domingo, 24 de outubro de 2021

Francisco Xavier, o 2º das "Figuras de Silêncio", livro de Armando Martins Janeira. Breve resumo.


     Em Francisco Xavier, sonhador duma grande empresa malograda, titulo do 2º capítulo das Figuras de Silêncio, dando talvez uma imagem algo exagerada de um encontro que mesmo assim gerou bastantes resultados, ainda que muito tingidos de sofrimento e sangue, Armando Martins Janeira resume a biografia do nobre basco (1506-1552) desde que em Paris, para onde fora estudar na Sorbonne, encontra S. Inácio de Loiola, e acaba por aderir ao projecto deste e entrar no núcleo inicial dos jesuítas, o qual viaja e actua pela Europa até o Papa Paulo III, o enviar para Lisboa, a pedido do rei D. João III (como vemos na pintura da igreja de S. Roque),  para ir missionar no Oriente, chegando à Índia  em 6 de Maio de 1542 após atribulada viajem, pois partira na carraca Santiago, a 7 de Abril 1541. Foi nomeado, por breve papal,   Núncio Apostólico das partes da Índia, com grandes poderes. 

Dotado de grande energia e convicção tanto curava doentes, baptizava aos milhares, criticava os maus costumes, como comandava tropas contra os islâmicos e destruía os templos e as estátuas sagradas indianas. Armando Martins Janeira assinala desassombradamente tais violências: « O seu zelo ia até aos maiores excessos. Encorajava os jovens convertidos a destruir os templos hindus, a despedaçar e pisar os ídolos, reduzi-los a pó e cuspir-lhes em cima, o que penalizava [ou revoltava mesmo...] aqueles que conservavam as crenças tradicionais. Na opinião de Xavier, Deus "tem horror à oração dos infiéis", não escuta as suas aflições, porque todos os deuses são demónios disfarçados. Aqueles que adoram os ídolos estão perdidos e condenados ao Inferno; todos os que viveram e morreram antes de surgir a salvação cristã estão a sofrer as penas infernais; a alma divina dos recém-nascidos é-lhes dada pelo baptismo. Xavier requer insistentemente a instituição da Inquisição em Goa, a qual foi estabelecida em 1560.»

«Esta furiosa intolerância iria criar-lhe sérias dificuldades no Japão, onde viria a ser uma das causas da perseguição e expulsão do cristianismo. Os japoneses não admitiam a eliminação do xintoísmo. sobre o qual toda a autoridade imperial assentava, e repugnava-lhes aceitar que os santos budistas, como Sakiamuni, Amida, Kwanon (na imagem, do museu de Nara), tivessem sido "condenados ao suplício infernal"»

Referindo em seguida a não-violência em geral das religiões orientais, e em particular o budismo e o taoísmo, a que poderia ter acrescentado  o jainismo, Armando Martins Janeira refere que «antes do cristianismo, o Extremo Oriente ignorava os extremos cruéis da crucificação, do auto-de-fé e de toda a forma de intolerância religiosa», e cita um jesuíta irlandês biógrafo de Xavier que, com coragem, afirma uma verdade que muito católico ainda hoje, no século da multi-culturalidade religiosa, não aceita: «O padre James Brodrick, um dos seus biógrafos, afirma, sem censuras, que o Santo não conheceu a verdadeira Índia, nunca compreendeu que estava na terra mais religiosa do mundo, a qual espalhou uma vaga de piedosa espiritualidade por toda a imensa China, Indochina, Coreia, Sião e Japão. Aquilo que os missionários consideravam um paganismo supersticioso e primitivo era uma religião evoluída e que atingiu formas de alta espiritualidade. «Se Francisco tivesse podido encontrar-se com o seu grande contemporâneo do Norte da Índia, o poeta religioso do Bhakti, Tulsi Das (na imagem em baixo), certamente teria reconsiderado as suas opiniões acerca da religião hindu», escreve o padre Brodrick. Reconhece Martins Janeira que era contudo essa ignorância do valor das outras religiões e o «simplismo da fé ardente e fanática» que dava mais força obstinada aos missionários, mas que em Xavier havia contudo humildade.

 Conta-nos como foi em Malaca em 1547 que Francisco Xavier soube do Japão através do japonês Yajiro, a partir do qual escreve uma carta para Lisboa confirmando que"são gentes que se regem pela razão". E que foi Jorge Alvares, a quem dedicamos o texto anterior no blogue, o rico-mercador e capitão de nau, que ali fundeara o seu navio, quem o melhor informou e apoiou no sonho da evangelização infelizmente mal conduzida, começada em 1549 em Kagoshima onde foi bem recebido, pois acreditava-se até que «eram homens da terra natal de Buda», uma ingenuidade fabulosa, e assim  «na primeira carta do Japão, Francisco Xavier exprime o seu contentamento, o encanto do país, o apreço pela gente japonesa: São de alto coração e confiados nas almas.» «É gente de muito boa conversação e geralmente bondosa, sem malícia, gente de honra, muito de maravilhar.» «No entendimento, que é tudo no homem [e o coração], não lhe fazem vantagem os da Europa.» 

                                   

Apontando as viagens peregrinantes de Francisco Xavier, de Kagoshima para Hirado, e via Yamagushi para Kioto, a capital, onde nada consegue, realça que no regresso, em Yamagushi e depois em Bungo, conseguiu ser bem acolhido e fazer algumas conversões e baptizados, narrados pelo  Padre Lucena, o seu biógrafo principal ou mesmo pelas suas cartas. Entretanto Xavier começa a pensar na China, sobretudo após o contacto com Diogo Pereira que lhe contara as perseguições aí feitas aos cristãos clandestinos (Kakure Kirishitan), e decide, com 27 meses de Japão, regressar à Índia em Novembro de 1551, aonde chega após viajem tormentosa e milagrosa em fins de Janeiro de 1552, e envia pouco depois mais três missionários para o Japão e parte para a China onde fundeia no porto de Sanch'wan, junto a Cantão, acabando por adoecer de febres e morrer em 3 de Dezembro de 1552, com 46 anos apenas. O seu corpo terá contudo vida longa e bem venerada, na catedral de Velha Goa, onde ainda hoje atrai anualmente milhões de cristãos e não só, numa coroação ecuménica que ele próprio não admitiria ou imaginaria na altura.

Será Alexandre Valigano, o seu sucessor na direcção jesuítica no Oriente, quem tentará com mais visão e capacidade dialogante continuar a evangelização do Japão, mas uma décadas depois com o xogunato tudo será destruído e além de algumas centenas de kakure kirishitan, cristãos clandestinos, ficará apenas «um inestimável legado de intercâmbio cultural representado pelos notáveis estudos deixados por alguns jesuítas e pelos valiosos relatórios e cartas destes descrevendo as condições político e sociais  do Japão dessa época». E Armando Martins Janeira conclui este capítulo dedicado ao apóstolo da Índia e do Japão mencionando  o que já referira e ilustrara (como vemos na última imagem) em alguns passos da II parte As Cidades, do seu livro: Kagoshima  consagra-lhe um jardim, uma catedral, um monumento, um busto e um arco votivo; Yamagushi. uma igreja e uma grande cruz com a sua efígie; Hirado, uma estátua e monumento com a sua efígie, e «Sakai ostenta uma lápide no seu mais belo jardim, onde projeta construir-lhe uma estátua. A memória do grande pioneiro continua a animar hoje a fé cristã dos japoneses», dirá simpaticamente e, quem sabe, com verdade, para concluir o capítulo dedicado a Francisco Xavier. 

Certamente que muito mais poderia ter sido dito ou aprofundado, mas para tal servirão as biografias dele e as cartas e histórias da missionarização da Índia e do Japão. Foi sem dúvida um figura importante do encontro ibérico-nipónico e os seus diálogos com um abade budista, Ninjit, em Kagoshima, em 1549 (como narro no dia 5 das Efemérides de Novembro neste blogue), ficaram até como uma semente ("ele mostra-se tão meu amigo que é maravilhoso"...) do diálogo inter-religioso que é hoje o paradigma premente e mais ou menos vigente, até para uma educação religiosa e espiritual universalista que a UNESCO deveria ou poderia impulsionar sem manipular (nomeadamente a partir do trabalho de representantes das religiões e até artes e ciências, sem com isso se querer acabar com a fabulosa diversidade das múltiplas tradições) educação para qual Armando Martins Janeira contribuiu pioneiramente com a sua grande sensibilidade e universalidade...

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