segunda-feira, 25 de outubro de 2021

"Oceano Nox", soneto de Antero de Quental. E hermenêutica dos 14 sonetos que o envolvem.

Os sentimentos e conceitos expressos por Antero de Quental no soneto Oceano Nox, Noite no Oceano, já terão sido mais ou menos levemente intuídos ou vivenciados por muitos ao longo dos séculos, em especial ao contemplarem a impassibilidade do mar ou a mudez dos elementos da Natureza em relação às interrogações e dores humanas. E Antero, com a sua especificidade de constituição anímica e formação filosófica,  ressoando com a Natureza e o oceano, gerou nesse encontro um significativo e bastante musical  soneto que nos faz imaginá-lo junto ao mar, por vezes bem áspero e encapelado que borda Vila do Conde:

                                                            OCEANO NOX
                                            (A A. de Azevedo Castelo Branco)
« Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...»
 
Este soneto, intitulado Oceano Nox, Noite no Oceano, a que adicionamos a pintura de William Daniell’s Eddystone Lighthouse, During a Storm, encontra-se incluído na fase  final da criatividade poética de Antero de Quental,  entre os anos de 1880 e 1884-5, embora  a  data exacta da sua redacção seja desconhecida e se saiba que vários dos sonetos inseridos como sendo de 1880 a 1884 foram escritos na década de 70. Contudo o ambiente muito conseguido do diálogo com o mar inclina-nos a considerá-lo escrito na orla nortenha do oceano em Portugal e foi dedicado ao seu grande amigo, desde os primeiros tempos de Coimbra e da Sociedade do Raio, António de Azevedo Castelo Branco, de quem nos ficaram bastantes cartas valiosas enviadas por Antero.  
O soneto, apesar de Antero considerar os seus  últimos os mais equilibrados e já dotados de uma síntese espiritual, é ainda assim algo triste  e frustrado pelo que a ser mesmo da década de 80 ecoa o ambiente nocturno marítimo de Vila do Conde, onde  Antero vivia não longe do mar e, quem sabe, se o duma noite de Inverno em que tenha ouvido o oceano nesse registo ou leitura psíquica do seu som, embora este soneto seja apenas um entre outros semelhantes, escritos nesses tons tristes ou frustrados face a uma desejada comunicação ou realização maior ou melhor.
Todavia, estando  incluído no ciclo final cronológico 1880-1884 da edição dos Sonetos completos, dada à luz em 1886, ele deve ser lido contextualizadamente, ou seja, tendo em conta os que o antecedem e os que vêm depois, num total de quinze, pois uma narrativa, uma progressão, um fio da meada conduzirá ao último, o da entrega do coração na mão de Deus. Assim, só no fim deste texto é que encontra uma hermenêutica maior do Oceano Nox.
Ao observarmos o 1º, Transcendentalismo, bastante anterior pois foi escrito em 1876, vemos como que uma síntese da sua evolução espiritual, e  símbolos importantes usados noutros sonetos são vivenciados neste num sentido de calmo desprendimento do mundo e das suas ilusões, e numa estabilização  no espírito impassível, algo a que Antero aspirava e por vezes conseguia no seu estoicismo, mas talvez sem a grande profundidade e altura daplena experiência ou vivência do espírito, a que aspira e a que se refere uma ou outra vez... 
Significativamente, sendo o primeiro desta série, está dedicado ao seu grande amigo Oliveira Martins, enquanto que o último será dedicado à sua mulher Maria Vitória, que gostava muito dele, tal como ele dela.
No 2º, Evolução, este sim de 1882, mostra-se a evolução possível do ser humano desde a pedra até, como ele e outros seres humanos, só aspirar e adorar a Liberdade, e ecoa tanto as ideias evolucionistas biológicas de Darwin e as psico-filosóficas de Hegel como as orientais da metempsicose. O 3º é o mais longo, pois subdivide-se em seis sonetos, e foi publicado em 1875 na Revista Ocidental, intitulando-se o Elogio da Morte, de facto uma realidade que Antero muito cogitou e poetizou, levando como epígrafe inicial o famoso dito grego: Morrer é ser iniciado, que à morte de Antero o seu amigo Joaquim de Araújo bem glosou num poema que já interpretámos, dito helénico que Fernando Pessoa também citou e poetizou. E, nos seis sonetos de que é composto, Antero de Quental presta o seu culto, ou confessa a sua atracção ou mesmo paixão por ela, convencido que, como diz no soneto quinto: «Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal, Morte libertadora e inviolável».
Este ideal da morte para se dormir ou, tal como escreve no soneto final, descansar o coração na mão direita de Deus, compreende-se bem ou aceita-se em Antero de Quental pela muita atribulação que teve nos seus 49 anos de vida, com muitas noites quase sem dormir, a cabeça sempre a pensar e o coração algo desiludido. Mas no sexto soneto e último do Elogio da Morte, Antero vai mais longe e posiciona-se como filósofo e metafísico das elevadas concepções pois  afirma a identificação da vivência da morte com o Não Ser, que é o Ser único Absoluto.  
Esta posição filosófica, que é também a de algum modo a da filosofia oriental não-dualista (advaita) e talvez mais a da filosofia budista em geral era na época de Antero a de algumas filosofias do Inconsciente, e que cremos afirmada mais por especulação do que por real vivência, terá tido alguma influência e era válida em Antero quando  este se suicidou? 
Pensamos que infelizmente não, não entravam no Absoluto, tanto mais que  tal não será o destino dos seres individualizados ou espiritualmente imortalizados pois provavelmente só entrarão no Não Ser, no fim do ciclo de manifestação cósmica, se não é que será na Divindade Primordial.
No soneto seguinte, o 4º, Contemplação, não datado mas certamente da década de 80 (como uma carta a Carolina Michaelis, de Outubro de 1886, que o refere, nos permite deduzir), sente a mesma resposta que encontra nesta Noite no Oceano: «E dentre a névoa e a sombra universais/Só me chega um murmúrio feito de ais.../ É a queixa, o profundíssimo gemido/Das coisas que procuram cegamente/Na sua noite e dolorosamente/ Outra luz, outro fim só pressentido...», soneto que se insere na sua visão de uma Alma infinita nas coisas, num estado muito latente e que só no ser humano se autonomiza e eleva e que ele sentirá, pelo menos poeticamente e que procurará aprofundar filosoficamente...
O Lacrimae Rerum, As Lágrimas das Coisas, o 5º soneto, não datado, repisa a mesma percepção subtil triste da noite muda e da escuta dos suspiros das coisas nas trevas. Já no 6º, Redempção, enviado por carta ao seu jovem e bom discípulo e amigo Joaquim de Araújo (1858-1917) em 1882, em dois sonetos, e que foi dedicado a Celeste, a mulher do seu grande amigo Jaime Batalha Reis, Antero consegue ouvir no 1º  "as vozes do mar, das árvores, do vento"  e admitir a existência do "verbo crepuscular e íntimo alento das coisas mudas", o "espírito que habita a imensidade" e sentir a irmandade de alma com "as vozes do mar, da selva, da montanha", ainda cativas mas "ansiando pela liberdade". E no 2º alenta tais almas pois vaticina-lhes que um dia serão almas conscientes. Há uma visão ascendente seja de transformismo biológico evolucionista seja de metempsicose, isto é, a passagem de psiques ou forças anímicas  de uma forma para outra mais perfeita, algo  afim da tradição oriental, e da platónica e neo-platónica,  pois crê, e algo optimisticamente, que, desfeitas as formas ilusórias, tais incipientes almas conseguirão "pairar no puro pensamento", embora tal seja provavelmente sobretudo aplicável a ele próprio ou ao ser humano. Estes dois sonetos, com o Contemplação, conforme uma carta de Outubro de 1886 a Carolina Michaelis de Vasconcelos, para Antero «representam em forma de imagem e sentimentalmente uma das ideias fundamentais da compreensão das coisas, a que cheguei e em que fiquei, e que espero ainda desenvolver em prosa e com o rigor da exposição filosófica.»
                                                De Bô Yin Râ, ao espírito, à sua subtil voz...
No 7º soneto, Voz interior, enviado também por carta em Junho de 1883 a Joaquim de Araújo, com a nota: «É o último que fiz. Não me parece tão bem como algum dos outros, que lhe irei mandando, quando possa», Antero partilha a mesma estação de alma dos outros sonetos escritos em Vila de Conde, junto ao Oceano: "o bramir do mar tempestuoso", "o universo monstruoso", "um ai sem termo, um trágico gemido", mas no fim desponta (ou poetiza) finalmente uma luzinha bem valiosa no interior: «Só no meu coração, que sondo e meço,/ Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,/ Em segredo protesta e afirma o Bem!»
Se os seus sonetos correspondessem a vivências interiores da alma de Antero de Quental, poderíamos afirmar que este da Voz Interior representa uma iluminação: pequena, simples, um sussurro interior mas que o fundamenta intimamente e lhe vai dar forças e esperanças, pois esta experiência da voz íntima, ou de tentarmos ouvir a voz da consciência, sentida ou manifestada neste soneto, e num ou outro mais, ecoará  em várias cartas aos amigos, em especial a Fernando Leal e a Jaime de Magalhães Lima, dois dos mais espirituais. Ora tanto este soneto como o seguinte foram dedicados a João de Deus, poeta  do amor natural e do cristianismo simples, que protestava contra o Antero do vazio e do não-ser, da tristeza e da morte. E assim no segundo soneto, o 8º do ciclo, intitulado Luta,  de 1884, embora envolto pela noite com a sua paz, esquecimento e sonho, afirma sentir o seu pensamento desperto por atracções divinas e o tropel de almas peregrinas, enquanto simultaneamente «ecoa, ó mar, a tua voz antiga».
O 9º soneto, Logos, bastante antigo, de 1875, como o seu nome indica deveria apontar para o reconhecimento da presença Divina, seja como Inteligência ou Intelecto, seja como Ordem e Providência, seja ainda como Amor. Todavia acaba por ser apresentado de uma forma  original mas estranha: a Divindade, ou o Génio,  ou ele próprio, ou a Razão,  surge como pai e irmão, como tormento e tirano, mas a quem ama mesmo assim,  deixando assim Antero transparecer algo das dualidades que o habitavam, ou mesmo estratos religiosos do passado (o Deus tão misto do catolicismo), algo que para um psicanalista torna este soneto dos mais ricos.
O 10º,  Com os Mortos, segundo Luís Fagundes Duarte datado de 1885, é outro soneto iluminado, embora o pedagogo António Sérgio o desvalorize, o segundo após a Voz Interior, e nele, ainda que haja alguma leve sombra ou dualidade inicial, rapidamente Antero anuncia a certeza da imortalidade da alma em dois tercetos finais magistrais e mesmo musicais, que diremos mesmo que podem ser  decorados, isto é, assumidos de cor pelo pelo coração, já que falam de meditação e comunhão no Amor e no eterno Bem, o último sendo mesmo como um mantra pontificial, isto é, de ponte e entrada nos mundos espirituais, algo que se desenvolveu nos Livros dos Mortos egípcios e tibetanos e se patenteou nas lamelas órficas, dos iniciados gregos, levadas ao peito com formulas religiosas de ascensão, na passagem para o Além.
 
 Ora o 11º soneto Oceano Nox, não datado, surge-nos neste seguimento e é face a eles uma noite escura, e de facto o que é tal ambiente senão isso tanto física como espiritualmente, usando-se esta expressão "noite escura da alma" para designar aqueles momentos em que um místico ou um espiritual, já depois de ter recebido luzes ou graças, se vê numa estação, momento ou fase mais árida, com menos luz a ser recebida, e menos graça e amor divino sentidos. Creio ser valiosa  esta analogia da noite no oceano ouvido como rouco e triste, com a noite de alma do peregrino espiritual, que Antero era e que todos somos, mais ou menos, com trevas e claridade na nossa demanda interior...
O seguinte, o 12º soneto, Comunhão, não datado mas provavelmente da década de 80, é outro dos sonetos mais luminosos, pois partindo da noite escura que o rodeia, reprime o pranto e assume a "fé dos antepassados e gerações  antigas" que o precederam, com humildade e "na comunhão dos nossos pais antigos".  E sabemos como isto é verdadeiro e como foi sempre uma linha de força da Tradição espiritual ocidental e portuguesa, tal como também bastante acentuadamente da africana, da japonesa e da chinesa, com o seu culto dos antepassados e que alguns missionários jesuítas souberam bem aceitar no seu esforço de conciliação e diálogo inter-religioso.
Pintura de Bô Yin Râ: Luz e Amor divinos nos que já partiram, oremos...

O 13º soneto, o Solemnia Verba, Palavras Solenes, escrito no seu dia de anos em 1884, é outro dos mais luminosos e vitoriosos, e ecoa o soneto Mors-Amor, a vitória sobre as dúvidas e a morte, e oferece uma outra alternativa ao cavaleiro do soneto do Palácio da Ventura, pois num valioso diálogo de auto-conhecimento «o coração feito valente",  através dos esforços e sofrimentos, consegue consciencializar-se que tudo serviu para se ter elevado e ver agora o Amor, sendo tal um princípio ou começo de o sentir, de o adorar, de o amar e manifestar.
O 14º soneto, e penúltimo, O que diz a Morte, não datado, é uma rendição ao seu amor da Morte, considerando-a como a grande libertadora, fazendo desaparecer da sua alma "paixão, dúvida e mal" e dores. Ora se a morte em certos aspectos liberta os seres do corpo e, se trabalharam bem em vida, os propulsiona para um plano de vida mais subtil, desperto e feliz, noutros casos não é assim e as pessoas ainda mais sofrem no além, se vão para lá muito ignorantes, rudes, violentas.  É um certo idealismo da morte o que Antero reflecte, pois tudo o que refere deveria ser harmonizado ou vencido em vida e não obtido com a morte, que não tem esse poder de terminar com os males, senão para o cérebro que acaba, e do corpo físico que começará a decompor-se. Podemos talvez detectar a impregnação de uma certa identificação de Antero ao corpo, ao cérebro e atribuindo exageradamente à morte uma capacidade libertadora anímica, o que não é forçosamente o caso, e menos ainda quando ela vem por suicídio.
O 15º soneto e final, Na mão de Deus, de 1882, é de novo um soneto luminoso, mas mesmo assim frágil, algo passivo, embora se possam considerar positivos e valiosos os sentimentos de humildade e de entrega a Deus. Compreende-se melhor este dormir do coração ou da alma na mão de Deus, se nos lembrarmos que Antero sofreu muitas insónias e momentos de grande desânimo, sendo tratado medicamente e não sabemos bem com que efeitos. Foi escolhido por Antero e Oliveira Martins talvez para dar um fim mais católico, pois emprega a palavra Deus a quem ele se entrega. Mas sabemos também que logo na altura de o redigir teve de explicar aos amigos, nomeadamente ao seu íntimo Alberto Sampaio, quem enviou o poema:«Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro modo não caberia em verso. Pura liberdade poética», tal como já publiquei neste blogue nos comentários mais extensos só consagrados ao soneto na Mão de Deus. E foi dedicado à mulher de Oliveira Martins, Dona Vitória, que era muito católica, "discreta e recolhida". Podemos realçar ainda a referência à mãe, a quem ele muito amava e na sua morte muito chorara. Neste sentido o soneto é até um bom bilhete de viagem para a morte, para a religação à mãe, talvez sua guia-curadora no além, e  à Terra Mãe e ao princípio Feminino Divino, no que este possa ser sentido ou realizado. Algo disto se passará com Fernando Pessoa, também muito ligado à mãe e saudoso até dela depois da sua partida...
Assim ficaram ordenados para sempre os Sonetos, embora não obedecendo rigorosamente à ordem cronológica que lhes foi atribuída, e cabe-nos então assumirmos mais fortemente a responsabilidade de caminharmos no sentido que ele indica, na linha de Platão ou dos neo-platónicos  e de outros peregrinos espirituais, de ultrapassarmos as formas imperfeitas de ideais e de paixão e de, mais ou menos despertos, comungarmos com o coração liberto na Divindade ou, se quisermos, estarmos à sua benigna direita, para usarmos simbologia religiosa conhecida ou consagrada pelas religiões pagãs ou pré-cristãs e as posteriores.
                                                              
Para finalizar, interpretemos então mais especificamente o Oceano Nox:
A primeira quadra mostra-nos os dois elementos naturais mais trabalhados por Antero de Quental e equiparados a aspectos humanos, o mar com a sua voz grave, e o vento, como o pensamento, irrequieto, ou seja, a água das emoções na voz, e o pensamento mental no vento. Antero  observa-os externa e internamente, mas junto a eles, sentindo-os e, como filósofo, interroga-os e ausculta-se sob tal efeito.
A segunda quadra introduz-nos num acto de meditação e contemplação: Antero de Quental senta-se para sentir e intuir e, do mar e do vento,  expande a sua consciência para o céu, o Universo e todas as coisas, nomeadamente olhando o céu que está nevoento e pardacento.  Será o céu coberto e acinzentado que faz mais Antero ler e assumir a tristeza, ou era já Antero que estava nesse estado de alma, seja por si mesmo, seja por osmose com a voz rouca, grave e algo muda do oceano?
Ora esta actividade de Antero de Quental é até uma prática milenar: a de se tentar ouvir alguma voz ou mensagem do som do vento, em si ou nas árvores (e pitonisas e sacerdotisas da Grécia faziam-no, tal no santuário de Dodone e de Delfos), e do som do mar.  E o que ele ouve ou sente é como que um lamento, um gemido que lhe parece sair das coisas, uma sensação e intuição que Antero ao longo da vida manifestou regularmente, e em especial até nestes quinze sonetos de 1880 a 1884 mas também em muitos outros,  já que era muito sensível e interrogava-se se, para além da polaridade natureza objectiva material versus voz da consciência espiritual, como sentiu assinalou no  soneto Voz Interior, devemos reconhecer uma natureza, viva, sensível, animada, nível que ele denominou a dada altura a "Alma infinita das coisas", ou noutros momentos "panpsiquismo" ou mesmo simplesmente "magnetismo universal", demanda esta a que se dedicará filosoficamente mais intensamente após ter abandonado o culto da poesia em 1884, e que culmina com redacção da sua obra final Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, em 1891, na revista de Portugal, uns meses antes de morrer, e onde de certo modo consegue dar resposta, teórica, a tal busca da unidade da matéria e do espírito.
Quanto ao que ele sente ou intui nessas vozes da Natureza é que pode ser mais acertado ou  verdadeiro, ou pode ser apenas sobretudo um resultado da sua imaginação condicionada pelas suas inquietações e limitações. E assim Antero de Quental, no que se poderá chamar um esforço de animação ascendente dos dois degraus, o desejo e o pensamento,, discerne então seres elementares e uma força obscura universal, e pergunta-lhes: - Têm desejos, girais ou movei-vos por alguma ideia?
 Podemos pensar que Antero mais uma vez está a espelhar nos outros o que vai dentro da sua alma, pois um desejo inquieto de conhecimento, de amor e de felicidade atravessou-o desde novo e e o seu pensamento gravitou sempre  à volta de ideias, ideais e valores, o Amor, a Liberdade, a Verdade, a Justiça, o Absoluto, o Não Ser, e, logo, a Morte libertadora, irmã e amada, esta que não devemos contudo invocar tanto como ele, Manuel Laranjeira ou Florbela Espanca, que sucumbiriam precocemente a ela. Mas, por outro lado, se a alma infinita das coisas existe, porque não tais elementos considerados insensíveis terem consciência e serem capazes de sentir, amar e aspirar?
A resposta que Antero desejaria ouvir não vem neste soneto, pois apenas ouve um bramido, um queixume, e o que ele sentia no começo do soneto  confirma-se no fim, como se a tristeza e a incomunicabilidade dos elementos cósmicos fosse fatal. Algo que aliás já se passará bem explicitamente com o soneto Palácio da Ventura.
Como vimos na leitura resumida e contextualizante de todos os sonetos do ciclo final, esta Noite no Oceano pode ser vista como uma noite da alma e como um queda de percepção luminosa do sentido da existência, que por exemplo alcançara em sonetos tais como a Voz Interior e Com os Mortos.
Certamente para isto contribuiu a noção predominante nas correntes filosóficas com que Antero se alimentou que postulavam o Absoluto, o Divino, o Infinito como inconsciente imortal, e assim no terceto final, a Antero, do espaço infinito "onde se esconde o Inconsciente imortal", só lhe chega um som que lhe parece queixume e bramido, que como já vimos encontramos frequentemente noutros sonetos.
Faltou a Antero de Quental alcançar vivências interiores mais elevadas espiritualmente e logo uma concepção de Deus mais verdadeira e que substituísse o Inconsciente e não-Ser pela Divindade ou o  Espírito Divino, seja como ele for chamado, e que deveremos e poderemos sentir no nosso mais íntimo ser.
Antero de Quental foi a principal ponte para a modernidade em Portugal, e em vários aspectos, desde os literários aos políticos e filosóficos, mas nessa função pioneira e algo solitária pagou o preço e deixou o seu corpo nessa ponte e sobretudo a alma bem ardente e sofrida nos seus Sonetos, Odes Modernas e Cartas. A nós de o sentir, continuar e elevar, como alma espiritual, estrela luminosa...
A estrela do espírito, por Bô Yin Râ, que guia as almas na peregrinação...

domingo, 24 de outubro de 2021

Francisco Xavier, o 2º das "Figuras de Silêncio", livro de Armando Martins Janeira. Breve resumo.


     Em Francisco Xavier, sonhador duma grande empresa malograda, titulo do 2º capítulo das Figuras de Silêncio, dando talvez uma imagem algo exagerada de um encontro que mesmo assim gerou bastantes resultados, ainda que muito tingidos de sofrimento e sangue, Armando Martins Janeira resume a biografia do nobre basco (1506-1552) desde que em Paris, para onde fora estudar na Sorbonne, encontra S. Inácio de Loiola, e acaba por aderir ao projecto deste e entrar no núcleo inicial dos jesuítas, o qual viaja e actua pela Europa até o Papa Paulo III, o enviar para Lisboa, a pedido do rei D. João III (como vemos na pintura da igreja de S. Roque),  para ir missionar no Oriente, chegando à Índia  em 6 de Maio de 1542 após atribulada viajem, pois partira na carraca Santiago, a 7 de Abril 1541. Foi nomeado, por breve papal,   Núncio Apostólico das partes da Índia, com grandes poderes. 

Dotado de grande energia e convicção tanto curava doentes, baptizava aos milhares, criticava os maus costumes, como comandava tropas contra os islâmicos e destruía os templos e as estátuas sagradas indianas. Armando Martins Janeira assinala desassombradamente tais violências: « O seu zelo ia até aos maiores excessos. Encorajava os jovens convertidos a destruir os templos hindus, a despedaçar e pisar os ídolos, reduzi-los a pó e cuspir-lhes em cima, o que penalizava [ou revoltava mesmo...] aqueles que conservavam as crenças tradicionais. Na opinião de Xavier, Deus "tem horror à oração dos infiéis", não escuta as suas aflições, porque todos os deuses são demónios disfarçados. Aqueles que adoram os ídolos estão perdidos e condenados ao Inferno; todos os que viveram e morreram antes de surgir a salvação cristã estão a sofrer as penas infernais; a alma divina dos recém-nascidos é-lhes dada pelo baptismo. Xavier requer insistentemente a instituição da Inquisição em Goa, a qual foi estabelecida em 1560.»

«Esta furiosa intolerância iria criar-lhe sérias dificuldades no Japão, onde viria a ser uma das causas da perseguição e expulsão do cristianismo. Os japoneses não admitiam a eliminação do xintoísmo. sobre o qual toda a autoridade imperial assentava, e repugnava-lhes aceitar que os santos budistas, como Sakiamuni, Amida, Kwanon (na imagem, do museu de Nara), tivessem sido "condenados ao suplício infernal"»

Referindo em seguida a não-violência em geral das religiões orientais, e em particular o budismo e o taoísmo, a que poderia ter acrescentado  o jainismo, Armando Martins Janeira refere que «antes do cristianismo, o Extremo Oriente ignorava os extremos cruéis da crucificação, do auto-de-fé e de toda a forma de intolerância religiosa», e cita um jesuíta irlandês biógrafo de Xavier que, com coragem, afirma uma verdade que muito católico ainda hoje, no século da multi-culturalidade religiosa, não aceita: «O padre James Brodrick, um dos seus biógrafos, afirma, sem censuras, que o Santo não conheceu a verdadeira Índia, nunca compreendeu que estava na terra mais religiosa do mundo, a qual espalhou uma vaga de piedosa espiritualidade por toda a imensa China, Indochina, Coreia, Sião e Japão. Aquilo que os missionários consideravam um paganismo supersticioso e primitivo era uma religião evoluída e que atingiu formas de alta espiritualidade. «Se Francisco tivesse podido encontrar-se com o seu grande contemporâneo do Norte da Índia, o poeta religioso do Bhakti, Tulsi Das (na imagem em baixo), certamente teria reconsiderado as suas opiniões acerca da religião hindu», escreve o padre Brodrick. Reconhece Martins Janeira que era contudo essa ignorância do valor das outras religiões e o «simplismo da fé ardente e fanática» que dava mais força obstinada aos missionários, mas que em Xavier havia contudo humildade.

 Conta-nos como foi em Malaca em 1547 que Francisco Xavier soube do Japão através do japonês Yajiro, a partir do qual escreve uma carta para Lisboa confirmando que"são gentes que se regem pela razão". E que foi Jorge Alvares, a quem dedicamos o texto anterior no blogue, o rico-mercador e capitão de nau, que ali fundeara o seu navio, quem o melhor informou e apoiou no sonho da evangelização infelizmente mal conduzida, começada em 1549 em Kagoshima onde foi bem recebido, pois acreditava-se até que «eram homens da terra natal de Buda», uma ingenuidade fabulosa, e assim  «na primeira carta do Japão, Francisco Xavier exprime o seu contentamento, o encanto do país, o apreço pela gente japonesa: São de alto coração e confiados nas almas.» «É gente de muito boa conversação e geralmente bondosa, sem malícia, gente de honra, muito de maravilhar.» «No entendimento, que é tudo no homem [e o coração], não lhe fazem vantagem os da Europa.» 

                                   

Apontando as viagens peregrinantes de Francisco Xavier, de Kagoshima para Hirado, e via Yamagushi para Kioto, a capital, onde nada consegue, realça que no regresso, em Yamagushi e depois em Bungo, conseguiu ser bem acolhido e fazer algumas conversões e baptizados, narrados pelo  Padre Lucena, o seu biógrafo principal ou mesmo pelas suas cartas. Entretanto Xavier começa a pensar na China, sobretudo após o contacto com Diogo Pereira que lhe contara as perseguições aí feitas aos cristãos clandestinos (Kakure Kirishitan), e decide, com 27 meses de Japão, regressar à Índia em Novembro de 1551, aonde chega após viajem tormentosa e milagrosa em fins de Janeiro de 1552, e envia pouco depois mais três missionários para o Japão e parte para a China onde fundeia no porto de Sanch'wan, junto a Cantão, acabando por adoecer de febres e morrer em 3 de Dezembro de 1552, com 46 anos apenas. O seu corpo terá contudo vida longa e bem venerada, na catedral de Velha Goa, onde ainda hoje atrai anualmente milhões de cristãos e não só, numa coroação ecuménica que ele próprio não admitiria ou imaginaria na altura.

Será Alexandre Valigano, o seu sucessor na direcção jesuítica no Oriente, quem tentará com mais visão e capacidade dialogante continuar a evangelização do Japão, mas uma décadas depois com o xogunato tudo será destruído e além de algumas centenas de kakure kirishitan, cristãos clandestinos, ficará apenas «um inestimável legado de intercâmbio cultural representado pelos notáveis estudos deixados por alguns jesuítas e pelos valiosos relatórios e cartas destes descrevendo as condições político e sociais  do Japão dessa época». E Armando Martins Janeira conclui este capítulo dedicado ao apóstolo da Índia e do Japão mencionando  o que já referira e ilustrara (como vemos na última imagem) em alguns passos da II parte As Cidades, do seu livro: Kagoshima  consagra-lhe um jardim, uma catedral, um monumento, um busto e um arco votivo; Yamagushi. uma igreja e uma grande cruz com a sua efígie; Hirado, uma estátua e monumento com a sua efígie, e «Sakai ostenta uma lápide no seu mais belo jardim, onde projeta construir-lhe uma estátua. A memória do grande pioneiro continua a animar hoje a fé cristã dos japoneses», dirá simpaticamente e, quem sabe, com verdade, para concluir o capítulo dedicado a Francisco Xavier. 

Certamente que muito mais poderia ter sido dito ou aprofundado, mas para tal servirão as biografias dele e as cartas e histórias da missionarização da Índia e do Japão. Foi sem dúvida um figura importante do encontro ibérico-nipónico e os seus diálogos com um abade budista, Ninjit, em Kagoshima, em 1549 (como narro no dia 5 das Efemérides de Novembro neste blogue), ficaram até como uma semente ("ele mostra-se tão meu amigo que é maravilhoso"...) do diálogo inter-religioso que é hoje o paradigma premente e mais ou menos vigente, até para uma educação religiosa e espiritual universalista que a UNESCO deveria ou poderia impulsionar sem manipular (nomeadamente a partir do trabalho de representantes das religiões e até artes e ciências, sem com isso se querer acabar com a fabulosa diversidade das múltiplas tradições) educação para qual Armando Martins Janeira contribuiu pioneiramente com a sua grande sensibilidade e universalidade...

sábado, 23 de outubro de 2021

Bô Yin Râ. Orações para as aflições, e em cuidado por uma alma. Tradução do livro "Das Gebet", por Pedro Teixeira da Mota.

Na Necessidade e na Aflição (In Not und Bedrängnis)

«Ajudai-me!
Ajudai-me,
Se vós
Podeis ajudar!

Poderes auxiliadores! (Helfende Mächte)
Auxiliares prestáveis! (Hilfreiche Helfer)

Vós sabeis.
Que penosa provação
Me colhe, -
Como o receio
Cruel
Me pressiona!



Vós fareis
Chegar ajuda, -
Quando
Poderdes!

Mas: -
Se vos é
Negado
Retirarem de mim a carga
Que levo às costas, -
Então
Ajudai-me apenas
A carregá-la!


 Mesmo que eu vá curvado
Ainda assim não  
Tombarei!
Quererei com vontade 
Levar,
O que levar
Devo,-
E não
Murmurarei,
Não
Reclamarei!»



EM CUIDADO POR UMA ALMA ( In Sorge um eine Seele)

« Amor primordial perene!
Desprende-me
 Da necessidade,
E aprisionamento,
Da cegueira
E noite,
Do tormento
E feitiço,
Isso que o meu Amor
e a minha força
Não conseguem dissolver.


Derramai
Da vossa Força
Poder na vontade cansada,
Para o próprio sofrimento
Aquietar,
Na medida em que
Possa ser acalmado.


Enviai ajuda
Elevados auxiliares, -  
 Vigilantes guardiões!

Desapareça o mal! 
 Fuja a desgraça,
   Desvaneça-se a doença,
A adversidade
Inverta-se!


Que o mal
Finde!
O perigo
E a decepção,
Passem!

Que as trevas
Desvaneçam-se!
Que a Luz
Vença!


Para que esta Alma
Se liberte, -
E rapidamente
De todas os laços
Fique livre.»

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Jorge Álvares, o 1º das "Figuras de Silêncio", livro de Armando Martins Janeira. Breve resumo.


Nas Figuras de Silêncio, o último capítulo do livro com o mesmo título, lamentando que o xogunato Tokugawa (1603-1867, período denominado também Edo) tenha eliminado os frutos de quase 100 anos de interacções luso-nipónicas iniciados em 1543 e terminados em 1639, ou 1647, Armando Martins Janeira realça que depois da reabertura do Japão ao Ocidente, com a restauração do sistema imperial, em 1868, deu-se tanto uma modernização, ocidentalização e industrialização grandes. Foi a era Meiji que durou até 1912. Após as desventuras da II Grande Guerra e o recomeço do país ainda mais sob influências modernizantes ocidentais (que obrigaram mesmo o Imperador a deixar de considerar-se um descendente da Divindade Amaterasu omikami, representada na imagem ao alto) cresceu  a valorização do passado luso-nipónico, construindo-se muitos monumentos de homenagem aos intervenientes e frequentemente mártires de então, sobretudo a partir da década de 1960, nos quais Armando Martins Janeira teve uma intervenção ou presença activa. Quanto ao tipo de monumentos confessa preferir o método japonês dum penedo com uma poesia ou frase do que as tristes esculturas, pois assim «o espírito é uma presença viva que nos fala, sem se destacar, hirto sobre o pedestal altivo, uma companhia doce e amiga que nos convida à meditação e contemplação íntima». Desvendando a sua sensibilidade, Armando Martins Janeira, embora os mortos também se nos possam apresentar com as suas faces, intui que «a presença dos mortos não tem feições, é uma voz clara e límpida que nos fala, memória viva que nos acompanha depois da profunda contemplação de uma obra, inspiração que nos acalenta e exalta».

 São dedicadas as últimas cem páginas do livro às Figuras, e a 1ª é O capitão-mór Jorge Álvares, natural de Freixo de Espada à Cinta, que levou no seu barco Fernão Mendes Pinto ao Japão, e escreveu um Informação das coisas do Japão, que inspirou Francisco Xavier a lançar-se ao Oriente, vindo a ser acolhido mesmo por dois meses na ilha chinesa de Sanchoão por Jorge Álvares, que  providenciou  ainda os cuidados para o corpo de Francisco Xavier, morto de febres, poder regressar ao domínio português e estabilizar em Velha Goa.

Armando Martins Janeira refere as pequenas menções ao Japão anteriores à Informação de Álvares, tais as de Marco Polo, Tomé Pires na Suma Oriental, Escalante Alvarado, Diogo de Freitas e Pero Dias, mas reconhece o dito do historiador Minoru Izawa de que ela: «é a primeira geografia natural, social, cultural e política do Japão», embora contivesse sobretudo notícias da ilha de Kiushu, a maior e mais conhecida dos portugueses. As descrições desta pioneira Informação são bem sensíveis e argutas, com vamos observar seguindo as transcrições de Armando Martins Janeira:«Esta terra do Japão é alta e ao longo do mar, e dizem que pela terra a dentro há campina. Eu fui três léguas pela terra a dentro, não a vi, mas vi os montes aproveitados e semeados. É terra bem assombrada e graciosa.» Descreve depois as casas «sem maneira nenhuma de fechadura nem cadeados», a compleição física, os vestuários e os temperamentos: "É gente muito soberba e escandalosa, todos em geral trazem terçados [armas] grandes e pequenos, acostumam-se de idade de oito anos a trazerem-nos". "São todos em geral mui grande frecheiros". "É gente pouco cobiçosa e muito maviosa". 

Quanto à alimentação percebeu a sobriedade exemplar dos japonese: «"É gente que come três vezes ao dia, e comem pouco cada vez", e bebem vinho de arroz, e também "no Verão água de cevada, quente, e no Inverno água de umas ervas que ainda não alcancei saber que ervas eram". Eram chá, então desconhecido na Europa.»

Diz-nos Martins Janeira: «As formas de cortesia nipónica, que tantas  páginas de autores ocidentais vão encher, são aqui versadas pela primeira vez. Descreve como se saúdam e se recebem, o gosto pelas artes, pelo teatro e pela arte de bem cavalgar, os hábitos de higiene e o à vontade, e o não atribuírem sentido de pecado ou vergonha à nudez choca muito Alvares: "São muito desonestos, não lhe dá nada que lhe vejam suas vergonhas"».

  Sabemos como as mulheres, ou as musumés, as jovens, sempre impressionaram ou encantaram os portugueses e eis a descrição de Jorge Álvares: «As mulheres são muito bem proporcionadas e muito alvas e tocam do arrabique  e do alvaide [instrumento de cordas]. São muito maviosas e meigas, e as honradas são muito castas e muito amigas da honra de seus maridos. E há ali outras más mulheres e celestinas e também me parece que há ali feiticeiros e feiticeiras. São mulheres muito limpas; elas fazem em casa todo o trabalho como tecer, fiar, coser. As boas mulheres são muito veneradas de seus maridos. Os maridos são mandados por elas. São mulheres que vão onde lhes vem a vontade sem o perguntarem a seus maridos».

Anote-se a utilização da expressão "celestinas", proveniente da peça teatral com o mesmo nome do Francisco Rojo, publicada pela 1ª vez em 1499 e que teve grande sucesso peninsular, e que passou a significar bruxa, alcoviteira, sendo muito usada por Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515-1585), nas suas peças. E os vestígios de uma certa ginocracia primordial familiar e social nipónica, em que as sacerdotizas e shamans predominavam, pela sua sensibilidade subtil, na religiosidade e magia e com as mulheres tendo uma independência forte face aos homens, algo que se foi alterando com o tempo.

                                   

Na religiosidade conseguiu discernir bem as diferenças entre os shintoísmo e o budismo, e viu que eram muito religiosos:" é gente mui devota aos seus ídolos, todos pela manhã se alevantam com as contas na mão e rezam e, acabado de rezar, tomam as contas entre os dedos e dão lhe três esfregadelas».

Armando Martins Janeira resume-o assim: «Álvares refere-se aos templos, aos sacerdotes, monges e freiras budistas, às cerimónias budistas dos mortos e às festas xintoístas em que dançam as jovens vestais do templo, as elegantes miko, ao ritmo lento da orquestra [em geral apenas uma flauta e um shamizan] do templo, marcado pelo grande bombo sagrado, acompanhado da entoação dos sacerdotes, kanushi, tal como hoje se celebra ainda. Álvares repara na diferença dos sinos dos templos budistas e xintoístas e não lhe escapou que existem duas diferentes religiões no Japão, praticadas em geral por todo o japonês».

Armando Martins Janeira conclui o capítulo com uma citação do famoso historiador  Arnold Toynbee (1889-1875), um profundo conhecedor da história das civilizações, e um pacifista e firme opositor do armamento nuclear, que teve nos últimos anos de vida valiosos diálogos com o controverso pensador e pedagogo japonês Daisaku Ikeda, dos quais resultou o livro Escolha a Vida, optimista quanto à capacidade do ser humano encontrar soluções transformadoras para os problemas que a civilização vai encontrando ou gerando.

«Estes pioneiros ibéricos da Cristandade ocidental prestaram à civilização que eles representavam um serviço imcomparável. Ampliaram o horizonte e, deste modo, potencialmente, o domínio da nossa comunidade ocidental, partindo dum canto obscuro do Velho Mundo até chegarem a abranger todas as terras habitáveis e todos os mares navegáveis à superfície do planeta. Foi devido a esta energia e a este empreendimento ibérico que a Cristandade ocidental se expandiu atés e tornar a Grande Comunidade, árvore até à qual tem vindo, e a cuja sombra se têm abrigado todas as nações do mundo. O mundo ocidentalizado dos dias de hoje é a obra peculiar dos pioneiros ibéricos da Cristandade ocidental». 

Talvez tenhamos que corrigir esta visão algo eurocêntrica e cristianocêntrica, salientando o desvio sofrido pelo mundo ocidental devido ao crescente materialismo e imperialismo violentísimo norte-americano, que podemos até originar-se no seu tétrico lançamento de duas bombas atómicas sobre o Japão, conferindo-lhe a partir disso, quem sabe, uma hybris, uma arrogância de invencibilidade e impunidade, tão daninha ao encontro pacífico dos povos e civilizações. Certamente que o mundo dos dias de hoje é tanto ocidentalizado como crescentemente orientalizado e africanizado e há realmente que ultrapassar os racismos, nacionalismos, imperialismo e oligarquias que têm desfigurado tanto a civilização mundial, opressivamente até ameaçada por uma Nova Ordem Mundial que alguns governantes e milionários grupos de pressão vão alvitrando, e para isso certamente o exemplo humanista, dialogante e universalista dos melhores da época dos Descobrimentos e navegações é ainda hoje uma fonte de impulsos valiosos...

Mussumés amigas admirando pinturas do séc. XVII na sacristia da Igreja de S. Roque com cenas da vida de S. Francisco Xavier e provavelmente com Jorge Álvares.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Discernir, Ser, partilhar e co-criar resistentes subcampos unificados de energia consciência informação.

 Este texto, que seria para o livro em preparação Ensaios Espirituais, é dado à luz antes no blogue, pois talvez seja mais lido nele do que na forma de livro, uma realidade que temos contudo de avaliar constantemente. De qualquer modo poderá um dia, e até aprofundado, ter lugar nele ou num outro. Imagens recentes na serra da Estrela e Castelo Branco, onde estive com a Paula, a Alice e a Sandra, almas luminosas...

Para atravessarmos a vida com qualidade, com poucos erros e sofrimentos, desenvolvendo até boas qualidades e criações, é indispensável sabermos as energias que estão em nós, do inconsciente ao supra-consciente, e os efeitos que possam ter em nós e à nossa volta, ou mesmo para os mundo subtis.
O desconhecimento de tal é geral, e perdem-se assim muitas possibilidades de realizações valiosas, havendo apenas um ou outro ser que consegue discernir tais forças ou potenciais e concretizá-los em realizações internas e externas na caminhada escarpada da vida. E como o corpo físico vai enfraquecendo com o tempo, há que ter bem treinado e controlado o corpo psíquico ou mente, se não o espiritual tem poucas possibilidades de se manifestar  e abrir até para o que do Ser Divino  não seja mera auto-sugestão, como em geral casos sucede a gente muito bem intencionada e até convencida. Esse conhecimento, treino e controle do corpo psíquico, das nossas forças anímicas é em grande parte o Caminho espiritual, que é vida e verdade.
Mesmo para quem tenha muitas limitações físicas, financeiras, psíquicas, ainda assim a vida tem em si mesma uma força de renascimento profunda que desafia todos os condicionamentos e sofrimentos e que se revela e se entrega facilmente na Natureza aos que sabem apreciá-la, procurá-la e senti-la, restabelecendo a relação criadora de efeitos benéficos para os humanos que é a da união consciente do ser humano com a natureza pura, o universo ou mesmo até os seres celestiais e a Divindade.

Infelizmente muitos seres já não conseguem ver o mundo com olhos seja de adoração e gratidão seja de receptividade e simpatia, antes se encontram em estado permanente de criticismo, conflituoso por vezes e que pode degenerar até no pseudo, ou não, cretinismo que criticam.
É preciso saber ver, ouvir, sentir o Universo e os outros com empatia, em uníssono, em compaixão antes de os podermos compreender, transformar, ou apenas criticar, e tal não é fácil, pois frequentemente superiorizamo-nos, e menosprezamos os outros, pelo que as nossas palavras e pensamentos para eles se tornam injustas ou pelo menos desapropriadas, inconvenientes, pouco benéficas...
Cada ser, momento ou situação tem a sua especificidade, harmonia e beleza únicas que devemos tentar acolher, sondar e aprofundar, em vez de estarmos sempre a querer criticar, mudar, partir, ou então a deixar-nos inundar seja por preconceitos seja por outras informações e situações que nos dispersam da relação presente e em causa, algo que a vida moderna e digital tanto intensifica, pouca gente estando plenamente no aqui e agora plenificador.

Na verdade, tal frequente atitude e estado psíquico do ser humano moderno, pouco empático e tão disperso, incapacita-o de viver com os seus níveis mais profundos pois estes são como as profundezas dum lago que só se deixam ver quando a agitação à superfície diminui o suficiente para que o fundo consiga reflectir para cima alguns raios de luz. Ora com o coração humano passa-se o mesmo....
Em geral tais aspectos e poderes interiores anímico espirituais só se manifestam quando não há conflitos constante de ritmos e vibrações entre a personalidade, o mundo exterior e o mundo interior anímico, espiritual. Ou seja, quando há coerência entre actos, sentimentos, pensamentos e ideais, e uma prática de recolhimento, oração, canto, peregrinação, meditação ou contemplação ocorre.

Consequências deste estado de coisas social é a raridade do encontro de seres que estejam bem incarnados em si mesmos, ou seja, em quem no corpo se expresse harmoniosamente a alma espiritual. Tais seres são hoje cada vez mais raros pois a maioria anda sempre a correr e preocupada dum lado para outro, e se com mais tempo, ou desempregada ou envelhecida deixa-se traumatizar ou alienar pelo que sobretudo a televisão lhe descarrega através das suas fossas orbiculares até aos abismos da sua alma e ser, desnorteando-a, desorientando-a e desligando-a do Cosmos, que significa em grego um todo belo e ordenado, e que nos é ainda acessível na natureza, na meditação, no amor...

Assim, pessoas de olhar vivo, magnético, impressivo, capazes quase de transmitirem pelo olhar as suas ideias e realizações, influenciando fortemente o seu ambiente em vez de serem abafadas ou comidas por ele, são raras.
E mais raras ainda são as que conseguem aprofundar o auto-conhecimento (já que há tanta informação que é causadora de anti-conhecimento) e fazer chegar até à sua visão interior, e até aos olhos corporais físicos, a força, o brilho, os raios do espírito.
Quanto à palavra, também é raro ouvirmos mais do que conteúdos meramente intelectuais ou repetitivos, avalanches de lugares comuns, partidarismos e asneiras em vez de palavras justas, precisas, fortes, adequadas, carregadas do que elas referem ou simbolizam, e que se tornam gérmens depositados (com mais ou menos amor e delicadeza) nas almas ouvintes e as harmonizam e as predispõem a compreender, meditar e a agir melhor. Talent de bien faire, como foi o lema do Infante Dom Henrique.

Poucos são os que conseguem gerar as imagens, ideias e realizações do que querem dizer, ou partilhar, seja forte emotivamente, seja nítidas dentro de si de modo a transmiti-las com efeitos valiosos nos outros, ao serem pronunciadas de forma clara e precisa, gerando compreensões, emoções e propósitos elevados.
Frequentemen
te, sem querer até, as pessoas preferem antes, ou são levadas tendencialmente a enveredar pela crítica, que pode ter valor esclarecedor mas que desce e pode até prender-se a quem ou ao que se critica. Outras entram e dissolvem-se na conversa superficial e repetitiva, ou mesmo na má-língua, em confidências negativas ou trocistas que fazem diminuir na alma as vibrações luminosas, em vez de se elevarem e elevarem os outros...

Sabe-se que em vários segmentos do nosso cérebro são registados os nossos pensamentos, palavras, actos e emoções, e há fortificações e trocas constantes entre essas zonas pela sinapses neuronais mas esse estado interior é pouco sentido bem como a irradiação que essas partes do cérebro tem sobre os que nos rodeiam. Em geral pensa-se que as pessoas e os seus cérebros são estanques mas não é bem assim, pois tudo está interligado subtilmente, tanto mais que a alma ou corpo psíquico existe numa forma subtil de milhões de partículas luminosas, em ondulação constante. Neste sentido há experiências laboratoriais já a comprovarem a acção a  distância remota, que antigamente se denominava telepatia, algo que Antero de Quental e Fernando Pessoa, dois elos importantes da Tradição espiritual Portuguesa, entre nós experimentaram e investigaram um pouco.

Há assim uma "interfluência", um panpsiquismo e, consequentemente, um contágio para o melhor ou o menos bom e por isso os antigos sempre tiveram os seus agrupamentos de afinidades electivas em que só alguns mais evoluídos eram convidados a participar e logo a poder comungar as vibrações de tais sodalidades ou irmandades manifestadas por seres mais realizados na sua integralidade, e em que a pureza e elevação de intenções criavam ambientes e correntes de alta tensão, ora específicas, quando em meditações ou ritos todos convergiam as  vontades para a realização de certas imagens e efeitos, ora gerais, pelo mero viver de quem tem realizações e aspirações elevadas, nobres e depois dialoga, interage, convive, inspira, ama.
Devería
mos evitar uma abertura excessiva ao exterior e à confusão e desinformação reinante, de que a oferta televisiva noticiarista é, à parte um ou outro canal, o pior paradigma alienativo, e recolher-nos mais, partilhando pessoalmente com uns poucos, em grupos ou não, a nossa experiência e vivências, esses que não a farão baixar mais sim apurar-se, intensificar-se, elevar-se em nós e eles, e no Universo e, seguindo a expressão de Antero de Quental, «alma infinita das coisas».

Saiba pois tanto libertar-se das televisões como usar sobriamente a internet e as redes sociais, leia e escreva mais, e fortifique-se nas comunhões com a natureza, nas orações e meditações, e em alguns diálogos com almas afins, de preferência pelo telefone ou ao vivo, co-criando eventualmente  pequenas redes ou subcampos unificados de energia consciência informação e saiba assim resistir às tendências e medidas de governantes  tão desrespeitadoras dos direitos e liberdade humanas, e tão ignorantes e atentórias da dignidade do ser humano e da integridade e pureza  das árvores, ambientes e Natureza.

Saibamos ser as sementes e os artesãos  de uma Humanidade mais ecológica, ética, fraterna, artística, amorosa, espiritual e universal...