segunda-feira, 3 de abril de 2023

As Quadras de Agostinho da Silva, o seu esoterismo e demanda do espírito. No dia do 29º aniversário da sua partida.Hermenêutica de Pedro Teixeira da Mota

Euterpe, a Musa da Poesia do Bem..

Como sabemos as quadras de Agostinho da Silva, que no início circularam pelas cartinhas enviadas aos amigos (e conservo várias),  tiveram depois uma publicação inicial na editora Ulmeiro do seu amigo José Ribeiro,  são das mais concentradas formas poética de sabedoria que encontramos na tradição cultural e espiritual portuguesa do último século.
Num texto recente de abordagem delas (https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/08/as-quadras-de-agostinho-da-silva-1.html)   comentámos três, a primeira sendo-o de modo  muito breve para o seu valor, já que nos diz como na origem delas está um processo subtil intuitivo. Ei-la: 

«Acordo e sai um poema
 Alguém mo sonhou de noite
 Só preciso não ser nada
Para que a musa se afoite.»

Nesta quadra Agostinho da Silva descreve a sua inspiração de um modo bem peculiar, já que, por exemplo, ao contrário da Dalila Pereira da Costa, sua grande amiga e correspondente, que me confessava  acordar de noite nos  sonhos com uma mensagem ou uma visão que urgia passar a escrito, o que redigia  debaixo dos lençóis para que a luz eléctrica não dissipasse a memória fugaz do que percepcionara, Agostinho  Silva recebe, ou pelo menos descreve, o processo de outro modo:  Quando dorme, quando é nada, quando o seu eu racional ou a consciência de vigília estão adormecidos ou diminuídos, quando há um vazio do ser isto ou aquilo, então alguém lhe sonha o sonho, ou alguém sonha, vê e sente nele, a Musa...
Este modo é bem valioso de ser considerado já que Agostinho diz não sonhar, não se considerar ser ele o sujeito, autor ou realizador dos sonhos. Nem pensa ser a sua imaginação, ou sequer o seu Eu psico-espiritual. É alguém diferente dele.  Quem? A Musa, que se afoita...
Quem é ou pode ser em Agostinho da Silva, esta Musa, do grego mousa, e que eram inicialmente deusas ou ninfas da natureza e das águas  e depois as nove deusas inspiradoras das várias formas de arte e ciência, e que por fim se tornou sinónimo de inspiração supra-racional ou supra-egóica?
Se é verdade que Agostinho da Silva estudara bem a civilização e a cultura da grega, tendo-nos deixado livros e traduções,  podemos conjecturar que pode estar apenas a utilizar a Musa para se inserir nessa tradição de inspiração, a qual ao longo dos séculos foi por inúmeros poetas evocada, nomeadamente entre nós com Camões, no qual o  apelo à Musa surge em tantos poemas, por vezes particularizado nas do rio, areias douradas e margens frondosas do Tejo, as Tágides, ou a musa Calíope, a da épica, para os Lusíadas
 Todavia sabemos como também equacionou a pluridimensionalidade da Musa ao valorizar frequentemente o canto X dos Lusíadas como anunciador de uma era ideal futura, dum V Império, caracterizada pela liberdade em relação às necessidades materiais e corporais, a cabeça ou a mente aberta ao Mundo (tal como vemos no arcano XXI do Tarot) e a audição da voz da Deusa, que mais tarde o P. António Vieira, denominou a Voz de Deus, e que podemos ainda interpretar  como a voz do Uni-verso, a do Logos, ou a do Espírito em nós, e que nos estimula e guia a sermos nós próprios, cada um único mas em sintonia, harmonia e unidade com os outros, ou pelo menos com os mais próximos. 
Anote-se que a expressão V Império, cada vez mais queimada por tanta mistificação, ultranacionalismo e imperialismo, nem sequer a devemos equiparar ou assentar na  língua portuguesa universal,  em Portugal, na lusofonia, mas sim num estado de ser pouco egóico, espontâneo, abrangente, não-dualista, nem partidário, mas sim multipolar, ecológico, poético, fraterno, em amor-sabedoria e que vivenciado por alguns ou muitos aqui e acolá se manifesta como locais de harmonia da Humanidade...
Vejamos outra quadra de Agostinho da Silva bem significativa e com valiosas contextualizações e hermenêuticas possíveis e que cingimos neste cumprimento de o comemorar, em aspiração de luz e amor, no 29º aniversário da sua partida da Terra, em 2023:

«Matéria sendo bailado
que faz o Espírito Santo
com o espírito que é nosso
e que santo não é tanto//.

O que Agostinho nos sugere  pode ser então sentido ou compreendido por diferentes visões ou em vários níveis: 
 1º - O Espírito Divino ou Santo  inspira-nos a agir na matéria. E  este Espírito santo ou cósmico age através do nosso eu espiritual, o qual não é ainda tão santo, ao estar envolvido no corpo e numa sociedade, pelo que é basicamente perfectível, santificável, harmonizável, plenificável.
2º - O nosso próprio ser e espírito é a matéria moldável com que, ou onde, o Espírito Santo ou Cósmico divino faz o seu bailado, dança,  jogo (lila), eventualmente para o tornar mais santo, isto é, melhor, mais alargado e universal, ou se quisermos ainda, para que o seu sentir, agir, pensar e falar coincida mais com o que o Espírito Santo, ou o Logos, Inteligência e Amor, inspiraria ou fluiria nele. 
É possível admitirmos que esteja dança ou bailado da Divindade mencionado por Agostinho está inspirada no famosa escultura simbólica indiana de Shiva Nataraja dançando sobre o eu humano, egóico e ignorante.  E quando Agostinho da Silva utiliza a expressão "o espírito que é nosso e que não é tão santo", não sabemos bem se ele está a querer dizer que o espírito, ao estar em nós nos seres humanos encarnados em corpos, não é tão santo como ele é interiormente ou em si mesmo;   ou que não é tão santo, pura e simplesmente no sentido que o nosso espírito ou eu (e assim pensarão os "cientistas não espiritualistas")  é apenas um complexo mental, psico-somático com um ego ou eu coordenador de zonas neuronais, ou cristalizador ou agregador das múltiplas capacidades mas também limitações e defeitos de ser animal e anímico.
Cada um sentirá por si próprio, se este espírito é apenas a mente-cérebro e personalidade ou se é o espírito centelha divina, o jivatman da tradição indiana, mas todos teremos de reconhecer que não somos tão harmoniosos, perfeitos, plenos ou santos como poderíamos ser, pelo menos algumas vezes, e que portanto religar-nos mais ao Espírito que nos é acessível  é um trabalho fundamental, e para o qual podemos dizer que a Musa, Génio, Daimon ou Anjo necessariamente por vezes nos inspira ou ajuda.
E vamos concluir esta breve comunhão com outro pensamento aforístico-poético, com uma última quadra que parece confirmar que  Agostinho da Silva glosou a tradição indiana e o seu símbolo de Shiva Nataraja, talvez sabendo até um pouco das  altas realizações espirituais e especulações filosóficas que no Shivaísmo e no Tantrismo se fizeram a partir de tal visão da Divindade dançando,  símbolo belíssimo da acção do Espírito Consciência beatífica (Shiva) gerando a Energia (Shakti) e tanto a manifestação como a dissolução das partículas e ondas como seres e Universos, e que Ciência moderna, em especial pela física quântica, tem de alguns modos e em alguns cientistas, deduzido, intuído ou fiado...

Da dança brota primeiro
o que se chama energia
naquele saber de agora
em que física se fia.
 
Quem dança?  Quem consegue escutar o som dos seus pés na flor de lótus da alma? Quem consegue sentir a energia psíquica interna, a Shakti, realizando-se em Shiva, consciência beatífica? Quem entra na ilha do Amor com a alma complementar, e ouve o suspiro ou a voz da Musa ou Deusa, e sobe ao alto e vasto monte da Unidade?

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