sábado, 8 de abril de 2023

Um dito de Jesus acerca da possibilidade de localização, realização e reconhecimento do reino dos Céus....

Jesus, visto espiritualmente por Bô Yin Râ, de quem recentemente traduzi e imprimi o seu livro A Oração
 «Disse Jesus: Se vos disserem, aqueles que atraem o vosso coração: eis, o Reino está no céu, então as aves antecederam-vos no céu; se vos disserem: ele está no mar, então os peixes antecederam-vos. Mas o Reino está no vosso interior e ele está no vosso exterior. Quando vos reconhecerdes, então sereis conhecidos, e sabereis que vós sois os filhos e filhas do Pai Vivo. Mas se não vos reconhecerdes, então estareis numa pobreza, e sereis vós próprios a pobreza.»
Este dito de Jesus, o terceiro logion do Evangelho de Tomé, que corre nos vários evangelhos com diferenças, Mateus 24, 26-27, Marcos 13, 5-7, e Lucas, 17, 21, é-nos apresentado em Tomé de um modo bastante mais interpelante, directo, interiorizante, espiritual.
Por exemplo em Mateus, tal ensinamento que seria válido a todo o momento, foi encaixado e limitado numa história coisificante e apocalíptica do tempo do Fim, com grande tribulações, e com uma nova vinda exterior de Jesus e para a qual há que discernir os falsos Cristos e profetas: «Se portanto vos disserem: Ei-lo no deserto, não ides até lá. Ei-lo em lugares retirados, não creiais. Pois assim como o relâmpago parte do Oriente e brilha até ao poente assim será a vinda do Filho do homem.» Como vemos, um ensinamento de auto-conhecimento foi transformado numa espera exterior apocalíptica.
Marcos, 13, 5-7, repete quase o mesmo, e é só em Lucas, que este dito sobreviveu, ainda que mais limitado que na versão do Evangelho de Tomé. Oiçamo-lo em 17, 20-21: «Interrogado pelos Fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, Jesus respondeu-lhes:«A vinda do reino de Deus não é observável. Não se poderá dizer: "Ei-lo aqui, ei-lo ali", pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós»
Neste ensinamento Jesus diz-nos então que o mundo espiritual, o reino de Deus é omnipresente, está já presente e no meio de nós, mas que temos de o reconhecer, descobrir, entrar, sentir interiormente pois é dentro de nós que encontramos o Espírito e nos reconhecemos como Espíritos luminosos. E neste sentido de uma prática meditativa de gnose, Jesus explicou-nos em Mateus, 6, 22: «se o teu olho ou visão for simples ou unificada, todo o teu ser será luminoso».
Temos portanto de separar ou discernir constantemente o trigo do joio, o verdadeiro e o falso (nomeadamente nas tão na moda narrativas e notícias falsas ou manipuladoras), o apropriado e o não apropriado, e assim controlar e dominar as nossas forças físicas, instintivas e anímicas, de modo a conhecermos a nossa identidade espiritual, ou seja, a ver-nos, sentir-nos e comportar-nos como espíritos dotados de alma e corpo, antes que do mundo espiritual divino nos possam reconhecer e abençoar.
Estamos mais pobres ou sofredores se não tentamos  identificar-nos como filhos e filhas da Divindade; e se falta a consciência desta riqueza no nosso peito no dia a dia, andaremos constantemente a mendigar excitações, relações, consumos e satisfações exteriores e logo frequentemente influenciados, desviados, frustrados.
Nesta identidade está implicado darmos aos outros da nossa riqueza, porque se não damos é porque ainda estamos carenciados, ou seja desprovidos da plenitude, que o contacto com o espírito ou a presença espiritual e pelo qual o fogo do seu amor nos enche e irradia.
Não andemos então sempre à procura da maneira de ganhar dinheiro, nem recuses a ajuda ou o conselho a quem nos pede, não invejemos ou deixemos ir abaixo com a riqueza ou os conhecimentos dos outros, mas antes nos alegremos na riqueza comum da fraternidade humana, pois o teu tesouro está no coração, na gratidão e na comunhão: a filiação divina, a consciência de seres um Espírito, um com o Espírito, e um canal para o Amor e o Ser Divino.
O consumismo e a violência dos nossos dias derivam, para além de várias causas psico-sociais de sociedades extremamente desigualitárias e de classes políticas demasiado vendidas à oligarquia mundial, das pessoas terem perdido a consciência de serem filhos ou filhas de Deus, estando pouco ligadas ao Espírito, interno ou imanente, mas também omnipresente enquanto o substracto Divino na Natureza e nas suas maravilhas.
Saibamos pois sentir, amar, ou mesmo clamar mais ardentemente pela Divindade, ou usando a expressão de Jesus, do Pai que para outros é mais Mãe, e também invocar o Mestre, os Mestres, os Anjos, com a confiança e a certeza que face à nossa oração receberemos a ajuda, a inspiração, a força necessárias.
Se considerarmos que o Caminho para o qual o Mestre apela e transmite é o da realização anímico-espiritual e portanto a Unidade de todos os seres sentida e vivenciada, então a religião, a filosofia, a política, a arte e a ciência são vistas e sentidas como instrumentos de criatividade e de melhoria da humanidade no todo da Unidade, então compreendemos que quem demanda o caminho do conhecimento, da harmonia e do bem consegue encontrar o Reino ou Presença Divina, no interior e exterior, e pode maravilhar-se ou contribuir para ele nas mais diversas áreas da actividade humana. Mas também sabemos como a Humanidade tem abusado ou mal utilizado os bens do planeta e como o que reina frequentemente é mais a negatividade, a violência, o mal ou seja, o ódio e a crueldade algo que praticamente não vemos na natureza, apesar de toda a violência que existe nela na luta pela sobrevivência. Morte ao ódio, à crueldade, ao sadismo é então uma tarefa bem indispensável da humanidade, a par do desabrochamento da empatia e do amor sábio.
O mundo espiritual e Divino é vivenciável na unidade harmoniosa dos mundos interiores e exteriores, a que podemos ter acesso ou chegar por uma vida correcta e criativa, pelos sentimentos, emoções e pensamentos bem orientados, e pela visão da luz do Espírito e a escuta da sua subtil voz ou vibração que, infelizmente, no tipo de vida apressada, barulhenta e dispersante que tantos adoptam ou a que se sujeitam, quase que não se consegue ouvir, nomeadamente nas cidades em que praticamente de tantos em tantos metros há fontes de ruído nocturno exorbitantes e desarmonizantes.
Outro dos meios que tanto a sociedade como a nossa ignorância ou pobreza usam como um ardil ou uma desculpa para as pessoas se manterem fora da auto-consciência espiritual ou Reino é a sugestão de que somos fracos, pobres, animais, sem género nem identidade. Servem tais manipulações enfraquecedoras do poder natural da nossa identidade e individualidade única, para deixar-nos arrastar pelas modas, tais as trangêndricas e transhumanistas (que são mais infrahumanistas) ou ficar-nos por hábitos, ou ainda tentarmos gozar e ganhar o mais possível, esquecendo a nossa identidade de espíritos emanados da Divindade e em peregrinação missão nesta vida (o swadharma), e logo diminuindo ou abafando o desabrochamento do potencial criativo, espiritual, fraterno e justo de todos...
Nestes tempos em que são tantas as forças económicas, políticas, sociais e mediáticas que tentam manipular, enfraquecer e controlar a integralidade de cada ser vivo e da Humanidade há que preservarmos sem desânimos maiores numa prática orativa ou meditativa e um modo de vida mais natural, ecológico e ético, que nos permita ter a consciência de que dentro e fora de nós está o Reino ou o Mundo Espiritual e Divino e logo sentir-nos mais plenos do sagrado, felizes e abençoadores.
Pintura de Bô Yin Râ

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Disse Jesus: "Vim lançar na Terra divisões, fogo, espada, guerra". Actualidade deste dito do Evangelho de S. Tomé e dos sinópticos. Arde no Amor invencível e pela multipolaridade.

O mestre Jesus visto por Bô Yin Râ...

 «Disse Jesus: - Sem dúvida pensam as pessoas que eu vim para trazer a paz ao mundo e não sabem que vim lançar na Terra divisões, fogo, espada, guerra. Cinco, com efeito, estarão numa casa, e três serão contra dois, e dois contra três, e o pai contra o filho e o filho contra o pai, e eles estarão de pé como solitários.»

Este dito ou logion 16 do evangelho de S. Tomé  é de uma actualidade imensa, e vem lembrar-nos como a demanda da verdade e da justiça pode ter de esfriar, diminuir ou mesmo cortar, entre pessoas, grupos, povos e governos, os laços de amizade e de paz, e há que estarmos preparados para tal, aceitando tais situações como estados transitórios, mais ou menos necessários.
O ensinamento surge também no evangelho de S. Mateus, ainda que de outro modo, em X, 34: «Não penseis que eu vim anunciar a paz na Terra; não vim para trazer a paz, mas a espada. Vim portanto para causar dissensões e para fazer o homem contra o pai, a filha contra a mãe, a mulher contra o marido. Quem amar o seu pai e a sua mãe mais do que a mim não é digno de me seguir.»
As diferenças entre eles são pequenas, a versão de Tomé não inclui porém a relação discipular, pela qual o mestre, ou o que ele vive e incarna, é mais forte que qualquer outro vínculo, provavelmente porque é apresentada noutros ditos do Evangelho de Tomé, mas que deveremos aqui realçar pois assinala o vencer-nos a nós aos nossos hábitos e defeitos, na adesão forte e invencível ao mestre e ao estado consciencial mais perfeito ou ungido pela graça divina que ele manifesta e simboliza.
Em Lucas XII, 50-53, encontramos a mesma ideia e imagens, acrescentada com uma importante e flamejante afirmação: «Eu vim trazer o fogo à Terra, e quero que ele arda», fogo de Amor e de Verdade, e não já só a Paz, pois antes há ainda em muitos a necessária ou fatal separação, e íntima divisão e luta, antes que consigam libertar-se dos entrelaçamentos limitadores, ou das opressões exteriores, e realizar a Unidade espiritual e divina que o mestre Jesus vivia...
E assim, ao longo dos séculos, e até aos nossos dias, a espada, seja da separação, discussão e polémica seja do esforço,  luta e guerra, não deixou de estar activa. Já quanto ao Fogo, se ele for o da vontade unitiva ou de Amor e poder ser manifestado como luta e guerra, é uma questão complexa e profunda, com muitos pacifistas ao longo dos séculos opondo-se externamente, pelo que cada ser, caso a caso deverá, discernir a justificação, justiça e necessidade de actos que aparentemente e na realidade são duros ou violentos e têm consequências de sofrimentos mas que se podem compreender como correcções à luz do fim ou resultado futuro superior. Mas, claro, sabemos bem como todos os tipos de conflitos são facilmente prolongados por interesses e ódios que impedem que a espada  desembainhada, discriminante e flamejante, tenha o seu tempo de acção curto e libertador.
Na versão do Evangelho de Tomé, o ensinamento de seguir ou mesmo imitar o mestre, que será fortemente adoptado pelo Catolicismo, nomeadamente com eremitas, padres e monjas mas também pelo simples cristão, por vezes algo desequilibrado ou explorado, surge no sentido de se estar isolado,  livre dos laços e manipulações familiares e sociais, e é bem compreensível no ensinamento de Jesus Cristo se pensarmos que ele, como mestre, veio para erguer os seres verticalmente, libertá-los das relações horizontais que os asfixiam ou alienam e devolvê-los à consciência e dinamismo de filhos e filhas de Deus, algo que acontecerá com muitos dos que o seguirão, num devir histórico no qual, como ele terá previsto, ainda assim muitos se oporão a muitos...
É pois um revolucionário, um despertador espiritual a falar e a agir. A História da Humanidade não será mais a mesma, tal como se passara com a vinda de Buda no Oriente, ou depois acontecerá com Maomé nos países árabes, ou o Guru Nanak com os sikhs. A sua impulsão foi poderosa e ainda o é e, embora exteriormente os grandes feitos arrefecessem, no Cristianismo aqui e acolá há ainda sacudidelas, clarões na noite, tais os actos de certos fiéis ou cavaleiros do Amor, ou as manifestações humildes e sacrificiais de tanta gente simples em vidas duras e abnegações grandes.
Em verdade, a mensagem dos mestres e de Jesus fermenta eternamente porque dentro de nós se pronuncia a todo o momento enquanto tónica ou essência tanto do nosso ser íntimo como das verdades do mundo espiritual para a humanidade terrena, podendo desabrochar por vezes mesmo em consciência ateias ou agnósticas mas abertas à justiça, à demanda da verdade, ao fogo do Amor.
Poderemos interrogar o "quem está de pé, verticalizado", no dizer e traduzir de acordo com a versão copta do Evangelho:  está-se a falar dos bons e dos maus ou, se quisermos, dos que aspiram à Divindade e tentam realizar generosamente a Sua vontade, ordem e solidariedade, e os que se opõem à manifestação dela e querem uma outra ordem nova, como recentemente se começou a tentar implementar perigosamente, opressivamente pela oligarquia mundial infrahumanista?

Se ao longo dos séculos a luta contra os seres mais imbuídos da luz, verdade e liberdade aconteceu, e se poderá ver tal quase como uma luta entre o bem e o mal, também não devemos cair em dualismos exteriores e culpabilizações excessivas, cabendo-nos primeiramente lutar contra as tendências negativas nossas, ou dos outros próximos, que ferem e que nos rebaixam, sub-animalizam e intensificam o egoísmo e logo o sofrimento dos outros.
Podemos considerar este dito como um aviso actual desta mensagem de Jesus na sua perenidade: as sociedades modernas estão tão mediatizadas e manipuladas e tão sujeitas a uma forma gigantesca e absorvente de desinformação e opressão, que a carga dispersante e obscurecedora que as pessoas recebem impede a maioria delas de conseguirem recolher-se dentro de si próprias ou seja, poucas conseguem esvaziar-se, desprender-se e sentirem-se a si próprias veramente Espíritos individualizados psicomaticamente e nos seus níveis mais elevados ligados à Divindade, pelo que é necessária a espada voluntariosa da discriminação em acção desalienadora e libertadora, harmonizadora e unificadora. 
 
Ícone do mosteiro da Ascensão de Cristo, no Kosovo, Sérvia.
Quanto à expressão usada na época por Jesus do reino dos céus ou de Deus na terra se a equacionamos a uma paz geral planetária, vemos como isso demorará a estabelecer-se na humanidade, pois muitos líderes, políticos, e os que os suportam manipulados ou manipuladores, ainda estão na violência do egoísmo da consciência e responsabilidade negativa nos seus intuitos hegemónicos de manipularem, oprimirem e controlarem a Humanidade e não querem a multipolaridade fraterna, ecológica, espiritual até, presentemente em grande parte liderada pela Rússia tão sacrificialmente...
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Mas tal estado corrupção e escravização não deve impedir a nossa postura e modo de vida verticalizante, alinhado ou orientado por fins éticos e espirituais e em que de quando em quando nos erguemos mais intensamente unindo Céu e a Terra, o supra-consciente e o consciente, a personalidade e o Espírito santo, comungando com o Fogo divino do Amor que Jesus lançou na Terra, partilhando-o, frutificando-o...
Saibamos pois não desanimar perante os conflitos actuais, ou as críticas e oposições mais violentas que nos sejam lançadas por quem não está de acordo com os nossos posicionamentos ideológicos, ou por quem está cheio de teias de aranha de narrativas oficializadas, e antes com a espada das compreensões, ideias e palavras justas trabalhemos em amor e despreendidamente para dissipar a ignorância, a mentira e o ódio, e ajudar, com os mestres e Jesus Cristo, a que a verdade e a justiça, o amor e a paz se estabeleçam mais na Terra e na Humanidade.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

O filósofo Aleksandr Dugin resume bem e brevemente os trabalhos para a geração nova multipolar do século XXI.

                             

O notável pensador russo e do euroasianismo Aleksandr Dugin, nascido a 7 de Janeiro de 1962, tão vilipendiado ou demonizado pela imprensa ocidental avençada à russofobia ou mesmo ao ódio da Rússia, pai da jovem e esperança filosófica Daria Dugin, assassinada recentemente por extremistas mais criminosos do regime anti-russo de Kiev, partilhou uma breve mensagem que, tal como a de Antero de Quental perdida na época, recebeu o nome de  "Trabalhos para a nova geração" multipolar contemporânea, e que merece a nossa consideração e adesão:

  «Os Estados Unidos da América lutam desesperadamente  para continuar ainda a ser a super-potência mundial. Mas os globalistas escolheram o meio errado de o fazer. Os Democratas [os membros do Partido Democrático norte-americano] estabeleceram a autêntica ditadura, pronta a destruir fisicamente qualquer inimigo - seja no estrangeiro (Vladimir Putin) seja internamente (Donald Trump).  Pensam eles que é o melhor meio de salvarem a hegemonia do Ocidente [ou deles no Ocidente]. Está errado tal pensamento. Mas o desafio [nosso e de todos os homens e mulheres de boa vontade] é provar esta verdade. E tal significa nada menos do que derrubar o domínio [opressivo e manipulador] deles.
Salvar o Ocidente (incluindo os EUA) é o mesmo que quebrar a ditadura liberal global.
E isso.... isso, nós podemos.
Tu podes.
Nós e vós,  juntos, podemos!»

Assim seja. Amen, Aum, Hum, Hri...

A Sagração da Primavera, pintura de Nicholas Roerich para a ópera com o mesmo nome de Igor Stravinsky, e que serviu como cenário do ballet de Sergei Diaghlev.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

As Quadras de Agostinho da Silva, o seu esoterismo e demanda do espírito. No dia do 29º aniversário da sua partida.Hermenêutica de Pedro Teixeira da Mota

Euterpe, a Musa da Poesia do Bem..
Como sabemos as quadras de Agostinho da Silva, que no início circularam por cartinhas enviadas aos amigos (e conservo várias),  tiveram depois uma publicação inicial na editora Ulmeiro do seu amigo José Ribeiro,  são das mais concentradas formas poética de sabedoria que encontramos na tradição cultural e espiritual portuguesa do último século.
Num texto recente de abordagem delas (https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/08/as-quadras-de-agostinho-da-silva-1.html)   comentámos três, a primeira de modo  muito breve para o seu valor, já que nos diz como na origem delas está um processo subtil intuitivo. Ei-la: 

«Acordo e sai um poema
 Alguém mo sonhou de noite
 Só preciso não ser nada
Para que a musa se afoite.»

Nesta quadra Agostinho da Silva descreve a sua inspiração de um modo bem peculiar, já que, por exemplo, ao contrário da Dalila Pereira da Costa, sua grande amiga e correspondente, que me confessava  acordar de noite nos  sonhos com uma mensagem ou uma visão que urgia passar a escrito, e que redigia  debaixo dos lençóis para que a luz eléctrica não dissipasse a memória fugaz do que percepcionara, Agostinho  Silva recebe, ou pelo menos descreve, o processo de outro modo:  Quando dorme, quando é nada, quando o seu eu racional ou a consciência de vigília estão adormecidos ou diminuídos, quando há um vazio do ser isto ou aquilo, então alguém lhe sonha o sonho, ou alguém sonha, vê e sente nele, a Musa...
Este modo é bem valioso de ser considerado já que Agostinho diz não sonhar, não se considerar ser ele o sujeito, autor ou realizador dos sonhos. Nem pensa ser a sua imaginação, ou sequer o seu Eu psico-espiritual. É alguém diferente dele.  Quem? A Musa, que se afoita...
Quem é ou pode ser em Agostinho da Silva, esta Musa, do grego mousa, e que eram inicialmente deusas ou ninfas da natureza e das águas  e depois as nove deusas inspiradoras das várias formas de arte e ciência, e que por fim se tornaram sinónimo de inspiração supra-racional ou supra-egóica?
Se é verdade que Agostinho da Silva estudara bem a civilização e a cultura da grega, tendo-nos deixado livros e traduções,  podemos conjecturar que pode estar apenas a utilizar a Musa para se inserir nessa tradição de inspiração, a qual ao longo dos séculos foi por inúmeros poetas evocada, nomeadamente entre nós por Luís de Camões, no qual o  apelo à Musa surge em tantos poemas, por vezes particularizado nas do rio, areias douradas e margens frondosas do Tejo, as Tágides, ou na musa Calíope, a da épica, para os Lusíadas
 Todavia sabemos como Agostinho também equacionou a pluridimensionalidade da Musa ao valorizar frequentemente o canto X dos Lusíadas como anunciador de uma era ideal futura, dum V Império, caracterizada pela liberdade em relação às necessidades materiais e corporais, pela cabeça ou a mente aberta ao Mundo (tal como vemos no arcano XXI do Tarot) e a audição da voz da Deusa, que mais tarde o P. António Vieira, denominou a Voz de Deus, e que podemos ainda interpretar  como a voz do Uni-verso, a do Logos, ou a do Espírito em nós, e que nos estimula e guia a sermos nós próprios, cada um único mas em sintonia, harmonia e unidade com os outros, ou pelo menos com os mais próximos, ou na multipolaridade fraterna que tenta actualmente destronar a hegemonia oligárquica ocidental tão opressiva. 
Anote-se que a expressão V Império, cada vez mais queimada por tanta mistificação, ultranacionalismo e imperialismo, nem sequer a devemos equiparar ou assentar na  língua portuguesa universal,  em Portugal, na lusofonia, mas sim num estado de ser pouco egóico, espontâneo, abrangente, não-dualista, nem partidário, mas sim multipolar, ecológico, poético, fraterno, em amor-sabedoria e que vivenciado por alguns ou muitos aqui e acolá se manifesta como locais de harmonia da Humanidade...
Vejamos outra quadra de Agostinho da Silva bem significativa e com valiosas contextualizações e hermenêuticas possíveis e que cingimos neste cumprimento de o comemorar, em aspiração de luz e amor, no 29º aniversário da sua partida da Terra, em 2023:

«Matéria sendo bailado
que faz o Espírito Santo
com o espírito que é nosso
e que santo não é tanto//.

O que Agostinho nos sugere  pode ser então sentido ou compreendido por diferentes visões ou em vários níveis: 
 1º - O Espírito Divino ou Santo  inspira-nos a agir na matéria. E  este Espírito santo ou cósmico age através do nosso eu espiritual, o qual não é ainda tão santo, ao estar envolvido no corpo e numa sociedade, pelo que é basicamente perfectível, santificável, harmonizável, plenificável.
2º - O nosso próprio ser e espírito é a matéria moldável com que, ou onde, o Espírito Santo ou Cósmico divino faz o seu bailado, dança,  jogo (lila), eventualmente para o tornar mais santo, isto é, melhor, mais alargado e universal, ou se quisermos ainda, para que o seu sentir, agir, pensar e falar coincida mais com o que o Espírito Santo, ou o Logos, Inteligência e Amor, inspiraria ou fluiria nele. 
É possível admitirmos que esta dança ou bailado da Divindade mencionado por Agostinho esteja inspirada na famosa escultura simbólica indiana de Shiva Nataraja dançando sobre o ego humano, egóico e ignorante.  E quando Agostinho da Silva utiliza a expressão "o espírito que é nosso e que não é tão santo", não sabemos bem se ele está a querer dizer que o espírito, ao estar em nós nos seres humanos encarnados em corpos, não é tão santo como ele é interiormente ou em si mesmo;   ou que não é tão santo, pura e simplesmente no sentido que o nosso espírito ou eu (e assim pensarão os "cientistas não espiritualistas")  é apenas um complexo mental, psico-somático com um ego ou eu coordenador de zonas neuronais, ou cristalizador ou agregador das múltiplas capacidades mas também limitações e defeitos de ser animal e anímico.
Cada um sentirá por si próprio, se este espírito é apenas a mente-cérebro e personalidade, ou se é o espírito centelha divina, o jivatman da tradição indiana, ou se é essa concordia oppositorum mas todos teremos de reconhecer que não somos tão harmoniosos, perfeitos, plenos ou santos como poderíamos ser, pelo menos algumas vezes, e que portanto religar-nos mais ao Espírito que nos é acessível  é um trabalho fundamental, e para o qual podemos dizer que a Musa, Génio, Daimon ou Anjo  por vezes nos inspira ou ajuda.
E vamos concluir esta breve comunhão com outro pensamento aforístico-poético, com uma quadra que parece confirmar que  Agostinho da Silva glosou a tradição indiana e o seu símbolo de Shiva Nataraja, talvez sabendo até um pouco das  altas realizações espirituais e especulações filosóficas que no Shivaísmo e no Tantrismo se alcançaram a partir de tal visão da Divindade dançando,  símbolo belíssimo da acção do Espírito Consciência beatífica (Shiva) gerando a Energia (Shakti) e tanto a manifestação como a dissolução das partículas e ondas dos seres e Universos, e que Ciência moderna, em especial pela física quântica, tem de alguns modos e em alguns cientistas, deduzido, intuído ou fiado...

Da dança brota primeiro
o que se chama energia
naquele saber de agora
em que física se fia.

Quem dança?  Quem consegue escutar o som dos seus pés na flor de lótus da alma? Quem consegue sentir a energia psíquica interna, a Shakti, realizando-se em Shiva, consciência beatífica? Quem entra na ilha do Amor com a alma complementar, e ouve o suspiro ou a voz da Musa ou Deusa, e sobe ao alto e vasto monte da Unidade?

sábado, 1 de abril de 2023

Um poema ao Espírito, e talvez para um livro acerca dele. Poema prosa espiritual. A Tradição Espiritual Portuguesa.


                                                            Pintura de Nicholai Roerich...
Ao Espírito.

Invocação do Espírito:
Investigar, ou seja, entrar,
Aprofundar, deixar-se afundar,
pesquisar, humildemente querer caminhar
e avançar no que se sabe pouco, ou é menosprezado
e é contudo importante,
valioso, transformador, essencial.

Investigar o conhecimento
do Espírito humano,
das suas capacidades
e do seu futuro, pessoal e geral,
para que nos fortifiquemos,
para a História da Humanidade melhorar.

Investigar no interior pelas práticas
psico-espirituais,
e no exterior pelos testemunhos,
realçando os que melhor souberam
ver, vivenciar, descrever e partilhar
o conhecimento espiritual,
o Espírito ao longo dos séculos,
em Portugal mas não só,
e seus principais conhecedores,
místicos, mestres e escritores.

Talvez os melhores procuradores e conhecedores 
sejam alguns místicos e religiosos
como Francisco Sousa Tavares, Frei Hilarião,
Gregório Taveira, e mais tarde estudiosos
do esoterismo e das ciências ocultas,
tais como Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa,
sem esquecer Antero e Bocage, Agostinho e Dalila.

Tu e eu investigando a Luz espiritual,
abrindo bem os olhos e o coração,
pois o Espírito manifesta-se a nós,
consciências em corpo humanos e cérebros, 
pela Luz interior que vemos,
pelas formas e seres no olho se desvendando,
pela felicidade e amor que sentimos.

-"Eu abro-me mais à luz", eis a nossa oração,
Aprofundando as visões de luz e até de seres.
- "Olho espiritual", queremos-te abrir mais. 

Entre os métodos para tal, destaca-se a contemplação
de imagens, pinturas, mandalas, vesica pisces e espirais,
cristais e flores, árvores, rios e montanhas,
e sobretudo intensificar o amor à Divindade e ao Cosmos.

Eis-me aqui,
eu, o meu espírito,
mais os espíritos do universo
e o de quem me vier a ler:
tu, a tanto tempo e espaço de distância
deste aqui e agora: - Abre-te mais a Deus..

Invocar o espírito mais frequente e fortemente
brota da oração e meditação
ou, graça das graças,
com alma afim, gémea ou elevada,
com a qual a dualidade se torna biunidade,
comunhão do amor constante em aspiração. 

Mas tão difícil é haver as mesmas asas
e logo o mesmo voo no mundo espiritual,
que a poesia e o canto se puseram a orar
e os peitos e corações abertos a sangrar.

Dei-te a mão, deste-me a mão,
após os olhos se terem prolongado interiormente
até tocarem o oceano luminoso da Divindde,
após os corações se tornarem chama intensa,
até a Divindade ser adorada e acolhida,
no mistério do Ser que somos, és, 
Om sou... Aum Shou.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Um poema da realização espiritual, por Pedro Teixeira da Mota.

Escrito, sobre papel trazido do Irão, há dois anos e melhorado na transcrição a 30-3-23.

As almas humanas
que têm o seu ser
mais no Ser,
essas, em certas ocasiões,
flamejam os seus corações,
certamente à custa de muito labor.
 
Quantas horas e dias até,
entre os escombros arrumados
e dos blocos talhados, 
emergir a Ideia viva? 
 
Cada vida é uma odisseia,
um studio incessante,
persistente e confiante
 nas bênçãos do Alto e na graça Divina,
para se ir gerando o Ser espiritual,
guerreiro e amante, agricultor e poeta.

Então, por entre nenúfares e árvores,
poderá encontrar-se a Náiade 
ou Ninfa da sua alma,
e, no seu mistério profundo de geradora,
extasiar-se na sublimidade do AMOR.
 
Como uma Dríade brotando de um tronco,
ou um Anjo de uma meditação mais intensa,
assim cada ser encontra sua alma complementar
para com ela co-gerar, no Kosmos que lhe compete,
as energias e formas, sentimentos e psico-morfismos
que impulsionarão as almas e os ambientes
para o Espírito, o Bem, a Divindade.
Aum Amen Hum

Ornamento espiritual, ou do espírito, por Bô Yin Râ.

terça-feira, 28 de março de 2023

Alexandre Herculano. Biografia e Mensagem. Breve homenagem evocadora, no seu 223º aniversário.

O notável e probo pensador e historiador Alexandre Herculano nasceu em Lisboa neste dia de hoje, 28 de Março, em 1810, ao pátio do Gil, na tão histórica rua de S. Bento, filho de Maria do Carmo Carvalho de São Boaventura e de Teodoro Cândido de Araújo, funcionário do Crédito Público, tendo vindo a estudar na progressiva, e tão dedicada à instrução, congregação dos Oratorianos de S. Filipe de Nery, no convento e hoje palácio das Necessidades, até aos 15 anos. Aos 21 anos participa numa conspiração revoltosa contra o absolutismo de D. Miguel, falhada, pelo que terá de refugiar-se num navio francês e exilar-se por França e Inglaterra, para o que estava preparado graças ao seu bom conhecimento de línguas. Voltará na armada e exército Liberal e participa corajosamente em lutas junto ao Mindelo e Porto, em 1832. Será nomeado, pelo rei D. Pedro IV, 2º bibliotecário da Biblioteca Pública Portuense e depois preceptor do futuro rei D. Pedro V, infausta e precocemente raptado pelas   Parcas, e que muito o apreciara. Em 1839 D. Fernando nomeia-o bibliotecário mor das Reais Bibliotecas das Necessidades e Ajuda.  Sábio e rigoroso historiador, repudiará milagres e mistificações, destacando-se como propugnador do municipalismo, patriota e não iberista, anti-clerical, adepto do casamento civil, crítico da Concordata com o Papado. Desgostoso com a decadência do país pelos maus políticos e políticas, retira-se em 1867 da capital, reingressa na Mãe natureza, e torna-se agricultor e produtor de azeite na  quinta de Vale dos Lobos, junto a Santarém, comprada com os seus proventos literários, e que passará a gerir modelarmente, tanto mais que se ligara matrimonialmente, já maduro nos seus 57 anos, com a Mariana Hermínia da Meira, sua namorada de juventude, continuando com os seus trabalhos literários e político-socias, nomeadamente intervindo, por exemplo, em defesa da liberdade de pensamento e comunicação quando Antero de Quental e seus correligionários tentavam partilhar suas ideias modernas nas Conferências do Casino, em 1871, e foram  bloqueadas, dando azo a forte resposta contestativa de Antero ao ministro Ávila e Bolma... 
Foi sempre uma das reservas morais do reino, desde 1837  dirigindo a revista de cultura literária, histórica e algo científica Panorama, e um partido, em 1856, o Partido Progressista Histórico, convivendo com muitos escritores, pensadores e políticos mas mantendo sempre a sua integridade e simplicidade, e assim, embora tenha sido  deputado e até presidente da Câmara Municipal de Belém, recusou cargos ministeriais, títulos e condecorações, preferindo  consciência tranquila e contacto com a terra e a vida simples. Morreu em 1877, ao constipar-se e  agravar-se em  pneumonia, com a ida final e fatal a Lisboa a fim de cumprimentar em reciprocidade a visita que o imperador do Brasil, filho do seu amigo D. Pedro IV, lhe fizera em Vale de Lobos.

Deixar-nos-á as Lendas Narrativas e os seus romances históricos bem caldeados de erudição e recriação ambiental, plenos de ensinamentos éticos e que ganharam um merecido espaço curricular nas escolas portuguesas ao longo dos anos,  iniciando ao gosto da História gerações sucessivas de jovens, a par das suas Poesias, românticas majestosas,  inspirando  muitos, tal como Antero de Quental que as valorizou referindo a forte impressão causada pela leitura em criança da Harpa do Crente, de 1838.
A sua História de
Portugal, em quatro volumes, dados à luz de 1846 a 1853, será a primeira portuguesa com critérios mais científicos, e lê-se com bastante agrado e proveito, embora só vá até ao tempo e reinado de D. Afonso III, evidentemente hoje muitíssimo mais ampliada ou completada por tanta investigação e historiador posterior.
Na História
da Origem e Estabelecimento da Inquisição, 1854-1859, obra pioneira, e que lhe trouxe bastantes ataques, mostra até onde pode ir a ignorância e a crueldade, e nesse sentido apelará noutra ocasião a uma cruzada santa contra as tendências guerreiras, interrogando o porvir: «Nesses dias, que porventura tardam menos do que muitos pensam, que destino darão os sacerdotes da bombarda, da lança e da espada aos seus deuses fulminados? As palavras façanha, glória guerreira, conquista, como serão definidas nos dicionários das línguas vivas, dentro de um ou dois séculos? Como julgará a história os milagres inventados para santificar o derramamento de sangue»? Outrora conquistadores, hoje pequenos, «para obtermos consideração basta que os nossos progressos intelectuais e morais mostrem à Europa que sabemos, queremos e podemos regenerar-nos pela ciência, pelo trabalho, pela morigeração».
Dirigiu também a  recolha e publicação de documentos e códices manuscritos sob o título Portugaliae Monumenta Historicade 1856 a 1873.
Os seus estudos e polémicas fortes, mais a colaboração em várias revistas, foram compilada nos seus dez valiosos tomos de Opúsculos, editados pela Livraria Bertrand, sob os títulos: Questões públicas, Controvérsias e Estudos Históricos, e Literatura.
Dois extractos: «A História pode comparar-se a uma coluna polígona de mármore. Quem a quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la em todas as suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é olhar para um dos lados, contar-lhe os veios da pedra, medir-lhe a altura por palmos, polegadas e linhas. E até não sei dizer ao certo se estas indagações se têm aplicado a uma face ou unicamente a uma aresta. 

Mas é semelhante trabalho desprezível? Não por certo. Este exame miúdo, feito com consciência, tem grande aplicação, e ainda em si é importante;mas dar-se isso como a história da nação é,salvo erro, enganar redondamente o género humano; é não perceber os fins da história, a sua aplicação como ciência; é sobretudo fazer uma coisa, a que podemos chamar novela, distinta somente daquelas a que se dá tal título, pelo tedioso, árido e sem sabor da leitura que oferece» pp. 103-4. Tomo V dos Opúsculos. Controvérsias e Estudos Históricos. Tomo II

Frontispício de um exemplar da 2ª edição, com o preço editorial ainda marcado, 600 reis, e que pertenceu à biblioteca do meu bisavô paternal, na casa da Cruz, em Gagos, assinado por ele.

E do II Tomo, Questões Públicas, tomo II, p. 6, eis o começo de um dos seus bem profundos textos, Monumentos Pátrios, de 1838, que provavelmente inspirou ou tocou Antero de Quental e o seu grupo,  sobre a missão não só da Imprensa e da defesa do Património cultural, como também de cada um de nós enquanto almas envolvidas pelas narrativas oficiais, o egoísmo e os aliciamentos superficializantes, mensagem hoje ainda muito actual pois a  demanda conscienciosa da verdade e a integridade escasseiam enquanto a parcialidade, a cegueira interessada e a corrupção, com os progressos tecnológicos opressivos, intensificam-se: 

«Diz-se que uma das mais belas missões da imprensa é defender a boa razão, a arte, e a honra e glória da Pátria.Imagina-se ampla colheita de renome, de bênçãos, de vantagens de toda a espécie para o escritor que alevanta a voz a favor do bom, do justo e do belo, se a voz do que escreve é assaz poderosa para se esperar que mova os ânimos dos seus concidadãos. E com efeito, indicar a estes o recto caminho, quando transviados; tentar afeiçoá-los a nobres e puros sentimentos; fazê-los amar o solo natal; despertar-lhes afectos pelo que foi grande e nobre na história do país, parece que deveria produzir frutos de bênção para o escritor que o tentasse. Não é, todavia, assim. Há para isso um obstáculo quase insuperável; a superstição pelas ideias e tendências do presente, mais cega que a superstição pelas crenças do passado. As paixões são mais enérgicas do que as reminiscências, as aspirações que as saudades. Glória, lucro, respeito, bênçãos são para aquele que afaga com palavras mentidas as preocupações populares; para aquele que, sem discrime, louva, adorna ou repete  como eco as opiniões que ao redor dele, talvez por cima dele, esmagando-lhe a consciência, passam como torrente. Tumultua o género humano correndo ao longo dos séculos: o louvador, às vezes o promotor do túmulo, se a natureza lhe concedeu imaginação e talento, vai adiante como capitão e guia da geração que corre ébria: incita-a, arrasta-a, deslumbra-a. As coroas voam-lhe  do meio do tropel sobre a cabeça. Verdade é que ao cabo de tanto lidar ele se despenhará com essa geração no abismo do passado;verdade é que o abismo se fechará para ele com o selo de reprovação de cima, e que, porventura, não tardará a que o futuro passe por ali a sorrir, ouse afaste com tédio  do sepulcro dealbado do erro ou da vilania. Mas isso que importa? O homem que vendeu ao século a consciência e o engenho, que Deus não lhe deu para mercadejar com ele, foi benquisto e glorificado enquanto vivo; foi antesignano [porta-bandeira] do progresso, embora este seja avaliado algum dia como progresso fatal!

Mas que pode esperar aquele que, nessa longa e ampla estrada do tempo, por onde o género humano corre desordenado, quiser vir, do lado do futuro e em nome do futuro, dizer à geração a que pertence - "parai lá"? Embora a sua voz troveje; embora as suas palavras devam fazer vibrar todas as cordas do coração e despertar todas as conviçções da alma: não espere ser ouvido. As multidões continuarão a passar desatentas. Escarnecido, amaldiçoado talvez, dormirá esquecido na morte, e os sábios e prudentes cultores de uma filosofia corrompida e egoísta dirão, com insultuosa compaixão, ao passar pelo que jaz no pó - «Pobre louco, recebeste o prémio e querer contrastar o século»!

E continua logo a seguir, num novo parágrafo, a transmitir a sabedoria ético-moral pitagórica (com o Y  das duas vias) e verdadeiramente religiosa, a que nos religa à nossa consciência íntima e à consciência colectiva-impessoal (ambas tão demandadas pelo seu discípulo Antero de Quental), e ao espírito e  Divindade:

«O que havemos dito é crua verdade; mas é a verdade. Há nesta época dois caminhos a seguir: um estrada larga, batida, plana, sem precipícios, mas que conduz à prostituição da inteligência; outro, vereda estreita, tortuosa, malgradada, mas que se dirige ao aplauso da própria consciência. Aqueles cujas esperanças não vão além dos umbrais do cemitério e que aí veem, não o termo da sua peregrinação na Terra, mas o remate da existência, que sigam a fácil estrada. Nós, porém, que guardamos para o além da vida [o mundo espiritual, que brilhe em nós] as nossas melhores esperanças, tomaremos o bordão do romeiro e iremos rasgar os pés pela vereda de espinhos [Ad astra, per aspera, como dizia Paracelso, ou seja, para vislumbrarmos o mundo espiritual, ou para mais tarde entrarmos bem nele, temos de nos esforçar]. Resignar-nos-emos nos desprezos e, como os soldados [da 1ª cruzada à Terra Santa] do eremita Pedro, que, pondo a cruz vermelha [fonte templária] no ombro para irem morrer [se tivesse que ser] na Palestina, clamavam- "Deus assim o quer! Deus assim o quer!" - diremos também - soframos o menoscabo e o vilipêndio: soframos que assim o quer Deus».

Talvez esta visão do Destino, da Moira, que Alexandre Herculano ainda partilha, seja, para além do valor estóico, algo incorrecta pois a fatalidade (de fatum) é mais dos actos humanos (mais ou menos voluntários) e suas consequências, o Karma na tradição indiana, do que de um querer ou vontade de Deus, pois são antes as almas humanas que,  deixando-se envolver, prender ou obscurecer na ignorância e egoísmo, inveja e ódio, causam os males e menoscabos que afligem tanta gente...

Encerremos este parágrafo final de Alexandre Herculano, já algo intervencionado hermeneuticamente, e no qual nos partilhou com beleza de peregrino ou romeiro, a sua crença e esperança na vida e na justiça post-mortem, com um terceiro lema, o dos frades e cavaleiros Templários: Non Nobis, Domine, non nobis, sed Nomine tuo da Gloriam, ou seja numa tradução livre espiritual, Que a Luz brilhe gloriosa na vibração e presença Divina em nós. E no Alexandre Herculano, Antero de Quental e noutros dos seus discípulos e amigos...