sábado, 11 de setembro de 2021

Antero de Quental, S. Francisco de Assis, Tommaso Cannizzaro, o panpsiquismo e o caminho do Bem. Nos 130 anos da morte de Antero.

                                         
A admiração de Antero de Quental por S. Francisco de
Assis e a sua obra está assinalada em algumas cartas do seu vasto epistolário e em especial em duas dirigidas ao poeta siciliano, crítico literário e tradutor dos seus sonetos Tomazzo Cannizzaro (1838-1921). Na primeira, datada de 24 de Junho de 1886, diz-lhe «vou publicar o meu último (último e derradeiro) volume de versos, sendo a colecção completa dos meus Sonetos, colecção por assim dizer cíclica, pois abrange o período inteiro da minha evolução intelectual  sentimental, desde 1860 a 1880. Não sei o que poderá valer como arte; mas, em todo o caso, valerá  como um documento psicológico, como "as memórias duma consciência" neste nosso período tão tormentoso e confuso. Tomei a liberdade de dedicar a Você um daqueles Sonetos, para que dure, enquanto o livro durar, a memória do fraternal encontro dos nossos dois espíritos. O volume recebe-lo-á Você talvez antes do fim de Julho.
E, antes de m
e despedir, vou pedir-lhe uma informação, e é se existe alguma edição acessível das Poesias italianas de São Francisco de Assis, de que só conheço uma por Você publicada; mas o que sobre essas Poesias dizem o Taine na sua Voyage en Italie e o Ozanam no seu estudo Sur les poètes Franciscains estimula-me muito a lê-lo no original.
E adeus, meu caro poeta. Disponha de mim e creia que, ainda quando deixo passar muitos meses sem lhe escrever, a sua lembrança me é sempre presente.
Do seu amigo - Muito do coração
Anthero de Quent
al.»
                                       
Tomazzo Cannizzaro
Será a 5 de Setembro de 18
86, de Vila do Conde, que Antero de Quental responderá a agradecer os livros que Tommaso Cannizzaro entretanto lhe enviara e dá alguns ecos filosófico-espirituais da sua visão de S. Francisco de Assis agora bastante mais directa:

«Há dias recebi os excelentes livros que teve a grande bondade de me mandar, e quase não tenho feito outra coisa senão lê-los. Poucas fisionomias há para mim tão interessantes, quer histórica quer psicologicamente, como a de Francisco de Assis.
Considero-o como o primeiro dos precursores do espírito moderno, digo, o espírito moderno como representado por [Giordano]Bruno, Schelling e [Edward von] Hartmann, do Panteísmo espiritualista. Neste ponto de vista haveria um paradoxo (no fundo nada paradoxal) a desenvolver, que São Francisco de Assis não fora cristão; e a fazer sobressair o contraste entre a sua concepção do mundo e da vida, toda ela dum optimismo poético e panteísta, e a trágica e sombria concepção pessimista da Igreja, de um mundo radicalmente mau e condenado
por Deus. É claro que S. Francisco se julgava cristão: mas estou referindo-me não ao que ele julgava ser, mas ao que efectivamente, embora inconscientemente, era e representava na evolução do pensamento e do sentimento humano na Idade Média. É este um ponto de vista que mais de uma vez me tinha ocorrido, e que a leitura dos livros, que me mandou, em mim renovou, confirmando-o.»
                                        
Realçaremos neste artigo antes de mais a valiosa tentativa de peren
izar a amizade e fraternidade  com Tommazo Canizzaro: «Tomei a liberdade de dedicar a Você um daqueles Sonetos, para que dure, enquanto o livro durar, a memória do fraternal encontro dos nossos dois espíritos.» É como que um momento de auto-consciencialização perenizante e que nos chega ainda hoje a nós seus leitores, na fraternidade dos fiéis do Amor. E que pena não ter peregrinado a Itália, tal como aspirara em Janeiro de 1866, ao querer alistar-se nas tropas autonomistas de Garibaldi, e desafiando para tal António de Azevedo Castelo Branco, quão frutuosa teria sido tal osmose com Florença, Roma e Assisi, tal como ele aliás deixa escrito:« Creio ser esta para nós uma boa ocasião de sairmos do absurdo sopa-vaca e arroz da vida ordinária. Queres ir? Un bel morir tutta la vida onora (...) Tudo isto não é incompatível com o bom senso, ainda que o pareça um pouco. Podemos estudar, ver, pensar: há bibliotecas em todas as cidades italianas; e espero que se encontrem homens...»   Bem profética a rima de Petrarca: Un bel morir tutta la vida onora (...)

A segunda  consideração que realçaremos é a sua visão de S. Francisco de Assis como um precursor da Humanidade moderna, pelo seu panteísmo místico,  ou panteísmo espiritualista, estado consciencial fundamental, a que fará corresponder  noutros textos, "a fé na espiritualidade latente mas fundamental do universo" ou ainda o "panpsiquismo", que ele tanto valorizava e demandava filosoficamente,  discernindo assim na  grande sensibilidade à natureza e à fraternidade dos seres em S. Francisco de Assis sinais desta unidade entre a realidade natural e a espiritual e, segundo Antero, bem mais presente no paganismo do que na Igreja, algo que S. Francisco de Assis inconscientemente (ou supraconscientemente) saberia e seguiria...
                                                    
Numa carta dirigida um mês depois a Carolina Michaelis, quanto a "influências" cristãs propostas por ela para os seus sonetos Redenção e
Contemplação, responde-lhe como bom conhecedor do seu caminho: «Conheço, com efeito, o chamado Hino ao Sol do maravilhoso poverello de Assis e igualmente li alguma coisa das Epístolas de São Paulo; mas com tudo isso, a concordância que V. Ex.ª encontrou não pode ser senão fortuita, ou antes filha dum estado de sentimento análogo ao daqueles dois grandes místicos. Juntamente aqueles dois sonetos («Redenção»), juntos com outros («Contemplação»), representam em forma de imagem e sentimentalmente uma das ideias fundamentais da compreensão das coisas, a que cheguei e em que fiquei, e que espero ainda desenvolver em prosa e com o rigor da exposição filosófica (...),» o que Antero redige em 1890  para a Revista de Portugal, sob o título As Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, embora não na forma completa e perfeita que desejaria...

É grato aos portugueses nestes tempos que filosoficamente a unidade entre a matéria-energia e a informação-pensamento cada vez mais está a ser comprovada por investigadores e cientistas, denominando-a ora panpsiquismo, ora monismo relativo, ora campo unificado de energia consciência, observarmos que já no final do séc. XIX Antero de Quental podia anunciar sem exagero que antevia a bússola da direcção do desenvolvimento filosófico e espiritual da Humanidade e que para tal contribuía, tentando mesmo chegar «até àquela profundidade de compreensão do "homem interior" a que os místicos chegaram», como dirá em carta de XI-1886 ao tolstoiano e vegetariano discípulo seu Jaime de Magalhães Lima, dizendo ainda «Quem vai na frente é o santo, filósofo a seu modo como o são, e homem de acção por excelência, por isso que a sua acção é toda no sentido do bem», concluindo, da regra de S. Bento, com o «labora et noli contristari», citação que transcrita completamente seria "ora, labora et noli contristari in laetitia pacis", "reza, trabalha e não te entristeças na alegria da paz". E sabemos ainda como Antero de Quental foi um franciscano no seu modo de vida simples, sóbrio e em frequente comunhão com a Natureza.

Possam Antero de Quental, Tommaso Canizarro, Carolina Michäelis, António de Azevedo Castelo Branco, Jaime de Magalhães Lima e S. Francisco de Assis estarem em paz e alegria nos mundos espirituais mais luminosos (em baixo numa pintura de Bô Yin Râ) e inspirarem-nos a trilhar firmemente o caminho da verdade e do bem, da compaixão fraterna e do amor, e da Divindade...

De Bô Yin Râ.

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