quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Tolstoi e a sua obra vistos com mestria crítica por Agostinho da Silva, em 1942. Comemorações dos 193 anos do nascimento de Tolstoi.

A apreciação crítica de Tolstoi e da Literatura Russa por Agostinho da Silva manifestou-se exteriormente em 1941 e 1942, pois  na sua meritória tarefa de pedagogo  deu à luz na sua vasta colecção Antologia, Introdução aos Grandes Autores, um número (como habitualmente de 24 páginas) dedicado a Tolstoi, com uma pequena biografia e um belo conto, traduzido do francês, A Terra de que precisa um Homem, que já mereceu um artigo neste blogue.

Na curta biografia que antecede o conto, e que  digitalizámos no artigo anterior, Agostinho realça em Tolstoi certos valores que atribui aos seus pais, tais como "vida pura, amor ao próximo e actividade social justa ou frutuosa", tão característicos da alma russa, bem como a forte aspiração ao "Amor universal",  e destaca como em si mesmo se debatera com os seus aspectos instintivos, egoístas e violentos e  soubera com arte na sua obra literária e religiosa genial mostrar que apesar dos piores defeitos os seres têm sempre um potencial de transformação e amor, gerador de beleza, justiça e harmonia... 
No ano seguinte em 1942, quando morava na Rua Dr. António Martins, 24-2º, nos Cadernos de Informação Cultural, Iniciação, dava à luz no seu habitual in-4º grande de 24 páginas, Literatura Russa, onde de novo se aproxima da vida e obra de Tolstoi com grande conhecimento e mestria crítica, por vezes até irónica.
                                          
 Transcrevamos então, neste começo de tarde de nuvens pardas do dia de aniversário de Tolstoi, 9 de Setembro de 2021,  as três páginas de texto corrido (para ganhar linhas) que Agostinho da Silva, com quem dialoguei tantas vezes, lhe dedica, após se ter debruçado sobre Pushkin, Gogol, Lermontov, Turgénev e Dostoievsky (1821-1881):  «Costuma citar-se Tolstoi, seu contemporâneo (1828-1910) como o autor mais oposto a Dostoievski e de certo o é, se atendermos à habilidade de compor, que falha, porém, algumas vezes, à precisão de linguagem, ao justo sentido realista de que Dostoievski dá provas tão reduzidas; Tolstoi vê, ouve, percebe o mundo exterior com sentidos maravilhosos que de tudo dão conta, registam o mais insignificante pormenor, sabem reconstituir com precisão uma paisagem de estio ou um nevão na estepe, um baile aristocrático ou o serviço de uma bateria em pleno combate; a sua prosa ajusta-se a tudo quanto o artista dela exige, sempre límpida, atingindo os mais altos efeitos com o mínimo de recursos, numa elegância natural que despreza toda a retórica e que nunca dá a impressão de desarranjo e de imperfeito que vem da prosa de Dostoievski. Mas fundamentalmente, o drama de Tolstoi, que é afinal o que ele exprime em todos os seus livros, desde Sebastopol a Ressurreição e às últimas novelas, sem exclusão de A Guerra e a Paz, aparenta-o às personagens de Dostoievski; para ele também o mundo é uma ocasião de santidade, mas santidade de que afasta o próprio esplendor do mundo; o artista e o homem moral batalham duramente entre si e não deixam a Tolstoi um momento de repouso, mesmo dando o desconto necessário a um certo gosto de representação e proselitismo [descortinamos uma crítica a certos exageros tolstoianos da sua luta anti-sensual]; também ele, nas horas em que as tentações menos o vencem, em que a violência e a sensualidade naturais parecem mais adormecidas, crê na smirenie [em russo, humildade, algo submissiva e logo criticado pelos mais revolucionários] como numa força de salvação do mundo, também ele prega a resignação, a não-resistência perante o mal [muito assumida plenamente por ele, e que na Índia é denominada ahimsa, que Tolstoi valorizou e intensificou em Gandhi], também ele admira a civilização dos países ocidentais: o ser bom na sua aldeia, entre os seus camponeses, consistia para Tolstoi em vestir uma blusa de mujique, consertar ele próprio as suas botas e dormir numa das salas do palácio [aqui há algum exagero crítico por Agostinho], não em, como lhe propunha Masaryk, acabar com a repugnante miséria dos servos, combater a tuberculose e a sífilis, abrir escolas técnicas [novo leve exagero, algo "comunizante" do "jovem" Agostinho, menosprezando as acções de Tolstoi em favor da emancipação do proletariado, embora não-violenta e de facto pouco realizável, ou ainda contra as epidemias que grassavam, bem como as escolas, embora de facto não técnicas, que fundou]; nada disto, segundo pensava, serviria para o bem da alma e o que sofre resignado vale mais que o homem sôfrego de acção, enamorado dos maquinismos, mais atento à realidade exterior do que ao mundo da alma e que podia afinal ser batido, mesmo no seu próprio terreno, pelo conjunto russo, pela terra, pelo clima, pelos generais indolentes e ignorantes, pelo soldado que marchava como animal em rebanho; o que vale é a purificação interior; o que vale é a aproximar-se o mais possível de Cristo: para a Rússia o ideal seria tornar-se um Cristo colectivo que ensinasse ao mundo a verdadeira vida, vida de paz e de amor pelos homens e mulheres, de cooperação em todas as tarefas necessárias; se alguma vez combate a miséria, parece não ser o pobre que o aflige [...], mas o rico, que está perdendo a sua alma, cavando um fosso intransponível entre ele e o seu irmão, que devia amparar e socorrer; do mesmo modo se levanta contra a arte que sendo actualmente um domínio de poucos dá a esses uma ideia de superioridade que destrói a da igualdade que devia existir; não parece ter-lhe acudido uma só vez [... terá sido?] a ideia de que o ocidental, ocupando-se da ciência e da técnica, estava também vendo o problema económico como problema moral, mas importando-se menos com o sofrimento do rico do que com as torturas do pobre e pondo como ideia essencial a de que só pode aspirar à perfeição moral, salvo a excepção dos maiores, quem tiver resolvido o seu problema material; cristão e eslavófilo como Dostoievski, Tolstoi vê, no entanto, melhor do que ele, muitos dos problemas e dos defeitos da Rússia, e a luta contra a guerra, a tentativa da reforma das escolas, o abalar da autoridade da Igreja oficial, põe-no mais do que a Dostoievski na linha dos revolucionários, que de resto combateu em nome dos seus princípios pacifistas.
Como artista, Tolstoi transcende todos os limites da Rússia do seu tempo: o extraordinário poder de observação, os recursos de análise psicológica, o sentido dramático,a simpatia humana, colocam-no entre os artistas de carácter mais universal; só o Quixote de Cervantes poderá comparar-se, noutro plano, com uma novela como  a Guerra e Paz e, mesmo nos trabalhos e menor fôlego, como Hadji Murad, Servo e Senhor, A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi facilmente se eleva a um amplo significado humano; são menos sólidos todos os trabalhos que exigiam maiores qualidades de pensador, quer as dissertações humanitárias sobre a miséria, o cristianismo, a guerra, a pedagogia, quer as obras de ficção em que a tese era mais importante; no entanto, mesmo numa Sonata a Kreutzer, de tão fraca estrutura ideológica [e estamos de acordo...], se revela a capacidade do artista, o seu ímpeto poderoso, o seu poder de construção estética.»
Concluamos esta breve homenagem a Tolstoi, e certamente a Agostinho da Silva, permitindo-nos valorizar todavia as  capacidades de Tolstoi como pensador e autor de dissertações sobre o pacifismo e cristianismo, considerando algumas das suas páginas muito profundas, catárticas, revolucionárias e perenes, discordando nestes dois aspectos ou temas do então bastante exigente Agostinho da Silva. E nessa linha mais juvenil, ou mesmo na final tão abrangente e universalista, o que diria Agostinho da Silva do actual conflito da NATO, USA, Ursula e Zelensky com a Rússia? Daria razão a uma das partes? 
Creio que sim. A sua bússola interior de experimentado marinheiro, apesar de todas as propagandas e manipulações, saberia discernir a verdade e logo defendê-la, afirmá-la... Mas só quem conseguir meditar e intuir é que saberá mesmo... 
Que a Luz dele ou nele nos inspire!
Agostinho da Silva, russo...
Se digitar "Tolstoi" nas mensagens deste blogue encontrará algumas valiosas, tal como a:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/04/tolstoi-ao-clero-1902-resumo-deste.html. 
Da apreciação universal de Tolstoi não haverá muito a provar. Por parte dos portugueses ela foi bastante mais forte no fim da Monarquia e começo da República, destacando-se um tolstoiano de grande qualidade e amigo muito próximo de Antero de Quental, Jaime de Magalhães Lima, tal como poderá ler em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/09/jaime-magalhaes-lima-e-antero-tolstoi-e.html. Ou ainda em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2015/01/jaime-de-magalhaes-lima-as-doutrinas-do.html     Lux Amor!
Jaime de Magalhães Lima e Antero de Quental. Lux, Amor!

                           

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