Deixar-nos-á as Lendas Narrativas e os
seus romances históricos bem caldeados de erudição e recriação
ambiental, plenos de ensinamentos éticos e que ganharam um merecido espaço curricular nas escolas portuguesas ao longo dos anos, iniciando ao gosto da História gerações sucessivas de jovens, a par das suas Poesias, românticas majestosas, inspirando muitos, tal como Antero de Quental que as valorizou referindo a forte impressão causada pela leitura em criança da Harpa do Crente, de 1838.
A sua História de Portugal, em quatro volumes, dados à luz de 1846 a 1853,
será a primeira portuguesa com critérios mais científicos, e lê-se com bastante agrado e proveito, embora só vá até ao tempo e reinado de D. Afonso III, evidentemente hoje muitíssimo mais ampliada ou completada por tanta investigação e historiador posterior.
Na História da Origem e Estabelecimento da Inquisição, 1854-1859, obra pioneira, e que lhe trouxe bastantes ataques, mostra até
onde pode ir a ignorância e a crueldade, e nesse sentido apelará noutra
ocasião a uma cruzada santa contra as tendências guerreiras,
interrogando o porvir: «Nesses dias, que porventura tardam menos do que muitos
pensam, que destino darão os sacerdotes da bombarda, da lança e da
espada aos seus deuses fulminados? As palavras façanha, glória
guerreira, conquista, como serão definidas nos dicionários das línguas
vivas, dentro de um ou dois séculos? Como julgará a história os milagres
inventados para santificar o derramamento de sangue»? Outrora
conquistadores, hoje pequenos, «para obtermos consideração basta que os
nossos progressos intelectuais e morais mostrem à Europa que sabemos,
queremos e podemos regenerar-nos pela ciência, pelo trabalho, pela morigeração».
Dirigiu também a recolha e publicação de documentos e códices manuscritos sob o título Portugaliae Monumenta Historica, de 1856 a 1873.
Os seus estudos e polémicas fortes, mais a colaboração em várias revistas, foram compilada nos seus dez valiosos tomos de Opúsculos, editados pela Livraria Bertrand, sob os títulos: Questões públicas, Controvérsias e Estudos Históricos, e Literatura.
Dois extractos: «A História pode comparar-se a uma coluna polígona de mármore. Quem a
quiser examiná-la deve andar ao redor dela, contemplá-la em todas as
suas faces. O que entre nós se tem feito, com honrosas excepções, é
olhar para um dos lados, contar-lhe os veios da pedra, medir-lhe a
altura por palmos, polegadas e linhas. E até não sei dizer ao certo se
estas indagações se têm aplicado a uma face ou unicamente a uma aresta.
Mas é semelhante trabalho desprezível? Não por certo. Este exame miúdo, feito com consciência, tem grande aplicação, e ainda em si é importante;mas dar-se isso como a história da nação é,salvo erro, enganar redondamente o género humano; é não perceber os fins da história, a sua aplicação como ciência; é sobretudo fazer uma coisa, a que podemos chamar novela, distinta somente daquelas a que se dá tal título, pelo tedioso, árido e sem sabor da leitura que oferece» pp. 103-4. Tomo V dos Opúsculos. Controvérsias e Estudos Históricos. Tomo II
Frontispício de um exemplar da 2ª edição, com o preço editorial ainda marcado, 600 reis, e que pertenceu à biblioteca do meu bisavô paternal, na casa da Cruz, em Gagos, assinado por ele. |
E do II Tomo, Questões Públicas, tomo II, p. 6, eis o começo de um dos seus bem profundos textos, Monumentos Pátrios, de 1838, que provavelmente inspirou ou tocou Antero de Quental e o seu grupo, sobre a missão não só da Imprensa e da defesa do Património cultural, como também de cada um de nós enquanto almas envolvidas pelas narrativas oficiais, o egoísmo e os aliciamentos superficializantes, mensagem hoje ainda muito actual pois a demanda conscienciosa da verdade e a integridade escasseiam enquanto a parcialidade, a cegueira interessada e a corrupção, com os progressos tecnológicos opressivos, intensificam-se:
«Diz-se que uma das mais belas missões da imprensa é defender a boa razão, a arte, e a honra e glória da Pátria.Imagina-se ampla colheita de renome, de bênçãos, de vantagens de toda a espécie para o escritor que alevanta a voz a favor do bom, do justo e do belo, se a voz do que escreve é assaz poderosa para se esperar que mova os ânimos dos seus concidadãos. E com efeito, indicar a estes o recto caminho, quando transviados; tentar afeiçoá-los a nobres e puros sentimentos; fazê-los amar o solo natal; despertar-lhes afectos pelo que foi grande e nobre na história do país, parece que deveria produzir frutos de bênção para o escritor que o tentasse. Não é, todavia, assim. Há para isso um obstáculo quase insuperável; a superstição pelas ideias e tendências do presente, mais cega que a superstição pelas crenças do passado. As paixões são mais enérgicas do que as reminiscências, as aspirações que as saudades. Glória, lucro, respeito, bênçãos são para aquele que afaga com palavras mentidas as preocupações populares; para aquele que, sem discrime, louva, adorna ou repete como eco as opiniões que ao redor dele, talvez por cima dele, esmagando-lhe a consciência, passam como torrente. Tumultua o género humano correndo ao longo dos séculos: o louvador, às vezes o promotor do túmulo, se a natureza lhe concedeu imaginação e talento, vai adiante como capitão e guia da geração que corre ébria: incita-a, arrasta-a, deslumbra-a. As coroas voam-lhe do meio do tropel sobre a cabeça. Verdade é que ao cabo de tanto lidar ele se despenhará com essa geração no abismo do passado;verdade é que o abismo se fechará para ele com o selo de reprovação de cima, e que, porventura, não tardará a que o futuro passe por ali a sorrir, ouse afaste com tédio do sepulcro dealbado do erro ou da vilania. Mas isso que importa? O homem que vendeu ao século a consciência e o engenho, que Deus não lhe deu para mercadejar com ele, foi benquisto e glorificado enquanto vivo; foi antesignano [porta-bandeira] do progresso, embora este seja avaliado algum dia como progresso fatal!
Mas que pode esperar aquele que, nessa longa e ampla estrada do tempo, por onde o género humano corre desordenado, quiser vir, do lado do futuro e em nome do futuro, dizer à geração a que pertence - "parai lá"? Embora a sua voz troveje; embora as suas palavras devam fazer vibrar todas as cordas do coração e despertar todas as conviçções da alma: não espere ser ouvido. As multidões continuarão a passar desatentas. Escarnecido, amaldiçoado talvez, dormirá esquecido na morte, e os sábios e prudentes cultores de uma filosofia corrompida e egoísta dirão, com insultuosa compaixão, ao passar pelo que jaz no pó - «Pobre louco, recebeste o prémio e querer contrastar o século»!
E continua logo a seguir, num novo parágrafo, a transmitir a sabedoria ético-moral pitagórica (com o Y das duas vias) e verdadeiramente religiosa, a que nos religa à nossa consciência íntima e à consciência colectiva-impessoal (ambas tão demandadas pelo seu discípulo Antero de Quental), e ao espírito e Divindade:
«O que havemos dito é crua verdade; mas é a verdade. Há nesta época dois caminhos a seguir: um estrada larga, batida, plana, sem precipícios, mas que conduz à prostituição da inteligência; outro, vereda estreita, tortuosa, malgradada, mas que se dirige ao aplauso da própria consciência. Aqueles cujas esperanças não vão além dos umbrais do cemitério e que aí veem, não o termo da sua peregrinação na Terra, mas o remate da existência, que sigam a fácil estrada. Nós, porém, que guardamos para o além da vida [o mundo espiritual, que brilhe em nós] as nossas melhores esperanças, tomaremos o bordão do romeiro e iremos rasgar os pés pela vereda de espinhos [Ad astra, per aspera, como dizia Paracelso, ou seja, para vislumbrarmos o mundo espiritual, ou para mais tarde entrarmos bem nele, temos de nos esforçar]. Resignar-nos-emos nos desprezos e, como os soldados [da 1ª cruzada à Terra Santa] do eremita Pedro, que, pondo a cruz vermelha [fonte templária] no ombro para irem morrer [se tivesse que ser] na Palestina, clamavam- "Deus assim o quer! Deus assim o quer!" - diremos também - soframos o menoscabo e o vilipêndio: soframos que assim o quer Deus».
Talvez esta visão do Destino, da Moira, que Alexandre Herculano ainda partilha, seja, para além do valor estóico, algo incorrecta pois a fatalidade (de fatum) é mais dos actos humanos (mais ou menos voluntários) e suas consequências, o Karma na tradição indiana, do que de um querer ou vontade de Deus, pois são antes as almas humanas que, deixando-se envolver, prender ou obscurecer na ignorância e egoísmo, inveja e ódio, causam os males e menoscabos que afligem tanta gente...
Encerremos este parágrafo final de Alexandre Herculano, já algo intervencionado hermeneuticamente, e no qual nos partilhou com beleza de peregrino ou romeiro, a sua crença e esperança na vida e na justiça post-mortem, com um terceiro lema, o dos frades e cavaleiros Templários: Non Nobis, Domine, non nobis, sed Nomine tuo da Gloriam, ou seja numa tradução livre espiritual, Que a Luz brilhe gloriosa na vibração e presença Divina em nós. E no Alexandre Herculano, Antero de Quental e noutros dos seus discípulos e amigos...
Sem comentários:
Enviar um comentário