domingo, 22 de maio de 2022

Expandir a visão do actual conflito europeu: a declaração compreensiva do líder islâmico da Rússia, o sheik Ravil Gainutdinov, a 21/5/2022.

Nestes tempos de tão grande dilaceramento de pessoas, famílias e terras por tantos conflitos de visões, posicionamentos e opiniões face ao que se passa na Ucrânia, é sempre importante tentarmos abranger com perspectivas várias o que se sente e pensa no restante mundo e não seguirmos só o que os meios de informação ocidentais, na sua quase totalidade alinhados ou mesmo vendidos à narrativa do império do dólar e da sua coligada União Europeia. Compreendermos então, por exemplo, como é que outros países, povos e religiões estão a ver e a reagir ao conflito  Rússia versus Ucrânia, União Europeia, NATO e USA será importante para sairmos de uma excessiva ocidentalização, que chega nos meios de informação a ser quase uma ditadura de uma só narrativa.  E é precisamente o caso que foi hoje partilhado na grande informação internacional, lembrando-nos que o mundo não é só  a Europa  e os Estados Unidos da América e os seus coligados, mas que existe todo o Médio Oriente, Oriente e Extremo Oriente, África, América do sul, e no caso, a partir do posicionamento religioso dos seres, no caso os do Islão, que são neste mundo ocidentalizado tão laico, ateísta ou mesmo algo desalmado ou diabolizado, um sinal de que o acesso ao  mistério Divino continua a ser demandado ou dedilhado...

Assim, a TASS, um dos mais fidedignos e respeitados canais de informação na Rússia, noticiou no dia 22 de Maio que Ravil Gainutdinov, o  líder espiritual  dos Muçulmanos Russos e Presidente da Administração Espiritual Islâmica da Rússia, afirmara no sábado, 21, que o mundo  islâmico compreende a  decisão do  Presidente Russo Vladimir Putin de manter uma operação militar  na Ucrânia. 

                                  

As palavras exactas   deste respeitado sheik ou mestre islâmico, líder das comunidades islâmicas na Rússia, nascido em 1959, mufti na mesquita-catedral de Moscovo e figura prestigiada no mundo do diálogo inter-religioso, sendo em 2007 um dos 138 signatários da Carta Aberta Uma palavra entre vós e nós, dirigida ao Papa Bento XVI e aos cristãos, apelando ao respeito mútuo, diálogo e ao aprofundamento da espiritualidade comum às religiões,  dadas ao canal Rossiya-24 numa entrevista, são muito valiosas, tanto mais que Vladimir Putin e o povo russo estão muito ligados a  Jesus Cristo e ao Cristianismo na sua vertente Ortodoxa, com um Patriarca Cyril também muito ao lado de Vladimir Putin e da sua tão difícil e trágica decisão de iniciar a operação invasora antes que fosse tarde demais, tanto mais que desde o golpe de Maidan, de 2014, levado a  cabo pelos anti-russos, fomentado pela USA, e que depôs o presidente eleito e amigo da Rússia Viktor Yanukovych, os bombardeamentos aos ucranianos russos ou pró-russos  das repúblicas do Leste já tinham causado 14.000 desincarnados antes do seu terminus natural de vida, para além do muito sofrimento e terror.

 A suas palavras foram as seguintes: "Todo o mundo Islâmico, e o mundo Árabe, acolhem a decisão do nosso presidente com compreensão. Eles aspiram à vitória das políticas da Rússia e não têm de modo nenhum interesse na hegemonia de um só país, e na criação de um mundo unipolar». 

«É por causa disto que nenhum país no mundo Árabe impôs qualquer sanção à Rússia. Isto é muito importante. Mesmo membros da NATO, mesmo sujeitos a pressões, abstiveram-se de impor sanções contra o nosso país»

«Isto significa que o mundo Islâmico tem um profundo respeito pelo nosso país e pelos nossos Islâmicos».

Fiquemos pois com uma visão mais completa do vasto campo unificado de energia consciência em que todos e tudo está envolvido e oremos para que as causas e causadores do conflito se esfumem ou desapareçam rapidamente e que o mundo dominado por um só império dê lugar a um multipolar, dialogante, justo, fraterno, saudável e até mais espiritual e em Amor

sábado, 21 de maio de 2022

Rabindranath Tagore, um poema do "Gitanjali" (Where the mind is without fear) em cinco versões, e com a voz dele num belo documentário do swami Tadatmananda.

Rabindranath Tagore (7/5/1861-7/8/1941, Calcutá), a grande alma bengali, o poeta maravilhoso da natureza e da espiritualidade, o artista de teatro, música e pintura genial, que recebeu o prémio Nobel da Literatura no Inverno de 1913 pela sua obra Gitanjali, Cesto de Flores, ou Oferenda Lírica, teve entre nós grande sucesso, não só na sua obra literária como também como pensador, como lutador pela liberdade, e destacaram-se entre os seus admiradores ou discípulos um grupo de estudantes indianos ou de amantes da Índia, que em Coimbra mas não só dinamizaram a tradição cultural e espiritual,  e que em artigos, traduções e obras partilharam a vida e obra de Rabindranath Tagore. Vários textos e efemérides deste blogue estão consagrados seja a Rabindranath  seja a tais seres, e nomearemos apenas Adeodato Barreto, Telo de Mascarenhas, Lúcio de Miranda e Tudela de Castro, tal como referi recentemente no artigo sobre Tudela de Castro e Shantiniketan, onde há muitos anos eu também peregrinei. 

Ora ao pesquisar sobre  Tudela de Castro encontrei na net um artigo interessante sobre a recepção ou tradução de um poema importante e sempre actual de Tagore, tanto por Tudela de Castro, como por Adeodato Barreto e pelo brasileiro Gasparino Damata, pelo que decidi juntar a minha visão-tradução, que será então a última da série, embora viesse ainda a transcrever a versão bastante livre de André Gide em francês. Será valioso para um comparativista. Já com o artigo quase pronto, numa sincronia bem luminosa, fui encontrar um documentário sobre Rabindranath Tagore que contém este poema (publicado em 1913, como a sua aspiração-visão da Índia já livre do colonialismo inglês) na voz dele próprio, quando o disse em 1917 na abertura do Congresso Nacional Indiano em Calcutá, com voz patriótica e fermente, e que poderá ouvir no vídeo no fim a partir de  16:30, embora seja muito bom todo o documentário realizado e partilhado por  Swami Tadatmananda, do Arsha Bodha Center, no seu canal de youtube, com a sua voz serena.

Do Gitanjali, poema XXXV,  pelo despertar libertador do seu país.

«Where the mind is without fear and the head is held high,
Where knowledge is free,
Where the world has not been broken up into fragments
By narrow domestic walls,
Where words come out from the depth of truth,
Where tireless striving stretches its arms towards perfection,
Where the clear stream of reason has not lost its way
Into the dreary desert sand of dead habit,
Where the mind is led forward by thee

Into ever-widening thought and action,
Into that heaven of freedom, my Father, let my country awake.»

A versão francesa de André Gide, que leio num exemplar da 2ª edição, de 1914, é valiosa, mas lá está o erro de traduzir mind por esprit, que aliás os outros também cometeram e que nem corresponde ao bengali original nem ao próprio inglês de Rabindranath. A fotografia contém um artigo de jornal da época e uma das folhas inseridas, certamente com alguma carga sentimental, por entre a intimidade secreta do interior do livro, mas que infelizmente nos escapa..

"Là ou l'esprit est sans crainte et où la tête est haut portée;
Là où la connaissance est libre;
Là où le monde n'a pa été morcelé entre d'étroites parois mitoyennes;
Là où les mots émanent des profondeurs de la sincerité;
Là où l'effort infatigué tend les bras vers la perfection;
Là où le clair courant de la raison ne s'est pas mortellement égaré dans l'aride et morne désert de la coutume;
Là où l'esprit guidé par toi s'avance dan l'élargissement continu de la pensée et de l'action -
Dans ce paradis de liberté, mon Pére, permets que ma patrie s'éveille."
 

 A versão do Tudela de Castro provém duma conferência na Sociedade Teosófica de Portugal, proferida no  dia 11 de Maio de 1923, acerca de Rabindranath Tagore e de Shantineketan, o seu centro pedagógico,  e publicada em livro. E oiçamo-lo:

«Lá, onde o espírito está sem receio e a fronte erguida;
Lá, onde o conhecimento é livre;
Lá, onde o mundo não foi dividido por estritas paredes;
Lá, onde as palavras dimanam das profundezas da sinceridade;
Lá, o esforço infatigável estende os braços para perfeição;
Lá, onde a razão clara não se afastou mortalmente para o árido e triste deserto da convenção;
Lá, onde o espírito por ti guiado se alarga na expansão continua do pensamento e da ação;---
Nesse paraíso de liberdade, meu Pai, permite que a minha pátria acorde.»

         

No 1º número da Índia Nova, dado à luz pelo Instituto Indiano  na Universidade de Coimbra, fundado por Adeodato Barreto (1904-1936)  e Telo de Mascarenhas (1899-1979), saiu outra tradução, por Telo Mascarenhas, reproduzida em cima e que transcrevemos:

«Lá onde a fronte se ergue altiva e o espírito vive tranquilo;
Lá onde o conhecimento é livre;
Lá onde o mundo se não fragmentou ainda entre estreitas e acanhadas muralhas;
Lá onde as palavras se brotam das profundas da sinceridade;
Lá onde o esforços incansável estende os braços para a perfeição;
Lá onde a corrente límpida da Razão não sofreu ainda um letal desvio para o árido e sóbrio deserto do costume;
Lá onde espírito guiado, por Ti,
Avança para o alargamento contínuo do pensamento e da acção;
Nesse paraíso de liberdade, meu Pai, permite que a minha Pátria desperte !»

                                        

 No Brasil, Gasparino Damata traduziu Gitanjali e portanto este poema em 1969, para a  Coordenada Editora, de Brasília. Oiçamo-lo:

 «Onde o espírito vive sem medo e a fronte se mantém erguida;
Onde o saber é livre;
Onde o mundo não foi dividido em pedaços por estreitas paredes domésticas;
Onde as palavras brotam do fundo da verdade;
Onde o esforço incansável estende os braços para a perfeição;
Onde a fonte clara da razão não perdeu o veio no triste deserto de areia do hábito rotineiro;
Onde o espírito é levado à tua presença em pensamento e acção sempre crescentes;
Dentro desse céu de liberdade, ó meu Pai, deixa que se erga a minha pátria.» 

Finalmente a minha versão:

«Onde a mente não tiver medo e a cabeça for mantida alta,
Onde o conhecimento é livre,
Onde o mundo não está partido em bocados por estreitos muros domésticos,
Onde as palavras brotam da profundeza da verdade,
Onde o esforço incansável estende os braços para a perfeição,
Onde a corrente clara da razão não perde o seu caminho
Na temível areia do deserto dos hábitos mortos,
Onde a mente é por Ti impulsionada para pensamento e acção sempre mais abrangentes,
Neste céu de liberdade, minha Fonte Divina, que o meu país desperte.»
 
Saibamos libertar a alma ou psique nossa, e contribuir para a da Pátria-Mátria, das ignorâncias e narrativas mentirosas, injustiças, opressões e medos. Despertemos fraterna, criativa, búdica e libertadoramente, e em aspiração-comunhão da Divindade e seus elos mais luminosos, tal a Ishta devata e as grandes almas, como Rabindranath Tagore. Aum... Que nos inspirem e abençoem...

                     

sexta-feira, 20 de maio de 2022

A mensagem pedagógica de Rabindranath Tagore e "Shantiniketan", por Jaime Tudela de Castro e comentada em vídeo por Pedro Teixeira da Mota.

Rabindranath Tagore, o sábio indiano de Bengala, que foi mesmo prémio Nobel da Poesia em 1913, poucos meses depois do sucesso mundial da sua obra Gitanjali, traduzida por si mesmo para inglês, ganhou nos anos e  décadas imediatas grande voga na Europa e em Portugal, entre nós  destacando-se alguns seres na sua recepção e divulgação, ou porque eram indo-portugueses, goeses em geral, ou porque a espiritualidade e beleza da vida e obra do grande escritor e poeta lhes tocava. 

 Destacaremos como os pioneiros, pelos seus escritos e publicações, Adeodato Barreto  que na sua obra a Civilização Hindu,  de 1935 (reeditado pela Hugin em 2000, bem contextualizado), destaca "Rabindranath Tagore, o apóstolo da união espiritual e do intercâmbio euro-asiático, cria e mantém em Shantiniketan, uma universidade internacional procurando cimentar a fraternidade e a mútua compreensão das duas grandes civilizações", Santana Rodrigues, n' A Índia Contemporânea, de 1926, Telo de Mascarenhas, com Rabindranath Tagore e a sua mensagem espiritual, de 1943, Lúcio de Miranda, Índia e Indianos, de 1936, onde há um extenso capítulo dedicado ao rishi, ou poeta, e Tudella de Castro, com o seu Shantiniketan, que iremos abordar. Anote-se que a revista do movimento democrático Seara Nova, fundada em 1921, teve a sua Secção Indiana, onde alguns deles colaboraram, e  serviu mesmo de editora de suas obras, tal a Civilização Hindu, em 1935, de Adeodato Barreto. De realçar ainda no 1º número do jornal Índia Nova, publicado em Coimbra, em Maio de 1928, uma carta original e um poema de Rabindranath Tagore (traduzidos por Telo de Mascarenhas) a preencherem a 1ª página. 

Quanto a Jaime Tudela de Castro, o autor da obra, sabemos  pouco, e do que escreveu apenas me chegou ao conhecimento a palestra proferida no dia 11 de Maio de 1923 na sede lisboeta da Sociedade Teosófica em Portugal e que foi dada à luz uns meses depois em livro num in-8º oblongo de 65 páginas, ilustrado com a fotografia de Rabindranath Tagore, partilhada por nós ao alto, e que podemos assim ler e anotar, gravar e comentar.  

                            

Anoto contudo os valiosos dados biográficos de Jaime Tudela de Castro, apresentados por Júlio Cortez Fernandes no seu blogue Aguadouro, no qual menciona ter nascido em 20-VIII-1878, na Pampilhosa da Serra, e ter vindo a licenciar-se em Lisboa em 1903, ter colaborado na revista Branco e Negro e ter sido valioso médico pediatra em Lisboa, em clínica privada e na Santa Casa da Misericórdia, com vasta obra social nos lactários e estivadores, tendo casado como Dona Alice Macedo Tudela de Castro, mais nova do que ele 17 anos, e vindo a morrer sem descendência, em 19-I-1944, em Lisboa. É do blogue de Júlio Cortez Fernandes que extraímos ainda, agradecendo de antemão, a fotografia de Jaime Tudela de Castro.


Intitulada Shantiniketan (O Asilo da Paz) agrega três aproximações: A Epopeia Hindu, a Pedagogia Heroica e Shantiniketan. Na 1ª apresenta a sua visão da Índia como o local onde o ser humano primevo se desenvolveu e onde grandes almas espirituais elevaram os seus cantos ao Ser omnisciente e a Agni, o Fogo Espiritual Supremo,  donde o "grito" ou lema Ex Oriente Lux, foi iluminado e corroborado por várias obras que enumera, dos Vedas e Upanishads à Bhagavad Gita e ao Lalita Vistara budista, e por três seres fundamentais Rama, Krishna e Buddha.
Algumas das fontes onde bebeu Jaime Tudela de Castro para esta palestra e artigo estão mencionadas no decorrer dela, seja livros de Rabindranath Tagore, seja autores franceses e ingleses, admiradores ou discípulo do genial escritor e artista, embora haja neste 1º capítulo alguns sinais de que influências francesas, talvez de Saint Yves de Alveydre, e logo do seu mestre Fabre d'Olivet, estarão por detrás da visão histórica dos primórdios civilizacionais e religiosos da Índia, que Tudela debuxa à laia de introdução.
No 2º capítulo Tudela de Castro vai aproximar-se bem de "Tagore na
vida. Sua Pedagogia. Poeta. Músico. Sua Filosofia. Sua Religião. Seu Patriotismo", e poderia ter acrescentado o Pintor, pois também desenhou e pintou bastante, tal como o seu irmão Abindranath Tagore. 
 
Uma pintura de Rabindranath Tagore, em geral bastante catárticas das tristezas que atravessou.
Depois de traçar a sua vida, nascido a 6 de Maio de 1861 do grande sábio Devendranath Tagore, numa família principesca, culta, espiritual,   bastante sofrida pela morte da mulher e dos dois filhos mas com grande sucesso como poeta, intelectual e figura moral reconhecida universalmente, um mestre, Tudela Castro vai discernir com sensibilidade os originais valores pedagógicos vividos por Rabindranath Tagore, e diz-nos deles: «Duas coisas são acima de tudo necessárias aquele que quer compreender a função do educador: uma natureza infantil  que possa vibrar em uníssono com a criança e captar-lhe a simpatia, e uma afeição paternal que lhe alimente a chama viva - principal e única manifestação desse ser frágil - e que se denomina curiosidade, aspiração pelo saber», valorizando em seguida a consciência libertadora do poeta:«eu creio num princípio de vida e na alma do ser humano acima de todos os métodos. Julgo que o objecto da educação é a liberdade de espírito, que não pode ser obtida senão pelo caminho da liberdade - ainda que esta tenha os seus riscos e responsabilidades, como a própria vida.» E complementa esta liberdade no conhecimento com uma ética viva e amorosa de harmonização com o que nos envolve: «Pode-se adquirir o poder pela ciência, mas é pela simpatia que se chega a uma plenitude de vida. A melhor educação não é aquela que se limita a informar-nos, mas a que nos harmoniza com tudo o que existe».  Esta empatia ou amor com que devemos olhar e sentir tudo o que nos rodeia, mormente as maravilhas na Natureza e dos seres, é sem dúvida muito importante de ser relembrado cultivado constantemente, pois é fácil e habitual deixar-nos prender-nos mentalmente em preocupações e conflitos e perdermos a irradiação natural do peito e do coração espiritual...

                                          A força do oriente vinda da poesia e das canções de Rabindranath Tagore

Quanto ao divórcio entre a informação intelectual e a vida espiritual, tão predominante na educação ocidental, lemos na gravação do vídeo partes importantes, restando-nos acrescentar as ideias certeiras de Jaime Tudela de Castro quanto ao segredo do sucesso de Rabindranath Tagore na educação das crianças ser o da simpatia por elas e a vontade de as tornar felizes, de modo que na escola de Shantiniketan «o medo e o constrangimento são preteridos pelo esforço de proporcionar-lhe todas as liberdades tendentes a facultar-lhe o despertar de boas energias existentes em todas elas em maior ou menor grau».
É bem valioso o resumo que Tudela de Castro faz do Jardineiro do
Amor, uma das obras primas de Rabindranath Tagore e onde ele canta e aprofunda o amor em si, entre o homem e e mulher e entre os humanos e os animais e a Natureza. Quanto a Gitanjali, Oferenda Lírica (da qual Fernando Pessoa possuía um exemplar, com uma anotação-sublinhado inicial e alguns esboços de tradução de poemas), e Sadhana, ou A Realização da Vida,  diz-nos que «são o testemunho mais concreto da sua constante comunhão com o Brahman», a Divindade. Já a Casa e o Mundo, também traduzida entre nós, considera-a como um magistral romance de crítica aos nacionalismos fanáticos, e finaliza sintetizando esta segunda parte da conferência e livro com um dos famosos poemas de Gitanjali, no qual partilha a sua visão da liberdade para a sua pátria-mátria, e que brevemente apresentaremos e comentaremos neste blogue.

A 3ª e última parte, a mais pequena, intitula-se A Escola de Tagore ou a vida do ashram e, embora na gravação de vídeo tenhamos lido e comentado alguns aspectos, acrescentaremos agora ainda em transcrição dois parágrafos valiosos: um no qual Rabindranath Tagore, acerca da metodologia de sucesso que um professor de 19 anos tinha com os alunos, escreveu: «ele lia-lhes coisas que a si próprio interessavam, sabendo perfeitamente que nunca é indispensável que as crianças as compreendam à letra e em todos os detalhes, mas o que o que é preciso é que os seus espíritos [e diríamos almas] acordem».
No texto logo a seguir  Jaime Tudela de Castro reflecte o seu amor às crianças, tanto mais que era pediatra, e  é bem valioso para quem
se interessa pelo despertar e orientar das jovens almas: «Efectivamente uma das inovações de Shantiniketan é a forma como ali se administra o ensino: a maior parte dos conhecimentos são adquiridos pela acção  indirecta do sub-consciente.  O extracto duma carta do Poeta diz: "Nós fiamo-nos mais na influência da Natureza sobre o sub-consciente, nas associações de ideias que o ambiente suscita e na vida diária de adoração que levamos, do que em qualquer esforço consciente para ensinar." E isto porque Tagore está convencido "que na criança a mentalidade inconsciente é mais activa do que o intelecto consciente..." que a necessidade fundamental é haver "uma atmosfera de cultura e não um método formalista de ensino".» E de facto podemos dizer que mesmo nos nossos dias, estas atmosferas harmoniosas e inspiradoras faltam bastante em muitos locais e instituições onde se ensina e aprende, onde se lê e dialoga, até porque muita gente liga pouco ao ambientes psíquicos e naturais em que está ou é envolvida, por falta de  autoconsciência e discernimento activos.
Rabindranath Tagore ensina de preferência os seus alunos a
aprenderem directamente pela contemplação das belezas da criação, deixando os livros para segundo lugar, pois como ele diz, " o livro tem os seus limites e os seus perigos. No período inicial da sua educação é sobretudo à Natureza que criança deve ir buscar o seu conhecimento.»
Concluamos: «Qualquer que seja o ideal dos habitantes do ashram,
pois entre eles há pessoas de religiões diferentes, uma única voz as une na sua oração suprema: "Shantam, Shivam, Advaitam", Paz eterna, Bondade Eterna, Único!», e que nos traduziríamos por Paz (shanti), Beatitude ou Felicidade (Shiva, embora Shiva signifique também um dos três Deuses da Trimurti, e auspicioso e consciência pura e beatífica) e Unidade ou não dual (Advaita)!

Anote-se que em três das vezes que compulsei ou li este livro de Jaime Tudela de Castro sobre a abóbada da Paz de Rabindranath Tagores, anotei-o, deixando-lhe assim uma valiosa marginália. Eis a da segunda, que hoje já 15/08/22, subitamente descobri e transcrevi: «Om, hoje 10 de Junho, Domingo, anotando na agenda [diário] para a nova viagem os escritos sobre Tagore, abro-te aqui, ò livro, ò incarnação passada. Cá estamos de partida, a 16 de Junho de 1995, para a Índia. Entre este escrito e o anterior quatro viagens à Índia, certa evolução espiritual, mas em quê? Desapego, não ilusão, aspiração a Deus, os livros [de inéditos de Fernando Pessoa] feitos e sobretudo uma capacidade maior de iluminação, que espero actualizar fortemente agora na Índia. Escrevo ao sol da Av. de Sintra 923, [Cascais]. Penso ir a Shantiniketan, vibrar lá, escrever e um dia voltar aqui a esta página e acrescentar as impressões e impulsões adequadas para mim e para ti. Om.»... 

19.VIII. 20023. Espero cumprir tal voto e  passar para o computador um dia destes, já que estive mesmo em Shantiniketan, alguns diálogos registados no diário manual dessa peregrinação à Índia em 1995.

E eis o vídeo acerca do livro, com suas partes lidas e aqui não transcritas:

                       

terça-feira, 17 de maio de 2022

Fernando Leal e o poema de consagração do bispo de Cochim, D. Mateus de Oliveira Xavier, em Goa, 1898. Transcrito, lido e comentado em video por Pedro Teixeira da Mota.

Fernando Leal, 1846-1910, numa fotografia de 1906, em Velha Goa.

Fernando Leal, o desbravador de caminhos africanos, o tradutor e escritor de francês, o poeta e amigo de Antero de Quental, o militar valeroso, já regressado a Goa e casado (a conselho de Antero), quando atingira os 52 anos de idade deixou a sua inspiração anímica elevar-se em bênção, ou invocação de bênçãos para  o novo bispo de Cochim, Mateus de Oliveira Xavier, doze anos mais novo que ele, e talvez com tanta força e justeza, que o prelado viria tanto a ascender aos mais elevados graus hierárquicos da Igreja na Índia e Oriente como a manifestar ao longo da vida todas as qualidades ou virtudes invocadas e auguradas por Fernando Leal, que assim cumpria a "sua missão" ou, como se diz na Índia, o seu swadharma, de poeta vidente, de rishi, capaz de ver nos planos espirituais e passar à palavra, ao ritmo, ao sentimento e à mente que movem, isto é, a tornar-se mensageiro e mensagem.

 Não sabemos da amizade que os uniu, dos diálogos havido, do amor divino ou crístico que poderão ter comungado, mas através deste exemplar da Homenagem à sagração episcopal de D. Mateus de Oliveira Xavier, acontecida e publicada curiosamente nos 400 anos da descoberta do caminho marítimo, chega-nos a caligrafia-grafologia de Fernando Leal, na dedicatória autógrafa  ao notável deputado e ministro Francisco Felisberto Dias Costa, bem como a imagem do ilustre prelado, na força dos seus 40 anos, fotografia de uma qualidade grande pois tendo passado mais de cento e vinte anos mantêm-no a brilhar, nítido e vivo para a nossa visão do séc. XXI, permitindo-nos assim compreender um pouco mais estas duas almas tão valiosas e exemplares.

O poema foi lido e comentado por mim, e encontra-se no vídeo fínal de dezoito minutos, mas transcrevo-o em seguida, certamente discordando de pequenos aspectos, tal o apontamento distorcido da religião grega, tomando as nuvens por Juno, mas com outros bem valiosos, pelo que invocaremos as bênçãos dos dois,  e enviamos-lhes a nossa gratidão, lembrando que o bispo de Cochim nascera em Vila do Rei em 14 de Outubro de 1858 e viveu abnegadamente até 19 de Maio de 1929...

                        

«Aceita neste dia o meu sincero preito,
Sincero sim, por vir de quem sempre é, por jeito,
Ensino e vocação, melhor fundibulário
Contra magnates maus, do que turibulário;
Mas tu mereces preito, homem simples e bom,
Erudito e modesto, e que falas em tom
Singelo e fraternal a fracos indigentes.
Teus modos são gentis, revelam quanto sentes
Com pureza e humildade, aproveitado aluno
Do humilíssimo Jesus.

                           Não tens ares de Juno,
O mito da altivez inepta e sobranceira,
A deusa vingativa, orgulhosa e altaneira
Do paganismo heleno,  - ou ares de pavão
Que a si mesmo consagra um culto egoísta e vão.

Por isso te respeito, acato, prezo e admiro,
Apóstolo de Cristo!

                            A púrpura de Tiro
Fica-te bem a ti, e ficar-te-ia a palma
Como prémio devido à tua amável alma.
Sacerdote exemplar de virtudes singela,
Lembras de Zurbaran as sugestivas telas
com vultos monacais de pálidos ascetas,
Cismadores perfis de místicos poetas,
Teu rosto pensativo, espelho da tua alma,
Retrata claramente uma consciência calma.

Vai pois, manso pastor, aguardam-te as ovelhas,
Surgem para Cochim as cambiantes vermelhas
De uma aurora de paz, de crença, amor e esperança;
Piloto de almas, vai levar-lhes a bonança;
Com o farol da fé, vai salvar teus fiéis;
Livra-os do mar da vida e dos seus mil parceis [escolhos];
Cumpre a missão augusta, aponta-lhes a Cruz,
Mostra-lhe que só Ela ao porto nos conduz
Da bem-aventurança infinda e eterna glória;
E mostra-lhe que a vida é pausa transitória
Nesta navegação terrível do infinito;
Que além da morte deve estar o nosso fito;
Que a barca de São Pedro, açoutada pelas vagas,
Num tempo em que a ciência audaz lhe roga pragas,
Não pode naufragar; flutua, não soçobra,
Apesar da impiedade e sua infernal obra...

Vai. Dá pouco dinheiro a pompas vãs da Igreja,
E aos pobres muito, mas sem que ninguém o veja;
Deus quer a caridade, e quer sinceras preces,
P'ra que o diabo não lhe ceife humanas messes;
Mas não precisa Deus de festas dispendiosas;
O criador, que fez estrelas e fez rosas,
Tem o seu templo sempre ornado e perfumado;
É de abóbada azul e todo iluminado
Por candelabro, sois e alâmpadas estrelas,
Como templo nenhum do mundo pode tê-las.

Vai. Prega com a palavra e prega com o exemplo;
Torna fácil ao povo e amado o acesso ao templo;
Hipócrita não és, nem bonzo intolerante;
Tua alma é forte e sã, pura como um diamante;
Tu não olvidarás as procedências tuas;
Além da pátria eterna, o padre tem mais duas,
Aquela onde nasceu, e outra, a Roma Cristã;
Há quem olvide aquela... A tua mente é sã;
Amas a liberdade e a luz, por natureza
:
Tu não renegarás a pátria portuguesa;
Honrarás o teu país nessa mesma Cochim
Que viu desbaratado o grande Samorim,
Com todo o seu poder, por um Pacheco intrépido.

*

Corre-me o sangue mais fremente, rubro e tépido,
Quando me lembro dos heróis de Combalão;
Que sublimes heróis, corações de leão!
Povo nenhum os teve assim, nem tem maiores
Que importa, ó pátria minha amada, que hoje chores
O teu abatimento?!
 
Eia! Ressurgirás,
Terra de meus avós! Bem cedo te erguerás;
Viram-te erguida já, numa atitude bela,
As estranhas nações - em Magul e Coolela!
Os tempos são enfim chegados: Portugal
Renasce, e esta nação revela-se imortal.
 
Salvé, pátria do Gama e Afonso de Albuquerque!
Se há traidor que te venda e chatim que te merque,
Desfarás com um sopro o pacto vil e os Judas;
No forte coração do povo teus te escudas...
 
*
Sagra-se hoje, Matheus, a tua prelazia.
Predestinado nome, é uma profecia.
Nome de evangelista, e apóstolo, Xavier;
Como que o teu baptismo o determina e quer;
Honra o nome que tens, prega a santa palavra;
O torpe sensualismo em todo o mundo lavra;
Combate-o sem quartel na tua diocese;
Faz que o teu rebanho o abandone e despreze.
 
E ele te elegerá, no fundo da alma, o povo,
Para seu bispo, como ao tempo em que era novo
O Evangelho, os fiéis nomeavam seus prelados,
E quando os dias teus estejam consumados
Eleja-te enfim Deus para a glória celeste,
Por o mal que evitaste e p'lo bem que fizeste».
  Ei-nos com um belo e sábio poema do qual destacaremos sucessivamente a confissão de Fernando Leal de ser mais um crítico social do que um incensador da religião, de admirar a simplicidade e sinceridade, a bondade e a fraternidade de Mateus Xavier, de reconhecer nele, pela sua calma e erudição, fé e abnegação, um farol de luz que guia o caminho dos peregrinos desta curta mas terrível vida, rumo "à bem aventurança infinda e eterna."  Muito actual e bela é ainda sua caracterização da alma justa do novo bispo: 
" A tua mente é sã;
Amas a liberdade e a luz, por natureza:
Tu não renegarás a pátria portuguesa."
 
 Por fim anote-se a visão democrática forte de Fernando Leal, lembrando os tempos primordiais do Cristianismo quando a assembleia local dos fiéis elegia os seus sacerdotes e  representantes.
  E comungando com Fernando Leal e D. Mateus de Oliveira Xavier, meditemos e realizemos o mantra ou lema transmitido: «Eleja-te Deus para a glória celestial, por o mal que evitaste e p'lo bem que fizeste»... Ámen em todos nós...

                     

domingo, 15 de maio de 2022

Lizelle Reymond: Sri Anirvan, vida e ensinamento no ashram de Himavat, em Almora. "A Vida na Vida."

                                                 
A visão mais intimista e próxima que Lizelle Reymond nos oferece do mestre indiano Sri Anirvan, já q
ue viveu com ele cinco anos no centro ou ashram que criaram, Himavati, em Almora, perto dos Himalaias, complementa os dados que fornecemos num recente artigo a partir do  prefácio de Ram Swarup à compilação de estudos por ele editados de Sri Anirvan, intitulada Budhi Yoga of the Gita and others essays, 1983.
                                            
Ora Lizelle Reymond nascida em 30 de Junho 1899, em Neuchâtel, Suíça, e que permanecer
á incarnada até 24 de Junho 1994, com uma vida bem criativa, atraída para a Índia desde cedo, publicando até, em França, com Jean Herbert e por si só, textos sobre mestres e ensinamentos indianos, nomeadamente um livro sobre a discípula principal de swami Vivekanananda, sister Devita, antes de conhecer a Índia, onde estará desde 1947, trabalhando em Calcutá com os monges da Missão Ramakrishna no acolhimento dos refugiados aquando da partição da Índia e Paquistão e  traduzindo  textos de sânscrito.   

 Será só depois, quando instalada na zona himalaica, e estando perto de Almora, ao ser informada da existência de um guru valioso a 90 km, é que decidirá entrar em contacto por escrito com ele, assim descobrindo Sri Anirvan,  um mestre dominando o inglês e com formação védica e samkhya e com tendência baul, a dos místicos errantes e musicais de Bengala, plenos de independência. Depois de a ter acolhido por três dias,  quando se encontraram daí a dois meses em Calcutá, Sri Anirvan aceitou-a como discípula, conforme Lizette nos conta: uma encruzilhada de vida, «em que a avaliação da direcção a seguir dependia inteiramente da pergunta: "Onde está o meu lugar neste universo?" Não me recordo se pronunciei estas palavras em voz alta, mas Sri Anirvan respondeu:"Creio que nesse ponto posso ser-lhe útil..."
                                               
«Ao ouvir estas palavras, a minha decisão foi imediata. Trabalharia com Sri Anirvan, a
o permitir-me, não importa onde e em que condições. Ofereceu-me o poder reunir-me a ele seis meses depois, na ermida que eu já conhecia. Nada foi dito do lapso de tempo que passaria entre o momento da minha decisão e o da minha partida para os Himalaias. Durante este período todas as correntes adversas se desencadearam para impedir-me de seguir o meu caminho»

Mas conseguiu chegar, com o programa já definido por carta: «Estarei livre para si duas vezes ao dia, a primeira depois das 17.00, antes que chegue um do meus amigo. Sem me molestar ele senta-se, faz uma pergunta de vez em quando e medita. A segunda vez será depois da comida da noite. Sei que teremos de estudar juntos muitos pontos, mas se o fizermos com regularidade e método, uma hora bastará. Fora disso, a casa estará submergida no silêncio do Vazio, sem que possa sequer supor que alguém vive ao seu lado...»
Estava porém rodeada dos eternos companheiros nossos: «as paredes
do meu quarto e do de Sri Anirvan estavam cobertas de livros. Uma biblioteca classificada por temas, talvez uns 4.000 volumes sobre temas esotéricos das tradições orientais. Tinha tirado à sorte alguns livros, mais para evadir-me dos meus pensamentos, que para estudar. Sri Anirvan deixava-me fazê-lo. Via-me viver sem interferir.» O que terá sucedido a essa tão valiosa biblioteca?

                                           Vie Dans La Vie (La) (Collections Spiritualites) (French Edition): Reymond,  Lizelle, Anirbana: 9782226019738: Amazon.com: Books

       Estará assim como discípula cinco anos, numa aprendizagem  que  relatara na  obra La vie dans la vie, dada à luz na Suíça em 1969, traduzida como Life within life, ou mesmo Vida en la Vida, já que a li numa edição argentina impressa em 1973 oferecida pelo meu tio Alfredo que fora diplomata  na Argentina, e da qual transcreverei então algumas partes valiosas para quem se interessa pelo caminho espiritual e particularmente as tradições ou vias da Índia. Posteriormente a esse seu livro deu à luz outras obras sobre Sri Anirvan e o seu ensinamento.

A obra foi escrita a partir do cadernos de notas, «relatando a maneira em que servi a um mestre e co
mo fiz o meu ingresso numa disciplina espiritual segundo o ensino samkhya transmitindo-nos as principais vivências que aconteceram nesse ashram ou eremitério onde não havia nem altar, nem imagens de deuses, a não ser um horizonte de montanhas azuis que entrava pelas janelas, e que concomitantemente não apelava a devoção, nem gratidão «mas apenas a sentir-me só e nua na minha própria vida interior. E o seu olhar mantinha-me na consciência desse momento, sem escapatória possível».
O seu ensinamento visava que ela descobrisse no silêncio a sua
shakti ou poder interno, abrisse as pétalas do seu coração e fosse livre na sua criatividade e expressão. Ou como lhe escreveu numa carta a propósito do centro que estavam a começar: Não poderia suportar que o ashram de Haimavati se torne um lugar de férias, pois deve ser um fonte verdadeira na qual, uma pessoa submergindo-se encontra-se face a face com a morte. E o trabalho [ou sobretudo os trabalhos...]. Este trabalho não é por um pretexto ligeiro. Trata-se do trabalho interior ao ritmo do coração de vida. esse ritmo é criação. Por ora a Lizette só pode fazer uma coisa: criar em si mesma um respeito pelo seu próprio trabalho, pelos eu esforço, no silêncio e na disciplina vislumbrada... A ideia de estabelecer um centro de estudos no qual se estudaria paralelamente o hinduísmo e o islão, onde se receberiam os investigadores que consagrariam a sua vida, ou uma parte dela a recolher textos desconhecidos até então, a traduzi-los e a fazê-los publicar nas Universidades da Índia que se interessassem».

Narrando alguns aspectos da vida de Sri Anirvan, relembra como este após dez anos com o seu guru começou a sentir dolorosamente que ele estava a ficar demasiado apanhado na obra e organização, pedindo-lhe então que meditasse, que se retirasse uns tempos, mas em vão, pelo que resolveu partir. Quando se tornaram a encontrar no Assam, o guru compreendeu-o, «abençoou-o e deu-lhe plena liberdade para seguir o seu caminho solitário.  Tornara-se um atyashrami, um dos que está acima de todas as regras e de todas as disciplinas das ordens estabelecidas e que são reconhecidas pela tradição. Convivendo com sufis e hindus, «com o seu rosto delgado realçado  por uma ampla barba e uma veste branca, era tomado ora por um pir muçulmano ora por um sadhu. Ele sorria ante a sua própria liberdade numa sociedade cheia de tabus. Permitia que se estabelecesse um contacto directo com as pessoas, mas ao mesmo tempo assemelhava-se a uma concha vazia cheia com o som do oceano. Ouvi-o dizer: «Que estranha experiência! Não posso ligar-me a nada. As pessoas estão em mim mas não eu nelas..»
Acerca da compreensão grave da sua sincera tarefa ou trabalho de
ensinar, tão ao contrário do que se passa contemporaneamente, seja na Índia,  Portugal ou Ocidente, escreveu numa linha ainda de não-violência bem profunda: «O que a gente espera de mim quiçá não se realizará. Mas não posso ser senão íntegro comigo mesmo e sincero com os outros. Faço tudo o que posso para não ferir a ninguém; contudo, cada um dos nossos movimentos cria uma reacção, por mais ligeira que seja. Não podemos evitá-la. Tudo o que podemos fazer é aceitá-la de bom grado sem criar complicações».
                                    
Viver num ashram em pleno natureza e sob os raios bem luminosos de Himavat é certamente uma bênção e havendo nele ora pessoas eruditas como muito simples, Sri Anirvan discerniu bem que «esta gente simples alimenta-se da essência do espírito que para eles, de uma maneira natural, toma uma densidad
e da matéria. Esta ideia é anterior a toda a ideia de poder [religioso] que tenha forma. Nos Vedas, não é todavia uma matéria pesada. É espírito e é da sua essência que nasce [a concepção d']a Mãe Divina. A gente simples não o esqueceu, já que a sua química é mais real que a nossa; estão melhor alimentados que nós!», compreendendo assim que a não acumulação de dados intelectuais artificiais permitia uma visão mais pura e essencial da omnipresença espiritual na natureza.
A uma vida de simplicidade assente numa alimentação da psique
pelos vegetarianismo tinha não uma oração antes de se começar a refeição mas a regra de que o primeiro bocado de arroz que se comia era levantado à frente como uma saudação ou oferecimento de graças e os quatro bocados [ou ocidentalmente, colheres] seguintes eram acompanhados da recitação de certos versículos  da Bhagavad Gita. Outras regras práticas da vida no ashram era não se secar a roupa sobre pedras, arbustos ou o tecto, nem atirar para o jardim cascas ou restos de comidas.
Quanto a iniciação, diksha, valorizava não só os valores internos
anímicos que nos permitiam aproximar-nos de tal sacramento  mas também ao compromisso voluntário de avançar numa disciplina espiritual determinada, algo que muita gente no Ocidente pouco realiza ora deslumbrado por iniciações e graus iniciáticos, ou em seguir sucessivos mestres geralmente mais de aparências do que de ascese, amor ou realização, quando o mais importante é o desenvolvimento e intensificação da consciência numa assimilação harmoniosa com a vida que nos envolve.
                                
Infelizmente ao fim de cinco anos d
ando-se conta que o projecto não conseguia realizar-se, os discípulos, dadas as grandes distâncias a percorrer, ou por outras razões, vinham pouco, Sri Anirvan conclui "que era o fim de Himavat. A experiência tinha sido concluída", "a grande Natureza (Prakriti) da Índia não estava madura. Tudo está fragmentado. Mas apesar de não haver unidade no Tempo, o sonho nascera e era poderoso, apesar de faltar-lhe corpo. O que somos nós no  jogo das grandes forças em acção?» E antes de se despedirem numa paragem de autocarro, partindo ele primeiro e ela ficando ainda uns dias a liquidar a existência do ashram, dir-lhe-á que Himavata continuava a existir como um ideia verdadeira de um centro cultural de vastos horizontes  e um local de retiro para os que demandavam o caminho espiritual e que outros o realizariam, ou ela na Europa, recomendando-lhe até a ligar-se aos discípulos de Gurdjieff e de Ouspensky, como de algum modo veio a suceder-lhe,  com os livros que publicou ou o que ensinou (nomeadamente o Tai Chi), mas isso ficará talvez para um dia que nos acerquemos mais desta corajosa e pioneira orientalista e espiritual... 

Himavat, vista espiritualmente por Bô Yin Râ. A demanda de tal realidade e realização continua viva e a desafiar-nos, e na satsanga ou sampradaya com Sri Anirvan e Lizelle Reymond....    Om Shiva Shakti Om..

sábado, 14 de maio de 2022

Uma Himavat, por Telo de Mascarenhas, em "Kailasha, Contos e Lendas do Hindustão", 1937.

Telo de Mascarenhas foi um notável pensador e escritor nascido em Mormugão, Índia portuguesa, em 1899, e que se veio a licenciar em Direito, na Universidade de Coimbra, em 1930,  advogando e traduzindo depois, sendo a sua 1ª obra  de poesia, Cantares de Amor. Dinamizador dos movimentos culturais goeses ou indianos em Portugal, podemos dizer que foi um valioso divulgador da sabedoria védica e hindu, já que nas suas obras partilha muitos conhecimentos do Sanatana Dharma, ou da Tradição perene da Índia e fê-lo com um grupo de goeses, nos quais se destacou Adeodato Barreto (3/12/1905 a 6/8/1937), fundando o Centro Nacionalista Hindu (em 1926, ainda antes do Estado Novo...), o Instituto Indiano, e a 7 de Maio de 1928 o 1º número do jornal Índia Nova, com as bênçãos em carta de Rabindranath Tagore, no artigo-editorial assinado por Telo de Mascarenhas, que as traduziu, tal como um poema. Deram à luz também  as Edições do Oriente.

Se uma das suas obras, A Mulher Hindu, aparece bastante no circuito alfarrabista,o mesmo já não se passa com o seu livro impresso em 1937, nas tão cuidadas ou belas Edições Oriente, intitulado Kailasha.  Contos e Lendas do Hindustão, onde no fim anota nas obras publicadas Cantares de Amor.   E a sair brevemente: Índia Mística (Cristna e Buda). Claridades (Perfis e Debuxos), Parvati (Novela de costumes indús), O Pensamento Nacionalista da Índia Nova, que ficaram em projecto ou inéditas. O que publicou mais foram traduções de contos indianos e de obras de Rabindranath Tagore, recriações das lendas e histórias (Rama e Sita), bem como  em 1943 a biografia Mahatma Gandhi, História da minha vida, que já deve ter feito comichão aos pulhígrafos da época....
Infelizmente a independência da Índia em 1948, se o fez
regressar a Goa, e depois para Bombaim em 1950, onde viveu  alguns anos feliz e dinâmico, acabou por o encaminhar para a prisão em  Goa, em 1959, sendo depois enviado para Portugal, para a prisão de Caxias, donde só veio a sair em liberdade em 1970, quando o trocaram por um padre português o padre Chico (P. Francisco Monteiro), que se recusava desde 1961 a assumir a nacionalidade indiana e abandonar a portuguesa. Curiosamente, peregrinando na Índia, já há umas décadas estive com ele, o Padre Filinto Dias e o Padre Alberto de Mendonça, em animado diálogo, num lar para sacerdotes no Alto do Porvorém. 

                                           

Embora tenha sido lastimável que as tão elevadas qualidades de Telo Mascarenhas tivessem sido tão oprimidas, pois só em 1970, com Goa livre do governo português, é que Telo de Mascarenhas pode inspirar e expirar livre e criativamente, até em 1979 partir para os mundos subtis, ficaram-nos contudo imorredoiramente alguns livros seus bem valiosos (o exemplar em cima com a sua bela caligrafia), e é do Kailasha que vamos transcrever a   recriação da lenda de Uma Himavat que recentemente, num artigo dedicado a Sri Anirvan mencionáramos, pois este mestre (1896-1978), na sua primeira experiência espiritual,  aos sete anos,  viu uma jovem de sublime  beleza que o deixou siderado, sem saber se era visão física ou visão espiritual, tornando-se-lhe um sinal do mistério divino,  e a sua musa ou guia no caminho, chegando a dizer que «a sua graça foi a luz da minha vida durante muitos anos», considerando-a uma visão da Deusa, da Mãe Divina, Uma Haimavati, descrita na Kena Upanishad, e que  teria sido fruto de uma visão intuitiva, prajna.

                                                 Nenhuma descrição de foto disponível.

Ora Uma Himavati, que significa o brilho ou o resplendor dos Himalaias, ou da montanha gelada, e que a discípula e biógrafa de Sri Anirvan, Lizette Reymond, ao narrar porque é que seu mestre Anirvan escolhera  tal nome para o ashram ou eremitério onde viveram cinco anos em Almora (onde eu passei indo para o ashram de Sri Krishna Prem, em Mirtola, e dialoguei com o seu discípulo Sri Madhava Ashish), Uma Himavat, explicou-o como a "brancura imaculada da neve que se derrama" na região himalaica. A esta Uma Himavat, mulher ou consorte de Shiva, a auspiciosidade, a quem eu dediquei um poema neste blogue, vai então Telo de Mascarenhas evocar,  com a sua sensibilidade e sabedoria, a partir de uma das versões lendárias. 

Oiçamo-lo então, com a flor ou graal do coração aberto e para vivermos mais em amor, e sintonizarmos os Himalaias, de que o Kailash é um dos picos mais altos (6.713 m.) e sagrados, e do qual Himavat é tanto o nome mítico da montanha, e do seu ser ou rei, ou ainda da sua contraparte subtil e espiritual, como assevera o autor da última imagem deste artigo, o pintor Bô Yin Râ: 

                                                 Kailasha

«Himavat, o rei das montanhas do Himalaya, e Menaka, a rainha, tiveram uma filha graciosa como uma flor de Nandana, paraíso de Brahma, e dir-se-á uma deusa que tivesse vindo povoar a terra para o encanto dos mortais.
O rei chamava-lhe Parvati; mas a rainha Menaka dava-lhe um nome mais doce, todo encanto, todo carinho - chamava-lhe Uma, quer dizer Mãe.[Ou esplendor, serenidade.]
Um dia Shiva, o Deus sábio, o Deu piedoso e mendicante que erra de porta em porta como o mais pobre dos mortais, chegou ao Himalaya, e quedou-se nas suas meditações longas e calmas como os picos alterosos das montanhas.
Parvati, a graciosa filha de Ménaka, pôs-se ao serviço de Deus, e todas as manhãs enfiava em contas grãos de lótus orvalhados em que Shiva rezava as suas orações.
Parvati amava Shiva, o Deus de cabeleira coroada do crescente e de flores de cássia, donde jorra o sagrado rio Ganges, e em sua honra pintou as unhas do laca, os olhos do anguru colírio, e pôs no seu coração virgem um fundo desejo de se unir a Ele, que era todo bondade, todo pureza.

Enfim, a Primavera aflorou as montanhas doirando as neves eternas e vestindo de galas pagãs a natureza, e o perfume ardente das flores do deodarà [cedro] a cuja sombra o Deus meditava, segredou-lhe o amor de Parvati.
E quando as suas longas e calmas meditações chegaram ao termo, Shiva entreabriu os olhos, e os seus olhos poisaram sobre Parvati sentada aos seus pés humilde e submissa, virgem e núbil como uma oferenda de sacrifício.

E sob o véu de lilás de neblina dum dia florido de Primavera, trocaram o seu primeiro olhar de núpcias, olhar de bom agouro, todo impregnado de carinho, amor e desejo.
E kalpas após kalpas [ciclos de tempo], ao cair da tarde, acompanhado do coro divino, em que Sarasvati toca o viná, Brahmá, os címbalos marcando o compasso, Indra, a flauta, Vishnu, o tambor, e Lakshmi, uma flor de lótus na mão, entoa o cântico da tarde, e rodeado de todos os Deuses, Çulapani, o magnâmimo Deus Shiva, colocando a Mãe dos Três Mundos [físico, subtil e espiritual], a sua divina Esposa Parvati, no trono de oiro incrustado de pedrarias, dança a sua dança do crepúsculo na sua mansão, no cimo do Himalaya, na Montanha de Prata, no Kailasha.»
Possa a dualidade complementar de Shiva e Shakti, ou Uma, ou Parvati, ser realizada harmoniosamente em nós e por nós, e pelo mundo...       ...  Aum Shiva Shakti Aum ...  
"Himavat", por Bô Yin Râ.