazinhas Beatriz e Albertina..

Mas como sabermos ao certo acerca do mistério magno da existência de Deus, que o Visconde Carnaxide ergue como causa última no soneto a Antero? Quem conseguirá intuir o conteúdo psíquico e dramáticos dessas horas finais de Antero, quando  se vai despedindo das pessoas e perambula pela pacata cidade até se sentar no banco? Que pensamentos e sentimentos o acometiam, e que ele aceitava ou rechaçava? Que seres no invisível o observavam ou acompanharam?

Sob o signo da Esperança! Como viu a sua vida, na espiral da saída do corpo?

Como um ser educado na matriz católica e cristã, e até do culto do Espírito Santo, cremos que Antero de Quental ter-se-á certamente antes de se matar, curvado e  endereçado ao mistério supremo, chamemos-lhe Deus, Absoluto, Nirvana, Paz, Infinito, irmã Morte. Quando, com que intensidade, quanto tempo, com que força impulsionadora para a sua elevação para fora do corpo físico e entrada nos mundos subtis e espirituais, só podemos imaginar ou, que seja, meditar empaticamente. Talvez por isso ele dissera ou escrevera mais de uma vez (e já abordámos no blogue), na linha da tradição grega dos mistérios: Morrer é ser Iniciado

Joaquim de Araújo (Penafiel, 16-VI-1858 - Sintra, 11-V-1917)
Poucos dias depois desse 11 de Setembro, Joaquim de Araújo, um dos seus mais entusiastas discípulos, consagrava-lhe em livrinho um belíssimo poema ao seu destino de caminhante no além ou céu, Na Morte de Antero, tomando como epígrafe, e interrogando e meditando, o Morrer é ser Iniciado
 (https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/09/na-morte-de-antero-joaquim-de-araujo.html)

Que nós saibamos ir morrendo em vida e ressuscitando, com  Antero de Quental e Joaquim de Araújo, o Visconde de Carnaxide e Fernando Pessoa, ou ainda a Madame Brouillard e Beatriz Delgado, para sermos todos cada vez mais iniciados e abençoados no Espírito Divino...