terça-feira, 14 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 3º cap.1ª p. "Pedi e recebereis". Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                                    

                                     “PEDI E RECEBEREIS”  

«Clarifica-se agora neste capítulo se quem procura, chegado à segunda exigência, tem também verdadeiramente direito  de “pedir”!

 “Pedir” neste caso não significa suplicar para obter um dom que viria de certo modo, de fora! "Pedir" consiste aqui em libertar uma força espiritual que causa a entrada em manifestação do que já lhe pertencia por ter “procurado” e “encontrado”.

O ser humano na verdadeira "Oração" não pode pedir senão o que já está dado de toda a Eternidade na Vontade do Ser Primordial.

Contudo só poderá fazer seu, mesmo o que é assim dado, nesta imersão em si mesmo, se  renuncia à sua própria vontade, permitindo a esta última mergulhar na Vontade do eterno Ser.

Assim ao que verdadeiramente «pede» já antes está dado o que ele pode pedir...

A verdadeira “oração” pode sem dúvida ter também um fim definido e muito particular, mas a força operativa do “pedido” não é sem fronteiras!

Esta eficácia é determinada precisamente por parte de quem pede pelo que soube realmente fazer seu - de tudo o que lhe é dado -, de modo que sabia-se em tempos passados que não era um disparate o facto da oração de seres penetrados duma fé ardente levar a certos resultados enquanto  todas as orações de outros  nada resultavam…

Permanece sem importância se aqueles cuja oração era considerada como mais eficaz, tinham  conhecido racionalmente o segredo da verdadeira “oração” ou se eles apenas  pressentiam obscuramente a verdade.

Mesmo quando através duma crença obscura eram levados a proceder inconscientemente correctamente, eles conseguiam verdadeiramente elevar o poder de realização da sua oração a um grau que parecia aos outros miraculoso.

Todavia também em numerosos relatos desses mestres da “oração” verdadeira narra-se que, em certos casos mesmo a oração deles não tinha poder, fosse por causa da incredulidade ou da insensibilidade daqueles para quem oravam, ou porque eles queriam obter para eles próprios pela “oração”, o que eles não podiam “pedir” para si.

  Seria também verdadeiramente exagerado querer-se denominar a verdadeira «oração» de «toda-poderosa» pois o poder do Ser primordial eterno tem os seus próprios limites, pois a Divindade eterna não pode agir contra si própria.

Por outro lado são extremamente raros nos dias de hoje os seres que ainda sabem pela sua própria experiência o que a  “oração” verdadeira pode ainda realizar.

Alguns tornaram-se porém conhecedores do poder da «Oração», mesmo não conseguindo adivinhar porque é que foram «ouvidos»,  de modo que tentam explicar à sua maneira o que a sua intuição imperfeita não lhes consegue clarificar.

Eles chegaram, numa  necessidade severa dificuldade da alma,  a mergulhar, sem saber como, nas maiores profundezas de si próprio e em consequência a "encontrar", e de igual modo inconscientemente conseguiram "pedir" correctamente,  e da mesma maneira aprenderam o “bater” certo,  de modo que os portões do Templo tinham de se lhes abrir.--

Já que é possível na realidade a todo o ser humano aqui na terra  “orar” do modo certo, plenamente consciente da  acção sublime,quando  ele aprende a “orar”, e não tem que esperar primeiro que um sofrimento físico ou uma angústia moral o ensine por via inconsciente, - assim seria menosprezar a ajuda divina se todos os que receberam o ensinamento correcto não se esforçassem em seguida por agir de acordo com o ensinamento recebido…

A bom número de seres parecer-lhes-á muito estranho que seja necessário aprender a «orar», tal como qualquer coisa que se pode aprender?!

Porém todos, os que outrora aqui na Terra  praticavam conscientemente a “oração” como uma arte sagrada celestial, chegaram a tal através de ensinamento e da sua própria aprendizagem.

Sim: -  o antigo relato sagrado revela-nos que os discípulos do grande Ser de Amor, que lhe pediam para lhes ensinar a orar, já deviam  ter adquirido alguma perspectiva elevada, pois só tal saber de que se pode aprender a orar justifica o pedido feito ao Mestre.

 Já conheciam certamente suficientes fórmulas de oração e   não lhe pediram também: “Senhor, ensina-me uma oração nova “ mas, claramente e nitidamente: 

“Senhor, ensina-nos a orar!”»

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Frei Manuel de Deus, um espiritual do séc. XVIII. A oração mental em grupo, beatos e "onde dois ou três se reunirem em meu nome"

Em 1728 saía à luz simultaneamente em Lisboa e Coimbra uma obrinha devocional intitulada Pecador Convertido ao caminho da verdade, instruido com documentos importantes para a observancia da Ley de Deos, dedicados ao Rey da Glória & Redemptor do Mundo, Jesus Christo nosso Senhor. Em Lisboa imprimi-a Miguel Rodrigues e em  Coimbra era o Real Colégio das Artes, da Companhia de Jesus.
 O livro levava no frontispício três garantias ou chancelas protectoras: o reputado convento do Varatojo dos missionários franciscanos, fundado por Frei António das Chagas, o Real Colégio das Artes, antigo bastião do Humanismo mas  entregue depois por D. João III à Companhia de Jesus, vulgo Jesuítas e, por fim, a invocação angélica, numa bela vinheta que, com outras do livro, ilustram esta pequena revisitação bloguiana, na unidade da Tradição Espiritual Portuguesa....
Do seu autor, Fr. Manuel de Deus, diz-nos o notável bibliógrafo Barbosa de Machado na sua incontornável Biblioteca Lusitana: «nasceu na Vila da Amieira do Priorado do Crato no Arcebispado de Évora a 25 de Fevereiro de 1696, onde teve por pais a António Pires Ribeiro, e Maria de Moura. Estudou as letras humanas, e divinas na Universidade desta Cidade com tanta viveza de engenho e felicidade de memória que foi Colegial do Colégio da Purificação. Movido de superior impulso deixou o século em idade varonil abraçando o Seráfico instituto no reformado Seminário de Santo António do Varatojo, no ano de 1715. Onde exercitou o ministério de Missionário Apostólico por várias terras do Reino devendo-se à veemente energia dos seus discursos, e suave atracção das suas vozes, a conversão de muitas almas para o caminho da eternidade. Ao tempo que estava fazendo Missão no Campo Grande, arrabalde de Lisboa, faleceu piamente a 6 de Outubro de 1730, quando contava 35 anos de idade. Faz dele honorífica memória Fr. Joan. a D. Ant. Biblioteca Franciscana. Tom. 1. p. 329. col. 1. », dando em seguinte a lista das suas cinco obras, onde se destaca a Luz, e methodo facil para todos os que quizerem ter o importante exercicio da Oração Mental acrescentado com a Via-sacra, e Ladainha de Nossa Senhora.
Vemos assim que o autor praticava, pregava e ensinava a polémica oração mental, que desde o séc. XVI, por causa de alguns místicos, alumbrados e quietistas tinha despertado a repressão  da Inquisição, à qual consagrou tanto o livro referido como muitas referências e apologias neste Pecador Convertido, no exemplar que estudamos encadernado em pergaminho, sobrevivendo dois atilhos dos quatro que o encerravam e protegiam, qual escrínio secreto. A lombada deixa ainda ler a um olhar treinado no discernimento Pecador convertido numa tinta muito sumida, escrito pelo encadernador ou pelo seu primeiro possuidor, mas quem os discernirá no Oceano da manifestação em material perecível?
O plano da obra é simples:  necessidade de conversão, a importância da oração mental e do amor de Deus, resistência às tentações, meditações breves sobre temas como morte, glória, conhecimento de Deus e, finalmente, a defesa da oração mental pública, ou seja, de meditações colectivas. Transcrevamos algumas partes significativas:
Na pág. 349, no capítulo onde demonstra e conclui que "mais agrada a cada um a Deus, orando publicamente com muitos, que orando ocultamente só", e no qual dá grande cópia de passos dos Evangelhos e comentários dos padres da Igreja para explicar que o orar a sós recomendado e vivenciado por Jesus em geral era com o consórcio dos discípulos e,  portanto, o estar só refere-se mais a estar livre das multidões e suas turbulências; e depois de apontar que a noite é bem propícia para a oração mental e por isso é que nas comunidades religiosas se levantavam três vezes para rezar, finaliza o capítulo de um modo bem instrutivo quanto a certos ambientes e mentalidades da época, e com uma consciência bem perenizante: «Porque este livro pode passar por mãos de algumas pessoas ignorantes, me é necessário declarar-lhes bem, que ainda que me empenho tanto a favor da oração pública de muitos juntamente, não quero dizer que a oração oculta não é boa: digo que é muito boa, mas a outra melhor. Não se escuse alguém de ter oração por nenhum pretexto: se não se atrever a ir à oração pública, por não lhe chamarem beato, tenha oração oculta; e se continuar, não lhe durarão os temores muito tempo».
Realçamos esta advertência destinada a encorajar a participação na oração mental pública, em igrejas, capelas ou sacristias sem recearem ser chamadas de beatos, expressão popular que adquiriu sentidos irónicos, visíveis por exemplo já no séc. XVI, na peça Olissipo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, em que personagem "Beata",  da 1ª edição (hoje desaparecida...) foi substituída na 2ª edição pela "Viúva", por ordem dos censores da Inquisição, como diz o genro de Jorge Ferreira de Vasconcelos na apresentação dessa 2ª edição, de 1618.
Vejamos outras indicações de interesse para a História do Livro e da Espiritualidade Portuguesa: 
«Se tens comodidade, recomendo-te, que busques mais alguns livros, que te dêem documentos e luzes, se não és pobre, procura os Exercícios do Padre Alonso Rodrigues, a Diferença entre o temporal e eterno [do P. Juan Nieremberg]. Se és pobre, procura o livrinho Combate Espiritual [do P. Lorenzo Scupoli] e a Escada Mística de Jacob [do P. Manuel Guilherme]. Se nenhum poderes procurar, e te chegar este às mãos, faz propósitos firmes de obedecer a Deus, observando, o que aqui te disser; e quando sentires as utilidades da observância destas doutrinas, e lembra-te sempre de rogar por mim a nosso Senhor, em cujo nome começo a dirigir-te.» p.33. 
Vemos nesta passagem alguns livros recomendados, vulgares na época, os primeiros volumes grandes e logo mais caros, e os outros pequeninos, tal como também o era o famoso Enchiridion Milites Christiani, Manual do soldado cristão, de Erasmo, protótipo da devotio moderna, e que se pode traduzir tanto por Manual como por Punhal, como bem mostrei no meus comentários ao Modo de Orar a Deus, de Erasmo, que publiqueiComo  homem sensível e pragmático, Frei Manuel de Deus recomenda o seu livrinho, certamente barato, e escrito, diz-nos, em nome do mestre. 
Registe-se, todavia, que no paratexto inicial, na aprovação pela Mesa do Paço, o mais que sábio D. Manuel Caetano de Sousa (1658-1738), que privou com o autor, valoriza, parecendo ecoar Erasmo, a oração mental vivida e ensinada por Frei Manuel: «tão sublime exercício, para o qual dá breves mas certísimas regras, e arma aos soldados da milícia cristã contra todos os vícios», acrescentando a  conformidade da doutrina do livro com a dos mestres da vida espiritual.  Registe-se ainda, segundo a aprovação do mosteiro da Graça (um alfobre de místicos, para outros um conventículo de semi-heréticos) por Frei Manuel de Cerqueira  e Frei Manuel de Boaventura,  que  o autor queria publicar a obra anonimamente, sinal da sua modéstia e domínio do ego (ou "argumento eficaz o fervor do seu espírito", mas não foi autorizado porque: «será o estampar-se o nome do Rev. P. Frei Manuel de Deus no frontispício do seu livro uma singular carta de recomendação, para que se aproveitem deles os fiéis, e pela grande fé que nele têm, frutifique muito mais a sua doutrina».
Iniciando a sua instrução da oração mental, fala de um modo bastante visual, real e directo:«Criou-te Deus para te fazer bem-aventurado... Mas não te pôs teu amoríssimo Pai, para conseguir a suma felicidade, mais que uma lei suavíssima, que te servisse de asas, com que voasses... Abre os olhos, caríssimo irmão meu, prepara-te para receber um raiozinho de luz, que te desperte ao amor do sumo bem, que menosprezaste. Oração mental é o remédio que o Senhor te aplica, e com tanto empenho que não se contenta com persuadi-lo uma vez só, mas muitas vezes o repete nas Escrituras; repara bem, conversar com Deus é o remédio...» Quanto tempo de escuta silenciosa recomendaria para depois de tal diálogo ou solilóquio, que no fundo é mais uma útil confissão e por vezes um auto-sugestionamento, não sabemos...
Ainda assim, interroga-se como é possível tal: «Oh eterno amor da minha alma! Que gosto tendes de ouvir um bichinho vil por natureza, e mais vil pela culpa? Que consonância faz a vossos ouvidos o canto de uma cigarra entre as suaves músicas dos Anjos?» Estaria Frei Manuel de Deus conhecedor ou atento à audição subtil interna, usada por místicos gregos e indianos, e na qual o canto das cigarras nos campos e de noite parece uma sinfonia planetária?
Recomenda depois a consideração do famoso e eficaz "mantra" (quando se pessoaliza..) Amarás a teu Deus, e Senhor, de todo o teu coração, com toda a alma, com todo o entendimento, e com todo o esforço. Este é o máximo, e primeiro preceito.»
Já na parte final, na Demonstração da excelência da oração mental pública de muitos juntamente, introduz uma obra de outro dos mais ardorosos defensores da oração mental ou de quietude, tão atacada por alguns e no caso, uma décadas depois, proibida mesma pelo Marquês de Pombal: «Há pouco tempo saiu à luz um livro, cujo título é, Vindícias da virtude, obra do grande Padre, e ilustrado Mestre, o Doutor Frei Francisco da Anunciação, que desfaz com tanta eficácia, sagrada erudição, e evidência todos os argumentos, de que se vale a impiedade para fazer guerra à virtude, que lendo-o, não poderão deixar de emudecer os malévolos e confirmar-se os pi[edos]os». E valorizando de novo a oração mental em grupo, explicita com experiência e originalidade o paradigmático passo do cap. XVIII de S. Mateus:«De dois modos se costumam ajuntar os fiéis para a oração, ou para pedirem todos a mesma coisa, ou para orar cada um particularmente segundo a sua devoção, e necessidade. Mostra nosso Senhor nestas palavras a grande eficácia da oração de muitos, como dizem todos os Santos Padres, e faz especialíssima promessa de serem ouvidos. E sendo tão admirável o motivo: "Onde estiverem dois ou três congregados em meu nome, eu estou aí no meio deles". Diz Cristo Senhor nosso, que está no meio dos que estão juntos por seu amor, e sua glória na oração, e que esta é a causa de ser a oração  de muitos congregados eficacíssima; porque está no meio deles, como penhor dos que hão-de ser ouvidos, como mestre ensinando, como Pai defendendo, como medianeiro rogando, como alma daquele corpo místico animando-o».
E fiquemo-nos por aqui, dando graças a Frei Manuel de Deus, e rogando à Divindade que nos fortifique a todos nesta peregrinação rumo à Verdade e à Fonte, no amor, na sabedoria e no bem, ou ainda no corpo místico da Humanidade por onde correm os veios e as graças da verdadeira oração...

sábado, 11 de setembro de 2021

Biografia de Antero de Quental, cronológica e resumida, nas comemorações dos 130 anos de sua partida.

                                         

Tal como muitos dos grandes seres, Antero de Quental, ainda que tendo alguns amigos bem próximos, acabou por se consciencializar da sua impossibilidade de fusão e união com alguém e, tendo atravessado a vida com a ardência e a sinceridade dum idealista da justiça, da verdade e da liberdade, mas sem o coração em maior desabrochamento, acabou por se lançar voluntariamenteao mar da misteriosa Morte, por ele sempre muito cultuada, a 11 de Setembro, na sua terra natal, ao final da tarde.  Nascera em 18 de Abril de 1842, em Ponta Delgada, na ilha vulcânica de S. Miguel, Açores, de família com tradições religiosas e poéticas marcadas (o P. Bartolomeu Quental era parente, e o seu avô fora poeta, companheiro de Bocage),  matriculando-se na Universidade de Direito de Coimbra em 1858, onde cedo o seu génio convivial, poético, filosófico peripatético e contestatário brilha: é preso em 1859 por oito dias (cumpridos em duas vezes) por ordem do Conselho dos Decanos, em 1861 funda com José e Alberto da Cunha Sampaio, António de Azevedo Castelo Branco e Frederico da Silva Filemon, uma  associação secreta e iniciática, a Sociedade do Raio, contra o despotismo na Universidade e pela modernização do ensino, e refere-a numa carta:«irmãos e adeptos nesta grande maçonaria da inteligência e da poesia e um pouco também da dor.»  A partir dela, em 1862, lidera  a pateada ao reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto e redige o manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País, subscrito por 314 estudantes. Será de 1861 o seu primeiro livro Sonetos, contendo vinte e um, mas fá-lo-a desaparecer imediatament tornando-se uma edição raríssima. Estavam antecedidos da sua teoria poética, mostrando nela os principais elos da tradição espiritual do soneto em Portugal: Camões, Bocage e João de Deus, seguindo-se os seus sonetos. Porém em Outubro e Novembro de 1863 retoma a saga e publica os livrinhos  Beatrice, e Fiat Lux onde de certo modo se filia ou se identifica com os Cavaleiros de Amor, de Dante, Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Bocage. Beatrice, com quatorze poemas e o belíssimo soneto, "Pôs-te Deus sobre a fronte", escrito sob a égide de Dante, tem uma valiosa citação inicial de Lamennais, na linha dos Fiéis do Amor de Eugène Aroux, acerca da Beatriz, musa e símbolo da demanda da Verdade do Amor humano e divino, infinito e perene. 

Em Março de 1864 começa a  assinar como Bacharel José, o seu terceiro "heterónimo-pseudónimo", o 1º tendo sido Vasco Vasques Vasqueanes e o 2º Raimundo Castromino, Correspondências coimbrãs semanais muito irónicas no jornal O Século XIX, de Penafiel, fundado a 19 de Março pelo seu amigo Germano Vieira Meireles e o pai do seu futuro amigo Joaquim de Araújo (1858-1917). Estas correspondências, quarenta e nove escritas até 5 de Julho de 1865, espelham uma época muito criativa de Antero.

Em Abril de 1864 lidera a revolta e a saída dos estudantes (a Rolinada) até ao Porto, em protesto contra o presidente do Governo, o duque de Loulé, Rolim de Moura, e em Julho termina a sua formatura em Direito.  Poeta nato,  irreverente, caminheiro, filósofo e revolucionário, interessa-se ainda pelas literaturas, mitologias e religiões orientais, em especial persas e indianas. Os seus primeiros versos são românticos, religiosos e filosóficos, editados em folhas volantes, revistas, jornais ou em pequenos opúsculos já mencionados mas será só em Agosto de 1865, com as Odes Modernas, que transmite ou manifesta publicamente com mais impacto os seus ideais revolucionários de justiça, verdade e liberdade: a Revolução era a nova Religião... 

É nesse ano super-movimentado de 1865, iniciado em Janeiro com a publicação magistral e irónica  da Defesa da Carta Encíclica de Sua santidade Pio IX contra a chamada Opinião Liberal, e continuado em Abril com o Sentimento de Imortalidade, que em Novembro inicia a polémica do Bom-Senso e  Bom-Gosto com António Feliciano Castilho, o principal mestre literário de então, que criticara e ridicularizara a nova escola moderna coimbrã de poesia, polémica na qual participarão vários escritores, e tendo até de vencer num duelo em Fevereiro de 1866 o conservador e algo farfalhão Ramalho Ortigão, que se erguera em defesa do patriarca Castilho. Era o começo da Literatura moderna a despontar em Portugal

Embora já formado em Leis, e hesitando quanto ao seu futuro, tal como alistar-se nos exércitos autonomistas de Garibaldi,  decidiu-se por entrar na realidade social como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional de Lisboa, e parte em Novembro para Paris a fim de ser um operário numa tipografia, mas também para assistir a palestras no Collège de France, vida que contudo não aguenta muito tempo (dois meses e pouco), pelo que regressa em Janeiro de 1866, recuperando na quinta dos seus condiscípulos José e Alberto Sampaio, em Guimarães. Persistente, em 1867 regressa a Paris, e  encontra-se em Agosto com um dos seus mestres (tal como Proudhon) ou inspiradores,  Jules Michelet, não se desvendando porém como o autor do livrinho que lhe oferece. Quando regressa a Lisboa em Novembro de 1868, após quase um ano em Ponta Delgada,  valoriza as ideias iberistas de Emílio Castelar, que o chega a convidar a ir para Madrid, e escreve o Portugal perante a Revolução de Espanha - Considerações sobre o Futuro da Política Portuguesa no ponto de vista da Democracia Ibérica, bastante atento às linhas de força que estavam a coalescer: a Revolução Espanhola de 1869 e a proclamação da República em 1871. Esta fermentação espanhola influenciava bastante o meio português, nomeadamente na fundação de jornais e de ideologias, mas mesmo assim o folheto e as ideias iberistas de Antero tiveram os seus opositores, tal como acontecerá sempre em relação às suas obras, sobretudo as mais polémicas. Refiramos apenas, por exemplo, o Almanach Patriótico e Anti-Ibérico para 1869, contendo um artigo Abaixo a União Ibérica, e um poema de Tomás Ribeiro Aos Iberistas, onde denuncia e apela: «E dizem que é Lisboa a filha impura/que invoca essa madrasta destestável!/ Sobre o roto burel veste a armadura/ parte essa louça e surge, ó condestável!»

Inicia então a divulgação dos ideais de Proudhon e do Socialismo, na qual a   caverna filosófica foi o Cenáculo, um grupos de condiscípulos e amigos que se reunia em casa de Jaime Batalha Reis, ao Bairro Alto lisbonense na Travessa do Guarda-Mór, nº 19, 1º, na qual épicas dissertações e acaloradas discussões se ergueram, refrescadas peripateticamente no jardim de Alcântara, situado a uns metros e com vista bem abrangente sobre o centro do burgo lisboeta.

Em 1869, de Março a Novembro, vai por barco até Nova Iorque, ambiente que o desilude, e regressa, continuando na escrita de artigos e poemas, e dando à luz em Dezembro no jornal Primeiro de Janeiro poemas do seu pseudónimo Carlos Fradique Mendes, que será posteriormente explorado por Eça de Queiroz.  1870 é um dos anos mais políticos, pois conhece e trabalha com José Fontana, o grande pioneiro do socialismo em Portugal, e Oliveira Martins, dirigindo ou fundando com eles  e Jaime Batalha Reis, António Arriaga e António Enes, os jornais República Federal e A República - Jornal de Democracia Portuguesa, numa época de florescimento imenso de tipografias, editoras, jornais, revistas e livros, que ocupavam fortemente o centro das cidades, sobretudo de Lisboa.

                                                   

Em 27 de Maio de 1871, dois meses exactos depois da eclosão da Comuna em Paris, liderando um grupo de pensadores amigos mais avançados, pronuncia a fortemente crítica conferência sobre As causas da decadência dos povos Peninsulares nos três últimos séculos, a que se seguiram as de Augusto Soromenho e de Eças de Queiroz sobre Literatura, a de Adolfo Coelho, sobre a Questão do Ensino, a 19 de junho,  até que o ministro do Reino, Ávila e Bolama, determina proibi-las, obrigando Antero a replicar-lhe contundentemente em 30 de Junho, em mais um dos seus geniais escritos ou folhetos em defesa da liberdade.  Dá a luz em Fevereiro de 1872, no meio da sua actividade pública socializante, tanto a revista  Pensamento Social, com José Fontana, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins e Jaime Batalha Reis, onde irá escrevendo múltiplos artigos, como o livro Primaveras Românticas, uma escolha da criatividade e vivência mais juvenil e romântica, amorosa e idealista e que contém poemas belíssimos, vários dedicados às musas dos seus amores juvenis.

Tendo regressado a Ponta Delgada em Abril de 1873 por causa da morte do seu pai, adoece inesperadamente em 1874, só regressando no fim do ano e para começar um longo calvário de diagnósticos e tratamentos ineficazes (seja um estrangulamento do piloro, que lhe dificultara as digestões e o sono, seja um estado psicosomático nervoso sujeito a enfraquecimentos) que o vão diminuindo, e o fazem peregrinar por Lisboa, Açores e Paris em busca de cura.  Em 1877 nas termas de Bellevue encontra uma mulher por quem sente uma paixão forte, Clotilde, mas que não avançara, embora gere um dos seus mais belos poemas de amor, Mors-Amor.

 Tudo isto aliado a uma certa desilusão da actividade política e social a que se entregara bastante em 1878 e 1879, chegando a ser candidato pelo Partido Socialista, depois de ter recusado sê-lo no Partido Republicano-Socialista, reforçam algum pessimismo filosófica e poeticamente. Mas nos primeiros dias de 1881 sai à luz no Porto, na Biblioteca da Renascença,  do seu amigo Joaquim de Araújo, a segunda edição aumentada dos Sonetos, que o afirmam rapidamente como a grande voz poética da época. São apenas 28 sonetos, inclusos em 21 títulos, que mostram linhas de força do seu processo crítico de libertação de mistificações religiosas e de ilusões e medos humanos, numa demanda intensa e sentida da Verdade, filosófica e espiritualmente, proporcionadora sobretudo de desprendimento, estoicismo e serenidade...

 O seu pessimismo começa a ser ultrapassado de certo modo partir do Outono de 1881, quando instalado em Vila do Conde, com as duas filhas do seu amigo Germano Vieira Meireles, que adoptara no final de 1879, e a viúva Teresa, as suas inquietações metafísicas e poéticas começam a dar frutos interiores de transmutação, realizando em si algo próximo do que chamara seja um “Budismo coroando um Helenismo”, seja algo da compreensão profunda da alma dos místicos cristãos alemães, seja uma maior união do espiritualismo com os dados do materialismo científico, seja o panpsiquismo que permeia tudo e todos.

                                 

 Em Vila do Conde, com as suas pupilas Albertina e Beatriz e a mãe Teresa adoentada, junto ao mar, dá à luz em 1883, para elas e para a juventude o Tesouro Poética da Infância, com um belo poema seu, As Fadas (já abordado neste blogue), onde no prefácio justifica-se:«Este livrinho, destinado exclusivamente à infância, dedico-a às mães e cuido fazer-lhes um presente de algum valor. Convencido de que há no espírito das crianças tendências poéticas e uma verdadeira necessidade de ideal, que convém auxiliar e satisfazer, como elementos preciosos para a educação - no alto sentido desta palavra, isto é, para a formação do carácter moral - coligi para aqui tudo quanto no campo da literatura portuguesa me pareceu, por um certo tom ao mesmo tempo simples e elevado, ou ainda meramente gracioso e fino, poder contribuir para aquele resultado, em meu conceito, importantíssimo»
Entretanto vai escrevendo e enviando aos amigos  os seus notáveis Sonetos, na forma e no conteúdo, os quais testemunham uma certa evolução espiritual, embora ainda assim bastante aquém do que ele desejaria já sentir, ser e ver de plena luz e conhecimento. Poderemos pensar que lhe faltou uma prática espiritual meditativa persistente e uma boa contextualização da Divindade, nisso algo limitado pelo ateísmo, o inconsciente e o budismo que na altura predominavam. Mas de facto progredira bastante e em Março de 1885,  escrevia os sonetos Com os Mortos, e O que diz a Morte, os últimos da sua veia poética e bem significativos de crença na vida depois da morte: «Mas se paro um momento, se consigo//Fechar os olhos, sinto-os a meu lado//De novo, esses que amei: vivem comigo,//Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,//Juntos no antigo amor, no amor sagrado,//Na comunhão ideal do eterno Bem.» Desses poucos poemas mais clarividente dirá uns dias depois a Francisco Machado de Faria e Maia «cheguei a dar expressão poética (e creio que ninguém ainda o tinha feito) ao misticismo moderno, misticismo científico e positivo, se assim se pode dizer».
Os Sonetos sairão à luz em 20-VIII-1886 e tornam-se uma obra incontornável da poesia moderna portuguesa e, no  nível formal ou no  filosófico, dificilmente comparável, embora na altura só alguns amigos lhe escreveram elogiando o livro, restando hoje várias cartas das respostas de Antero, de agradecimento maior ou menor conforme tinham compreendido a obra. Uma segunda edição dos Sonetos enriquecida com traduções em línguas estrangeiras realizadas por notáveis intelectuais, dá-lhe em 1889 um relativo sabor de consagração...
Uns meses depois da publicação do livro, o crítico literário e lusófono alemão Wilhelm Storck envia-lhe a tradução de alguns sonetos, respondendo-lhe Antero, a 14-V-1887, com uma extensa carta-autobiográfica de grande valor, onde confessa como se sentiu poeta muito cedo e descreve o seu percurso de vida, corpo, pensamento e alma. A dado momento afirma bem o seu posicionamento panpsíquico: «O Naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No  Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade Moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só  do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares.». Em Fevereiro de 1888 repetirá o mesmo em carta ao jovem poeta Carlos de Lemos valorizando muito:«o sossego interior e a placidez crente de quem encontrou na liberdade moral e no Bem a lei da existência», e aponta-lhe  Camões, Herculano e João de Deus, como os três mestres supremos da poesia portuguesa, recomendando lê-los por serem "grandes espíritos e profundos moralistas", podendo ajudá-lo "a fazer-se  um homem, que é esse o fim soberano da vida"....

Tenta então aprofundar e coordenar as suas ideias e "doutrinas", os seus trabalhos para a Geração nova e a Religião do Futuro, mas a saúde apoquenta-o e limita-o. Vai recebendo alguns amigos, como por vezes manifesta a sua maravilhosa correspondência, conservada pelos destinatários, e destacaremos Fernando Leal, Luís de Magalhães, Eça de Queirós e António Feijó e desde meados de 1889 começa a escrever o seu testamento filosófico, ético e espiritual, que se encontra também disseminado nas cartas, As  Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, que será publicado na Revista Portugal, no primeiro trimestre de 1890 e virá a ser bem estudada por Leonardo Coimbra, Joaquim de Carvalho e outros.

Quando se dá a 11 de Janeiro de 1890 o Ultimatum do imperialismo inglês, face à reacção cívica dos portuenses e em especial ao convite dos estudantes, aceita o cargo de Presidente da Liga Patriótica do Norte, que Luís de Magalhães e mais uns poucos de intelectuais lhe foram pedir a Vila do Conde, com eventos de grande emoção e civismo, tal a recepção dos estudantes aos vivas diante da casa de Carolina Michäelis onde ficaria hospedado. Escreve artigos para vários jornais e revistas e  sai também em folha volante e de grande tiragem o seu tão pedagógico Discurso lido na sessão de 7 de Março da Liga Patriótica do Norte pelo seu presidente Antero de Quental, onde após criticar "o insulto e a vilânia da Inglaterra" considera necessário "um esforço viril e persistente para sermos de facto independentes", constatando ainda "entre a nação e os governantes um verdadeiro divórcio", a  realidade triste de que "os governos, em Portugal, deixaram há muito de representar genuinamente os interesses e o sentir da nação".  E de facto a fraqueza do País e dos políticos acabam por desiludi-lo totalmente, já que o movimento desapoiado esmorece, abandonando de vez a participação pública na marcha dos acontecimentos políticos. Regressado a Lisboa, onde permanece cerca de um ano bastante desiludido com o ambiente geral e em especial a política, volta ainda uns 40 dias a Vila do Conde para encerrar a casa,   regressando  a Lisboa para se ir despedindo dos amigos e a 8 de Junho partir para S. Miguel, rumo a Ponta Delgada. 

Com os seus padecimentos nervosos, a consciência de que a sua missão e inserção terrena estava muito frágil e sobretudo a situação dolorosa de ter de se afastar das duas jovens que educara, resolve desincarnar samuraicamente com dois tiros de pistola, que comprara umas horas antes e embrulhara num jornal,  em 11 de Setembro de 1891, pelas 20:00, sentado calma ou, quem sabe, nervosamente (quem conseguirá ressuscitar tal ambiente interior?), num banco do campo de S. Francisco,  debaixo de uma âncora em relevo no muro da cerca do convento onde estava significativa palavra, essa que acompanha todos os peregrinos e nobres viajantes, e que talvez o tenha desamargurado um pouco antes de se lhe abrir a vereda árdua da vida depois da morte: "Esperança".

Antero de Quental foi um dos raros pensadores que se aproximou lúcido e imaginativae sensivelmente  da ideia da morte e das abismais regiões do Não-Ser, talvez se preparando nesta linha negativa para vir a experimentar com dificuldade e dor o dito grego "Morrer é ser iniciado", que pouco depois o seu grande amigo Joaquim de Araújo, e posteriormente Fernando Pessoa glosaram com grande qualidade (como pode encontrar em textos deste blogue). Pouco antes de morrer, desejara ou sonhara fundar uma ordem de contemplativos, a Ordem dos Mateiros que o crítico literário e pensador Fidelino de Figueiredo realçou como o testamento anímico de alguém que «teria sido um S. Bento de Portugal, restaurador da disciplina das almas, iniciador da sua reconstrução pelo recolhimento meditativo», acrescentando «Três coisas devemos pedir ao recolhimento monástico ou à sua irradiação: firmeza, paciência e esquecimento. Só para as propagar e difundir valeria a pena fundar a velha ordem dos Mateiros, de Antero de Quental - velha, sem nunca ter existido». 
Numa das suas mais belas poesias Antero concluirá: «A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, / Só se revela aos homens e às nações / No céu incorruptível da Consciência», cabendo-nos este trabalho perseverante de transformação da nossa identidade, purificação e estabilização da consciência e religação dela ao espírito e à Divindade, na sua graça...  
 Os seus panfletos, a obra poética, nomeadamente os Sonetos, a filosófica e, sobretudo, as tão valiosas Cartas dirigidas aos amigos, bem editadas por Ana Maria Almeida Martins,  sobreviverão sempre na literatura, na filosofia e na espiritualidade portuguesa, tal como o seu In-Memoriam que, publicado cinco anos depois da sua partida do corpo físico, fá-lo vivo e interactivo connosco dada a qualidade do testemunho de muitos dos vinte e nove amigos, onde se destacam os de Eça de Queirós, Manuel Duarte de Almeida, Jaime de Magalhães Lima, Luís Magalhães, Joaquim de Araújo, etc...

Antero de Quental, S. Francisco de Assis, Tommaso Cannizzaro, o panpsiquismo e o caminho do Bem. Nos 130 anos da morte de Antero.

                                         
A admiração de Antero de Quental por S. Francisco de
Assis e a sua obra está assinalada em algumas cartas do seu vasto epistolário e em especial em duas dirigidas ao poeta siciliano, crítico literário e tradutor dos seus sonetos Tomazzo Cannizzaro (1838-1921). Na primeira, datada de 24 de Junho de 1886, diz-lhe «vou publicar o meu último (último e derradeiro) volume de versos, sendo a colecção completa dos meus Sonetos, colecção por assim dizer cíclica, pois abrange o período inteiro da minha evolução intelectual  sentimental, desde 1860 a 1880. Não sei o que poderá valer como arte; mas, em todo o caso, valerá  como um documento psicológico, como "as memórias duma consciência" neste nosso período tão tormentoso e confuso. Tomei a liberdade de dedicar a Você um daqueles Sonetos, para que dure, enquanto o livro durar, a memória do fraternal encontro dos nossos dois espíritos. O volume recebe-lo-á Você talvez antes do fim de Julho.
E, antes de m
e despedir, vou pedir-lhe uma informação, e é se existe alguma edição acessível das Poesias italianas de São Francisco de Assis, de que só conheço uma por Você publicada; mas o que sobre essas Poesias dizem o Taine na sua Voyage en Italie e o Ozanam no seu estudo Sur les poètes Franciscains estimula-me muito a lê-lo no original.
E adeus, meu caro poeta. Disponha de mim e creia que, ainda quando deixo passar muitos meses sem lhe escrever, a sua lembrança me é sempre presente.
Do seu amigo - Muito do coração
Anthero de Quent
al.»
                                       
Tomazzo Cannizzaro
Será a 5 de Setembro de 18
86, de Vila do Conde, que Antero de Quental responderá a agradecer os livros que Tommaso Cannizzaro entretanto lhe enviara e dá alguns ecos filosófico-espirituais da sua visão de S. Francisco de Assis agora bastante mais directa:

«Há dias recebi os excelentes livros que teve a grande bondade de me mandar, e quase não tenho feito outra coisa senão lê-los. Poucas fisionomias há para mim tão interessantes, quer histórica quer psicologicamente, como a de Francisco de Assis.
Considero-o como o primeiro dos precursores do espírito moderno, digo, o espírito moderno como representado por [Giordano]Bruno, Schelling e [Edward von] Hartmann, do Panteísmo espiritualista. Neste ponto de vista haveria um paradoxo (no fundo nada paradoxal) a desenvolver, que São Francisco de Assis não fora cristão; e a fazer sobressair o contraste entre a sua concepção do mundo e da vida, toda ela dum optimismo poético e panteísta, e a trágica e sombria concepção pessimista da Igreja, de um mundo radicalmente mau e condenado
por Deus. É claro que S. Francisco se julgava cristão: mas estou referindo-me não ao que ele julgava ser, mas ao que efectivamente, embora inconscientemente, era e representava na evolução do pensamento e do sentimento humano na Idade Média. É este um ponto de vista que mais de uma vez me tinha ocorrido, e que a leitura dos livros, que me mandou, em mim renovou, confirmando-o.»
                                        
Realçaremos neste artigo antes de mais a valiosa tentativa de peren
izar a amizade e fraternidade  com Tommazo Canizzaro: «Tomei a liberdade de dedicar a Você um daqueles Sonetos, para que dure, enquanto o livro durar, a memória do fraternal encontro dos nossos dois espíritos.» É como que um momento de auto-consciencialização perenizante e que nos chega ainda hoje a nós seus leitores, na fraternidade dos fiéis do Amor. E que pena não ter peregrinado a Itália, tal como aspirara em Janeiro de 1866, ao querer alistar-se nas tropas autonomistas de Garibaldi, e desafiando para tal António de Azevedo Castelo Branco, quão frutuosa teria sido tal osmose com Florença, Roma e Assisi, tal como ele aliás deixa escrito:« Creio ser esta para nós uma boa ocasião de sairmos do absurdo sopa-vaca e arroz da vida ordinária. Queres ir? Un bel morir tutta la vida onora (...) Tudo isto não é incompatível com o bom senso, ainda que o pareça um pouco. Podemos estudar, ver, pensar: há bibliotecas em todas as cidades italianas; e espero que se encontrem homens...»   Bem profética a rima de Petrarca: Un bel morir tutta la vida onora (...)

A segunda  consideração que realçaremos é a sua visão de S. Francisco de Assis como um precursor da Humanidade moderna, pelo seu panteísmo místico,  ou panteísmo espiritualista, estado consciencial fundamental, a que fará corresponder  noutros textos, "a fé na espiritualidade latente mas fundamental do universo" ou ainda o "panpsiquismo", que ele tanto valorizava e demandava filosoficamente,  discernindo assim na  grande sensibilidade à natureza e à fraternidade dos seres em S. Francisco de Assis sinais desta unidade entre a realidade natural e a espiritual e, segundo Antero, bem mais presente no paganismo do que na Igreja, algo que S. Francisco de Assis inconscientemente (ou supraconscientemente) saberia e seguiria...
                                                    
Numa carta dirigida um mês depois a Carolina Michaelis, quanto a "influências" cristãs propostas por ela para os seus sonetos Redenção e
Contemplação, responde-lhe como bom conhecedor do seu caminho: «Conheço, com efeito, o chamado Hino ao Sol do maravilhoso poverello de Assis e igualmente li alguma coisa das Epístolas de São Paulo; mas com tudo isso, a concordância que V. Ex.ª encontrou não pode ser senão fortuita, ou antes filha dum estado de sentimento análogo ao daqueles dois grandes místicos. Juntamente aqueles dois sonetos («Redenção»), juntos com outros («Contemplação»), representam em forma de imagem e sentimentalmente uma das ideias fundamentais da compreensão das coisas, a que cheguei e em que fiquei, e que espero ainda desenvolver em prosa e com o rigor da exposição filosófica (...),» o que Antero redige em 1890  para a Revista de Portugal, sob o título As Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, embora não na forma completa e perfeita que desejaria...

É grato aos portugueses nestes tempos que filosoficamente a unidade entre a matéria-energia e a informação-pensamento cada vez mais está a ser comprovada por investigadores e cientistas, denominando-a ora panpsiquismo, ora monismo relativo, ora campo unificado de energia consciência, observarmos que já no final do séc. XIX Antero de Quental podia anunciar sem exagero que antevia a bússola da direcção do desenvolvimento filosófico e espiritual da Humanidade e que para tal contribuía, tentando mesmo chegar «até àquela profundidade de compreensão do "homem interior" a que os místicos chegaram», como dirá em carta de XI-1886 ao tolstoiano e vegetariano discípulo seu Jaime de Magalhães Lima, dizendo ainda «Quem vai na frente é o santo, filósofo a seu modo como o são, e homem de acção por excelência, por isso que a sua acção é toda no sentido do bem», concluindo, da regra de S. Bento, com o «labora et noli contristari», citação que transcrita completamente seria "ora, labora et noli contristari in laetitia pacis", "reza, trabalha e não te entristeças na alegria da paz". E sabemos ainda como Antero de Quental foi um franciscano no seu modo de vida simples, sóbrio e em frequente comunhão com a Natureza.

Possam Antero de Quental, Tommaso Canizarro, Carolina Michäelis, António de Azevedo Castelo Branco, Jaime de Magalhães Lima e S. Francisco de Assis estarem em paz e alegria nos mundos espirituais mais luminosos (em baixo numa pintura de Bô Yin Râ) e inspirarem-nos a trilhar firmemente o caminho da verdade e do bem, da compaixão fraterna e do amor, e da Divindade...

De Bô Yin Râ.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Tolstoi, "O que eu vi em sonho". Resumo do conto, e um vídeo sobre Tolstoi, Jaime de Magalhães Lima e Antero de Quental.

O que eu vi num Sonho, é um título que num conto abre infinitas possibilidades de enredo, e cada um antecipará o que mais rapidamente lhe aflui na intercomunicação neuronal e anímica: ora viagens, ora visões, ora futuros desvendados. Mas se soubermos que o seu autor é Leão Tolstoi então teremos de preparar-nos para sermos completamente ultrapassados pela sua criatividade literária genial, simultaneamente realista e emocionante, moralista e doutrinária, amorosa e religiosa. 

A obra no original intitulava-se Meu Sonho, e fora escrita por Tolstoi (1828-1910) já no fim da sua peregrinação terrena, a 13 de Novembro de 1906, em Isnaia Poliana, e a tradução por Jaime de Macedo, certamente do francês onde recebeu este título, nos anos 20, está antecedida por uma biografia inicial sóbria, e foi impressa num in-12º de 30 págs., no olisiponense e alfarrabista Largo do Calhariz, para as Edições Delta. O sonho ou história é esta: um nobre queixa-se a um seu irmão, governador no centro da Rússia, da desgraça da sua filha ter partido de casa há um ano e saber agora que teve um filho de um estrangeiro e estar a viver numa cidade distante, o que o humilha e o dilacera. Será Alexandra, a mulher do irmão, bondosa e despretensiosa, que de noite virá falar com ele, e pedir-lhe: "Tende dó dela". Mas Miguel Ivanovich não quer saber mais da filha Lisa, apenas que tenha o dinheiro suficiente, o que de novo leva Alexandra a contra-atacar tentanto converter, humanizar, dulcificar o frustrado e irado pai: «Ide lá vós próprio. Apenas para ver como ela vive. Se não a quereis encontrar, seguramente não a encontrareis. Ela não estará lá. Não haverá lá ninguém.»

Tolstoi manobra bem a emoção que mais faz vibrar e chorar, a compaixão, e acrescenta-lhe mesmo os poderes extra-sensoriais que potencialmente temos e que se merecermos realizaremos, no caso sugerindo que só acontecerá o que ele verdadeiramente quiser. É invocado algo da fé e da entrega à providência Divina,  tão típica dos povos da Rússia.

Deixando Miguel Ivanovich na roda livre das associações neuronais nocturnas, que em certas pessoas se tornam obsessivas, e sobre elas latejando  condenações morais, tal como as mulheres não serem puras ao comprazerem-se em serem desejadas, como observara na sua filha e em bailes, ou como fora frívola no tratamento dum jovem e se divertia superficialmente em Petersburgo, esta relação com um estudante sueco na Finlândia era o fim: já não se considerava pai, embora à repulsão que sentia se juntasse o enternecimento das memórias que  afloravam de quando ela era uma jovenzinha muito carinhosa...

O segundo capítulo ou quadro vai servir a Tolstoi para, depois de descrever o valor e poder do Amor, apresentar a evolução de Lisa e o seu sofrimento, pois já em Petersburgo constatara «o vácuo da sua vida (...) como se divertia apenas com a vida animal, exterior, com exclusão de toda a vida interior», e como, para fugir disso, partira para a Finlândia, para a casa de uma tia, onde encontra um jovem escritor sueco e, na bela e vivenciada descrição de Tolstoi, «começa esse perigoso contágio dos olhares, dos sorrisos, cujo sentido se não pode exprimir por palavras, porque as ultrapassa todas. Esses olhares e esses sorrisos desvendavam a um e ao outro as suas almas e não somente as suas almas mas os mistérios graves, importantes, comuns a toda a humanidade. Por causa desses sorrisos cada uma das suas palavras recebia uma significação mais profunda»... Depois vem porém a desilusão, pois o jovem já fora casado e não a queria, o que a leva a sentir-se cair num abismo para o qual o suicídio poderia ser a solução. Mas subitamente sente que engravidou e logo ressuscita, para ao menos ser mãe, ainda que infeliz, sobretudo por ferir o pai que tanto amava.

Será no terceiro e último capítulo que Tolstoi, com a sua mestria de causar nos leitores empatias intensas, vai aproximar os dois seres, descrevendo os sofrimentos interiores em que se encontram, o amor que os move e as conversões que terão de efectuar.

 Vemos então Miguel Ivanovich resolver-se a ir visitar a filha e, quando ela regressa de umas compras, e depois de já ter ouvido chorar no quarto ao lado a criança, dá-se o choque catártico, ela escanzelada e ele sentindo que o seu orgulho e amor-próprio feridos nada são perante o amor e o dó de pai. É certamente a cena mais emotiva do livrinho: a filha a suplicar perdão e o pai a realizar que é ele próprio quem tem de o pedir, e vê derreter-se todo o seu orgulho nos beijos que dá a filha. É uma cena quase épica, talvez porque Tolstoi tenha conseguido tornar história que terá tantas vezes acontecido ao longo dos séculos, um arquétipo, uma obra imortal, que vive no mundo imaginal, e quem quer que a leia vai sentir as forças divinas do perdão, da compaixão e do amor, tão importantes são na vida humana. E como recomeçar a vida mais harmoniosamente...

São todavia interrompidos pela criança a chorar, pedindo de mamar, e ele, constrangido, despede-se, dizendo-lhe: «-Vai, vai, que Deus seja louvado. Amanhã voltarei e decidiremos. Até à vista, minha querida, até à vista. - E de novo ele sustinha com esforço os soluços que lhe subiam na garganta.»

O fim vem rápido e nem sequer cor de rosa, pois Tolstoi escreve tanto para a Rússia do começo do séc. XX como para o futuro, pois os efeitos de certos preconceitos e forças de pressão  persistirão até aos nossos dias:  «Miguel Ivanovich perdoou completamente e venceu todo o seu receio da opinião pública.   Instalou a filha em casa da irmã de Alexandra Dimitriévna, que morava no campo, e vi-a como antigamente, e passava épocas em casa dela. Mas evitava ver a criança e não podia vencer o sentimento de repugnância que ressentia por ela, o que era para a filha uma causa de sofrimentos».

Reflectiria ainda Leão Tolstoi neste desfecho alguma da sua sensibilidade patriarcal, ou pelo contrário criticava-a, não sabemos, mas cremos que nesta 3ª década do século XXI já não veria necessidade de apontar um pai que não queria tornar-se avô... 

Possamos nós nas nossas vidas não recusarmos reconciliações e vivermos bem auto-conscientes no amor justo e recíproco...

No 193º aniversário do nascimento de Tolstoi...

Segue-se um vídeo gravado já há uns anos e que nem sei bem já o seu conteúdo, e portanto a sua boa interacção ou não com o resumo do conto agora escrito.

Muita Luz e amor nas nossas almas e vidas para melhor abertura ao Divino e ao Bem... 

               

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Tolstoi e a sua obra vistos com mestria crítica por Agostinho da Silva, em 1942. Comemorações dos 193 anos do nascimento de Tolstoi.

A apreciação crítica de Tolstoi e da Literatura Russa por Agostinho da Silva manifestou-se publicamente em 1941 e 1942, pois  na sua meritória tarefa de pedagogo  deu à luz na sua vasta colecção Antologia, Introdução aos Grandes Autores, um número (como habitualmente de 24 páginas) dedicado a Tolstoi, com uma pequena biografia e um belo conto, traduzido do francês, A Terra de que precisa um Homem, que já mereceu um artigo neste blogue.

Na curta biografia que antecede o conto, e que  digitalizámos no artigo anterior, Agostinho realça em Tolstoi certos valores que atribui aos seus pais, tais como "vida pura, amor ao próximo e actividade social justa ou frutuosa", tão característicos da alma russa, bem como a forte aspiração ao "Amor universal",  e destaca como em si mesmo se debatera com os seus aspectos instintivos, egoístas e violentos e  soubera com arte na sua obra literária e religiosa genial mostrar que apesar dos piores defeitos os seres têm sempre um potencial de transformação e amor, gerador de beleza, justiça e harmonia... 
No ano seguinte em 1942, quando morava na Rua Dr. António Martins, 24-2º, nos Cadernos de Informação Cultural, Iniciação, dava à luz no seu habitual in-4º grande de 24 páginas, Literatura Russa, onde de novo se aproxima da vida e obra de Tolstoi com grande conhecimento e mestria crítica, por vezes até irónica.
                                          
 Transcrevamos então, neste começo de tarde de nuvens pardas do dia de aniversário de Tolstoi, 9 de Setembro de 2021,  as três páginas de texto corrido (para ganhar linhas) que Agostinho da Silva, com quem dialoguei tantas vezes, lhe dedica, após se ter debruçado sobre Pushkin, Gogol, Lermontov, Turgénev e Dostoievsky (1821-1881):  «Costuma citar-se Tolstoi, seu contemporâneo (1828-1910) como o autor mais oposto a Dostoievski e de certo o é, se atendermos à habilidade de compor, que falha, porém, algumas vezes, à precisão de linguagem, ao justo sentido realista de que Dostoievski dá provas tão reduzidas; Tolstoi vê, ouve, percebe o mundo exterior com sentidos maravilhosos que de tudo dão conta, registam o mais insignificante pormenor, sabem reconstituir com precisão uma paisagem de estio ou um nevão na estepe, um baile aristocrático ou o serviço de uma bateria em pleno combate; a sua prosa ajusta-se a tudo quanto o artista dela exige, sempre límpida, atingindo os mais altos efeitos com o mínimo de recursos, numa elegância natural que despreza toda a retórica e que nunca dá a impressão de desarranjo e de imperfeito que vem da prosa de Dostoievski. Mas fundamentalmente, o drama de Tolstoi, que é afinal o que ele exprime em todos os seus livros, desde Sebastopol a Ressurreição e às últimas novelas, sem exclusão de A Guerra e a Paz, aparenta-o às personagens de Dostoievski; para ele também o mundo é uma ocasião de santidade, mas santidade de que afasta o próprio esplendor do mundo; o artista e o homem moral batalham duramente entre si e não deixam a Tolstoi um momento de repouso, mesmo dando o desconto necessário a um certo gosto de representação e proselitismo [descortinamos uma crítica a certos exageros tolstoianos da sua luta anti-sensual]; também ele, nas horas em que as tentações menos o vencem, em que a violência e a sensualidade naturais parecem mais adormecidas, crê na smirenie [em russo, humildade, algo submissiva e logo criticado pelos mais revolucionários] como numa força de salvação do mundo, também ele prega a resignação, a não-resistência perante o mal [muito assumida plenamente por ele, e que na Índia é denominada ahimsa, que Tolstoi valorizou e intensificou em Gandhi], também ele admira a civilização dos países ocidentais: o ser bom na sua aldeia, entre os seus camponeses, consistia para Tolstoi em vestir uma blusa de mujique, consertar ele próprio as suas botas e dormir numa das salas do palácio [aqui há algum exagero crítico por Agostinho], não em, como lhe propunha Masaryk, acabar com a repugnante miséria dos servos, combater a tuberculose e a sífilis, abrir escolas técnicas [novo leve exagero, algo "comunizante" do "jovem" Agostinho, menosprezando as acções de Tolstoi em favor da emancipação do proletariado, embora não-violenta e de facto pouco realizável, ou ainda contra as epidemias que grassavam, bem como as escolas, embora de facto não técnicas, que fundou]; nada disto, segundo pensava, serviria para o bem da alma e o que sofre resignado vale mais que o homem sôfrego de acção, enamorado dos maquinismos, mais atento à realidade exterior do que ao mundo da alma e que podia afinal ser batido, mesmo no seu próprio terreno, pelo conjunto russo, pela terra, pelo clima, pelos generais indolentes e ignorantes, pelo soldado que marchava como animal em rebanho; o que vale é a purificação interior; o que vale é a aproximar-se o mais possível de Cristo: para a Rússia o ideal seria tornar-se um Cristo colectivo que ensinasse ao mundo a verdadeira vida, vida de paz e de amor pelos homens e mulheres, de cooperação em todas as tarefas necessárias; se alguma vez combate a miséria, parece não ser o pobre que o aflige [...], mas o rico, que está perdendo a sua alma, cavando um fosso intransponível entre ele e o seu irmão, que devia amparar e socorrer; do mesmo modo se levanta contra a arte que sendo actualmente um domínio de poucos dá a esses uma ideia de superioridade que destrói a da igualdade que devia existir; não parece ter-lhe acudido uma só vez [... terá sido?] a ideia de que o ocidental, ocupando-se da ciência e da técnica, estava também vendo o problema económico como problema moral, mas importando-se menos com o sofrimento do rico do que com as torturas do pobre e pondo como ideia essencial a de que só pode aspirar à perfeição moral, salvo a excepção dos maiores, quem tiver resolvido o seu problema material; cristão e eslavófilo como Dostoievski, Tolstoi vê, no entanto, melhor do que ele, muitos dos problemas e dos defeitos da Rússia, e a luta contra a guerra, a tentativa da reforma das escolas, o abalar da autoridade da Igreja oficial, põe-no mais do que a Dostoievski na linha dos revolucionários, que de resto combateu em nome dos seus princípios pacifistas.
Como artista, Tolstoi transcende todos os limites da Rússia do seu tempo: o extraordinário poder de observação, os recursos de análise psicológica, o sentido dramático,a simpatia humana, colocam-no entre os artistas de carácter mais universal; só o Quixote de Cervantes poderá comparar-se, noutro plano, com uma novela como  a Guerra e Paz e, mesmo nos trabalhos e menor fôlego, como Hadji Murad, Servo e Senhor, A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi facilmente se eleva a um amplo significado humano; são menos sólidos todos os trabalhos que exigiam maiores qualidades de pensador, quer as dissertações humanitárias sobre a miséria, o cristianismo, a guerra, a pedagogia, quer as obras de ficção em que a tese era mais importante; no entanto, mesmo numa Sonata a Kreutzer, de tão fraca estrutura ideológica [e estamos de acordo...], se revela a capacidade do artista, o seu ímpeto poderoso, o seu poder de construção estética.»
Concluamos esta breve homenagem a Tolstoi, e certamente a Agostinho da Silva, permitindo-nos valorizar todavia as  capacidades de Tolstoi como pensador e autor de dissertações sobre o pacifismo e cristianismo, considerando algumas das suas páginas muito profundas, catárticas, revolucionárias e perenes, discordando nestes dois aspectos ou temas do então bastante exigente Agostinho da Silva. E nessa linha mais juvenil, ou mesmo na final tão abrangente e universalista, o que diria Agostinho da Silva do actual conflito da NATO, USA, Ursula e Zelensky com a Rússia? Daria razão a uma das partes? 
Creio que sim. A sua bússola interior de experimentado marinheiro, apesar de todas as propagandas e manipulações, saberia discernir a verdade e logo defendê-la, afirmá-la... Mas só quem conseguir meditar e intuir é que saberá mesmo... 
Que a Luz dele ou nele nos inspire!
Agostinho da Silva, russo...
Se digitar "Tolstoi" nas mensagens deste blogue encontrará algumas valiosas, tal como a:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/04/tolstoi-ao-clero-1902-resumo-deste.html. 
Da apreciação universal de Tolstoi não haverá muito a provar. Por parte dos portugueses ela foi bastante mais forte no fim da Monarquia e começo da República, destacando-se um tolstoiano de grande qualidade e amigo muito próximo de Antero de Quental, Jaime de Magalhães Lima, tal como poderá ler em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/09/jaime-magalhaes-lima-e-antero-tolstoi-e.html. Ou ainda em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2015/01/jaime-de-magalhaes-lima-as-doutrinas-do.html     Lux Amor!
Jaime de Magalhães Lima e Antero de Quental. Lux, Amor!