sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Tolstoi, "O que eu vi em sonho". Resumo do conto, e um vídeo sobre Tolstoi, Jaime de Magalhães Lima e Antero de Quental.

O que eu vi num Sonho, é um título que num conto abre infinitas possibilidades de enredo, e cada um antecipará o que mais rapidamente lhe aflui na intercomunicação neuronal e anímica: ora viagens, ora visões, ora futuros desvendados. Mas se soubermos que o seu autor é Leão Tolstoi então teremos de preparar-nos para sermos completamente ultrapassados pela sua criatividade literária genial, simultaneamente realista e emocionante, moralista e doutrinária, amorosa e religiosa. 

A obra no original intitulava-se Meu Sonho, e fora escrita por Tolstoi (1828-1910) já no fim da sua peregrinação terrena, a 13 de Novembro de 1906, em Isnaia Poliana, e a tradução por Jaime de Macedo, certamente do francês onde recebeu este título, nos anos 20, está antecedida por uma biografia inicial sóbria, e foi impressa num in-12º de 30 págs., no olisiponense e alfarrabista Largo do Calhariz, para as Edições Delta. O sonho ou história é esta: um nobre queixa-se a um seu irmão, governador no centro da Rússia, da desgraça da sua filha ter partido de casa há um ano e saber agora que teve um filho de um estrangeiro e estar a viver numa cidade distante, o que o humilha e o dilacera. Será Alexandra, a mulher do irmão, bondosa e despretensiosa, que de noite virá falar com ele, e pedir-lhe: "Tende dó dela". Mas Miguel Ivanovich não quer saber mais da filha Lisa, apenas que tenha o dinheiro suficiente, o que de novo leva Alexandra a contra-atacar tentanto converter, humanizar, dulcificar o frustrado e irado pai: «Ide lá vós próprio. Apenas para ver como ela vive. Se não a quereis encontrar, seguramente não a encontrareis. Ela não estará lá. Não haverá lá ninguém.»

Tolstoi manobra bem a emoção que mais faz vibrar e chorar, a compaixão, e acrescenta-lhe mesmo os poderes extra-sensoriais que potencialmente temos e que se merecermos realizaremos, no caso sugerindo que só acontecerá o que ele verdadeiramente quiser. É invocado algo da fé e da entrega à providência Divina,  tão típica dos povos da Rússia.

Deixando Miguel Ivanovich na roda livre das associações neuronais nocturnas, que em certas pessoas se tornam obsessivas, e sobre elas latejando  condenações morais, tal como as mulheres não serem puras ao comprazerem-se em serem desejadas, como observara na sua filha e em bailes, ou como fora frívola no tratamento dum jovem e se divertia superficialmente em Petersburgo, esta relação com um estudante sueco na Finlândia era o fim: já não se considerava pai, embora à repulsão que sentia se juntasse o enternecimento das memórias que  afloravam de quando ela era uma jovenzinha muito carinhosa...

O segundo capítulo ou quadro vai servir a Tolstoi para, depois de descrever o valor e poder do Amor, apresentar a evolução de Lisa e o seu sofrimento, pois já em Petersburgo constatara «o vácuo da sua vida (...) como se divertia apenas com a vida animal, exterior, com exclusão de toda a vida interior», e como, para fugir disso, partira para a Finlândia, para a casa de uma tia, onde encontra um jovem escritor sueco e, na bela e vivenciada descrição de Tolstoi, «começa esse perigoso contágio dos olhares, dos sorrisos, cujo sentido se não pode exprimir por palavras, porque as ultrapassa todas. Esses olhares e esses sorrisos desvendavam a um e ao outro as suas almas e não somente as suas almas mas os mistérios graves, importantes, comuns a toda a humanidade. Por causa desses sorrisos cada uma das suas palavras recebia uma significação mais profunda»... Depois vem porém a desilusão, pois o jovem já fora casado e não a queria, o que a leva a sentir-se cair num abismo para o qual o suicídio poderia ser a solução. Mas subitamente sente que engravidou e logo ressuscita, para ao menos ser mãe, ainda que infeliz, sobretudo por ferir o pai que tanto amava.

Será no terceiro e último capítulo que Tolstoi, com a sua mestria de causar nos leitores empatias intensas, vai aproximar os dois seres, descrevendo os sofrimentos interiores em que se encontram, o amor que os move e as conversões que terão de efectuar.

 Vemos então Miguel Ivanovich resolver-se a ir visitar a filha e, quando ela regressa de umas compras, e depois de já ter ouvido chorar no quarto ao lado a criança, dá-se o choque catártico, ela escanzelada e ele sentindo que o seu orgulho e amor-próprio feridos nada são perante o amor e o dó de pai. É certamente a cena mais emotiva do livrinho: a filha a suplicar perdão e o pai a realizar que é ele próprio quem tem de o pedir, e vê derreter-se todo o seu orgulho nos beijos que dá a filha. É uma cena quase épica, talvez porque Tolstoi tenha conseguido tornar história que terá tantas vezes acontecido ao longo dos séculos, um arquétipo, uma obra imortal, que vive no mundo imaginal, e quem quer que a leia vai sentir as forças divinas do perdão, da compaixão e do amor, tão importantes são na vida humana. E como recomeçar a vida mais harmoniosamente...

São todavia interrompidos pela criança a chorar, pedindo de mamar, e ele, constrangido, despede-se, dizendo-lhe: «-Vai, vai, que Deus seja louvado. Amanhã voltarei e decidiremos. Até à vista, minha querida, até à vista. - E de novo ele sustinha com esforço os soluços que lhe subiam na garganta.»

O fim vem rápido e nem sequer cor de rosa, pois Tolstoi escreve tanto para a Rússia do começo do séc. XX como para o futuro, pois os efeitos de certos preconceitos e forças de pressão  persistirão até aos nossos dias:  «Miguel Ivanovich perdoou completamente e venceu todo o seu receio da opinião pública.   Instalou a filha em casa da irmã de Alexandra Dimitriévna, que morava no campo, e vi-a como antigamente, e passava épocas em casa dela. Mas evitava ver a criança e não podia vencer o sentimento de repugnância que ressentia por ela, o que era para a filha uma causa de sofrimentos».

Reflectiria ainda Leão Tolstoi neste desfecho alguma da sua sensibilidade patriarcal, ou pelo contrário criticava-a, não sabemos, mas cremos que nesta 3ª década do século XXI já não veria necessidade de apontar um pai que não queria tornar-se avô... 

Possamos nós nas nossas vidas não recusarmos reconciliações e vivermos bem auto-conscientes no amor justo e recíproco...

No 193º aniversário do nascimento de Tolstoi...

Segue-se um vídeo gravado já há uns anos e que nem sei bem já o seu conteúdo, e portanto a sua boa interacção ou não com o resumo do conto agora escrito.

Muita Luz e amor nas nossas almas e vidas para melhor abertura ao Divino e ao Bem... 

               

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