A visão mais intimista e próxima que Lizelle Reymond nos oferece do mestre indiano Sri Anirvan, já que viveu com ele cinco anos no centro ou ashram que criaram, Himavati, em Almora, perto dos Himalaias, complementa os dados que fornecemos num recente artigo a partir do prefácio de Ram Swarup à compilação de estudos por ele editados de Sri Anirvan, intitulada Budhi Yoga of the Gita and others essays. 1983.
«Ao ouvir estas palavras, a minha decisão foi imediata. Trabalharia com Sri Anirvan, ao permitir-me, não importa onde e em que condições. Ofereceu-me o poder reunir-me a ele seis meses depois, na ermida que eu já conhecia. Nada foi dito do lapso de tempo que passaria entre o momento da minha decisão e o da minha partida para os Himalaias. Durante este período todas as correntes adversas se desencadearam para impedir-me de seguir o meu caminho»
Mas conseguiu chegar, com o programa já definido por carta: «Estarei livre para si duas vezes ao dia, a primeira depois das 17.00, antes que chegue um do meus amigo. Sem me molestar ele senta-se, faz uma pergunta de vez em quando e medita. A segunda vez será depois da comida da noite. Sei que teremos de estudar juntos muitos pontos, mas se o fizermos com regularidade e método, uma hora bastará. Fora disso, a casa estará submergida no silêncio do Vazio, sem que possa sequer supor que alguém vive ao seu lado...»
Estava porém rodeada dos eternos companheiros nossos: «as paredes do meu quarto e do de Sri Anirvan estavam cobertas de livros. Uma biblioteca classificada por temas, talvez uns 4.000 volumes sobre temas esotéricos das tradições orientais. Tinha tirado à sorte alguns livros, mais para evadir-me dos meus pensamentos, que para estudar. Sri Anirvan deixava-me fazê-lo. Via-me viver sem interferir.» O que terá sucedido a essa tão valiosa biblioteca?
Estará assim como discípula cinco anos, numa aprendizagem que relatara na obra La vie dans la vie, dada à luz na Suíça em 1969, traduzida como Life within life, ou mesmo Vida en la Vida, já que a li numa edição argentina impressa em 1973 oferecida pelo meu tio Alfredo que fora diplomata na Argentina, e da qual transcreverei então algumas partes valiosas para quem se interessa pelo caminho espiritual e particularmente as tradições ou vias da Índia. Posteriormente a esse seu livro deu à luz outras obras sobre Sri Anirvan e o seu ensinamento.
A obra foi escrita a partir do cadernos de notas, «relatando a maneira em que servi a um mestre e como fiz o meu ingresso numa disciplina espiritual segundo o ensino samkhya transmitindo-nos as principais vivências que aconteceram nesse ashram ou eremitério onde não havia nem altar, nem imagens de deuses, a não ser um horizonte de montanhas azuis que entrava pelas janelas, e que concomitantemente não apelava a devoção, nem gratidão «mas apenas a sentir-me só e nua na minha própria vida interior. E o seu olhar mantinha-me na consciência desse momento, sem escapatória possível».
O seu ensinamento visava que ela descobrisse no silêncio a sua shakti ou poder interno, abrisse as pétalas do seu coração e fosse livre na sua criatividade e expressão. Ou como lhe escreveu numa carta a propósito do centro que estavam a começar: Não poderia suportar que o ashram de Haimavati se torne um lugar de férias, pois deve ser um fonte verdadeira na qual, uma pessoa submergindo-se encontra-se face a face com a morte. E o trabalho [ou sobretudo os trabalhos...]. Este trabalho não é por um pretexto ligeiro. Trata-se do trabalho interior ao ritmo do coração de vida. esse ritmo é criação. Por ora a Lizette só pode fazer uma coisa: criar em si mesma um respeito pelo seu próprio trabalho, pelos eu esforço, no silêncio e na disciplina vislumbrada... A ideia de estabelecer um centro de estudos no qual se estudaria paralelamente o hinduísmo e o islão, onde se receberiam os investigadores que consagrariam a sua vida, ou uma parte dela a recolher textos desconhecidos até então, a traduzi-los e a fazê-los publicar nas Universidades da Índia que se interessassem».
Narrando alguns aspectos da vida de Sri Anirvan, relembra como este após dez anos com o seu guru começou a sentir dolorosamente que ele estava a ficar demasiado apanhado na obra e organização, pedindo-lhe então que meditasse, que se retirasse uns tempos, mas em vão, pelo que resolveu partir. Quando se tornaram a encontrar no Assam, o guru compreendeu-o, «abençoou-o e deu-lhe plena liberdade para seguir o seu caminho solitário. Tornara-se um atyashrami, um dos que está acima de todas as regras e de todas as disciplinas das ordens estabelecidas e que são reconhecidas pela tradição. Convivendo com sufis e hindus, «com o seu rosto delgado realçado por uma ampla barba e uma veste branca, era tomado ora por um pir muçulmano ora por um sadhu. Ele sorria ante a sua própria liberdade numa sociedade cheia de tabus. Permitia que se estabelecesse um contacto directo com as pessoas, mas ao mesmo tempo assemelhava-se a uma concha vazia cheia com o som do oceano. Ouvi-o dizer: «Que estranha experiência! Não posso ligar-me a nada. As pessoas estão em mim mas não eu nelas..»
Acerca da compreensão grave da sua sincera tarefa ou trabalho de ensinar, tão ao contrário do que se passa contemporaneamente, seja na Índia, Portugal ou Ocidente, escreveu numa linha ainda de não-violência bem profunda: «O que a gente espera de mim quiçá não se realizará. Mas não posso ser senão íntegro comigo mesmo e sincero com os outros. Faço tudo o que posso para não ferir a ninguém; contudo, cada um dos nossos movimentos cria uma reacção, por mais ligeira que seja. Não podemos evitá-la. Tudo o que podemos fazer é aceitá-la de bom grado sem criar complicações».
Viver num ashram em pleno natureza e sob os raios bem luminosos de Himavat é certamente uma bênção e havendo nele ora pessoas eruditas como muito simples, Sri Anirvan discerniu bem que «esta gente simples alimenta-se da essência do espírito que para eles, de uma maneira natural, toma uma densidade da matéria. Esta ideia é anterior a toda a ideia de poder [religioso] que tenha forma. Nos Vedas, não é todavia uma matéria pesada. É espírito e é da sua essência que nasce [a concepção d']a Mãe Divina. A gente simples não o esqueceu, já que a sua química é mais real que a nossa; estão melhor alimentados que nós!», compreendendo assim que a não acumulação de dados intelectuais artificiais permitia uma visão mais pura e essencial da omnipresença espiritual na natureza.
A uma vida de simplicidade assente numa alimentação da psique pelos vegetarianismo tinha não uma oração antes de se começar a refeição mas a regra de que o primeiro bocado de arroz que se comia era levantado à frente como uma saudação ou oferecimento de graças e os quatro bocados [ou ocidentalmente, colheres] seguintes eram acompanhados da recitação de certos versículos da Bhagavad Gita. Outras regras práticas da vida no ashram era não se secar a roupa sobre pedras, arbustos ou o tecto, nem atirar para o jardim cascas ou restos de comidas.
Quanto a iniciação, diksha, valorizava não só os valores internos anímicos que nos permitiam aproximar-nos de tal sacramento mas também ao compromisso voluntário de avançar numa disciplina espiritual determinada, algo que muita gente no Ocidente pouco realiza ora deslumbrado por iniciações e graus iniciáticos, ou em seguir sucessivos mestres geralmente mais de aparências do que de ascese, amor ou realização, quando o mais importante é o desenvolvimento e intensificação da consciência numa assimilação harmoniosa com a vida que nos envolve.
Infelizmente ao fim de cinco anos dando-se conta que o projecto não conseguia realizar-se, os discípulos, dadas as grandes distâncias a percorrer, ou por outras razões, vinham pouco, Sri Anirvan conclui "que era o fim de Himavat. A experiência tinha sido concluída", "a grande Natureza (Prakriti) da Índia não estava madura. Tudo está fragmentado. Mas apesar de não haver unidade no Tempo, o sonho nascera e era poderoso, apesar de faltar-lhe corpo. O que somos nós no jogo das grandes forças em acção?» E antes de se despedirem numa paragem de autocarro, partindo ele primeiro e ela ficando ainda uns dias a liquidar a existência do ashram, dir-lhe-á que Himavata continuava a existir como um ideia verdadeira de um centro cultural de vastos horizontes e um local de retiro para os que demandavam o caminho espiritual e que outros o realizariam, ou ela na Europa, recomendando-lhe até a ligar-se aos discípulos de Gurdjieff e de Ouspensky, como de algum modo veio a suceder-lhe, com os livros que publicou ou o que ensinou (nomeadamente o Tai Chi), mas isso ficará talvez para um dia que nos acerquemos mais desta corajosa e pioneira orientalista e espiritual...
1 comentário:
Obrigada querido Pedro.
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