segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Frei Manuel de Deus, um espiritual do séc. XVIII. A oração mental em grupo, beatos e "onde dois ou três se reunirem em meu nome"

Em 1728 saía à luz simultaneamente em Lisboa e Coimbra uma obrinha devocional intitulada Pecador Convertido ao caminho da verdade, instruido com documentos importantes para a observancia da Ley de Deos, dedicados ao Rey da Glória & Redemptor do Mundo, Jesus Christo nosso Senhor. Em Lisboa imprimi-a Miguel Rodrigues e em  Coimbra era o Real Colégio das Artes, da Companhia de Jesus.
 O livro levava no frontispício três garantias ou chancelas protectoras: o reputado convento do Varatojo dos missionários franciscanos, fundado por Frei António das Chagas, o Real Colégio das Artes, antigo bastião do Humanismo mas  entregue depois por D. João III à Companhia de Jesus, vulgo Jesuítas e, por fim, a invocação angélica, numa bela vinheta que, com outras do livro, ilustram esta pequena revisitação bloguiana, na unidade da Tradição Espiritual Portuguesa....
Do seu autor, Fr. Manuel de Deus, diz-nos o notável bibliógrafo Barbosa de Machado na sua incontornável Biblioteca Lusitana: «nasceu na Vila da Amieira do Priorado do Crato no Arcebispado de Évora a 25 de Fevereiro de 1696, onde teve por pais a António Pires Ribeiro, e Maria de Moura. Estudou as letras humanas, e divinas na Universidade desta Cidade com tanta viveza de engenho e felicidade de memória que foi Colegial do Colégio da Purificação. Movido de superior impulso deixou o século em idade varonil abraçando o Seráfico instituto no reformado Seminário de Santo António do Varatojo, no ano de 1715. Onde exercitou o ministério de Missionário Apostólico por várias terras do Reino devendo-se à veemente energia dos seus discursos, e suave atracção das suas vozes, a conversão de muitas almas para o caminho da eternidade. Ao tempo que estava fazendo Missão no Campo Grande, arrabalde de Lisboa, faleceu piamente a 6 de Outubro de 1730, quando contava 35 anos de idade. Faz dele honorífica memória Fr. Joan. a D. Ant. Biblioteca Franciscana. Tom. 1. p. 329. col. 1. », dando em seguinte a lista das suas cinco obras, onde se destaca a Luz, e methodo facil para todos os que quizerem ter o importante exercicio da Oração Mental acrescentado com a Via-sacra, e Ladainha de Nossa Senhora.
Vemos assim que o autor praticava, pregava e ensinava a polémica oração mental, que desde o séc. XVI, por causa de alguns místicos, alumbrados e quietistas tinha despertado a repressão  da Inquisição, à qual consagrou tanto o livro referido como muitas referências e apologias neste Pecador Convertido, no exemplar que estudamos encadernado em pergaminho, sobrevivendo dois atilhos dos quatro que o encerravam e protegiam, qual escrínio secreto. A lombada deixa ainda ler a um olhar treinado no discernimento Pecador convertido numa tinta muito sumida, escrito pelo encadernador ou pelo seu primeiro possuidor, mas quem os discernirá no Oceano da manifestação em material perecível?
O plano da obra é simples:  necessidade de conversão, a importância da oração mental e do amor de Deus, resistência às tentações, meditações breves sobre temas como morte, glória, conhecimento de Deus e, finalmente, a defesa da oração mental pública, ou seja, de meditações colectivas. Transcrevamos algumas partes significativas:
Na pág. 349, no capítulo onde demonstra e conclui que "mais agrada a cada um a Deus, orando publicamente com muitos, que orando ocultamente só", e no qual dá grande cópia de passos dos Evangelhos e comentários dos padres da Igreja para explicar que o orar a sós recomendado e vivenciado por Jesus em geral era com o consórcio dos discípulos e,  portanto, o estar só refere-se mais a estar livre das multidões e suas turbulências; e depois de apontar que a noite é bem propícia para a oração mental e por isso é que nas comunidades religiosas se levantavam três vezes para rezar, finaliza o capítulo de um modo bem instrutivo quanto a certos ambientes e mentalidades da época, e com uma consciência bem perenizante: «Porque este livro pode passar por mãos de algumas pessoas ignorantes, me é necessário declarar-lhes bem, que ainda que me empenho tanto a favor da oração pública de muitos juntamente, não quero dizer que a oração oculta não é boa: digo que é muito boa, mas a outra melhor. Não se escuse alguém de ter oração por nenhum pretexto: se não se atrever a ir à oração pública, por não lhe chamarem beato, tenha oração oculta; e se continuar, não lhe durarão os temores muito tempo».
Realçamos esta advertência destinada a encorajar a participação na oração mental pública, em igrejas, capelas ou sacristias sem recearem ser chamadas de beatos, expressão popular que adquiriu sentidos irónicos, visíveis por exemplo já no séc. XVI, na peça Olissipo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, em que personagem "Beata",  da 1ª edição (hoje desaparecida...) foi substituída na 2ª edição pela "Viúva", por ordem dos censores da Inquisição, como diz o genro de Jorge Ferreira de Vasconcelos na apresentação dessa 2ª edição, de 1618.
Vejamos outras indicações de interesse para a História do Livro e da Espiritualidade Portuguesa: 
«Se tens comodidade, recomendo-te, que busques mais alguns livros, que te dêem documentos e luzes, se não és pobre, procura os Exercícios do Padre Alonso Rodrigues, a Diferença entre o temporal e eterno [do P. Juan Nieremberg]. Se és pobre, procura o livrinho Combate Espiritual [do P. Lorenzo Scupoli] e a Escada Mística de Jacob [do P. Manuel Guilherme]. Se nenhum poderes procurar, e te chegar este às mãos, faz propósitos firmes de obedecer a Deus, observando, o que aqui te disser; e quando sentires as utilidades da observância destas doutrinas, e lembra-te sempre de rogar por mim a nosso Senhor, em cujo nome começo a dirigir-te.» p.33. 
Vemos nesta passagem alguns livros recomendados, vulgares na época, os primeiros volumes grandes e logo mais caros, e os outros pequeninos, tal como também o era o famoso Enchiridion Milites Christiani, Manual do soldado cristão, de Erasmo, protótipo da devotio moderna, e que se pode traduzir tanto por Manual como por Punhal, como bem mostrei no meus comentários ao Modo de Orar a Deus, de Erasmo, que publiqueiComo  homem sensível e pragmático, Frei Manuel de Deus recomenda o seu livrinho, certamente barato, e escrito, diz-nos, em nome do mestre. 
Registe-se, todavia, que no paratexto inicial, na aprovação pela Mesa do Paço, o mais que sábio D. Manuel Caetano de Sousa (1658-1738), que privou com o autor, valoriza, parecendo ecoar Erasmo, a oração mental vivida e ensinada por Frei Manuel: «tão sublime exercício, para o qual dá breves mas certísimas regras, e arma aos soldados da milícia cristã contra todos os vícios», acrescentando a  conformidade da doutrina do livro com a dos mestres da vida espiritual.  Registe-se ainda, segundo a aprovação do mosteiro da Graça (um alfobre de místicos, para outros um conventículo de semi-heréticos) por Frei Manuel de Cerqueira  e Frei Manuel de Boaventura,  que  o autor queria publicar a obra anonimamente, sinal da sua modéstia e domínio do ego (ou "argumento eficaz o fervor do seu espírito", mas não foi autorizado porque: «será o estampar-se o nome do Rev. P. Frei Manuel de Deus no frontispício do seu livro uma singular carta de recomendação, para que se aproveitem deles os fiéis, e pela grande fé que nele têm, frutifique muito mais a sua doutrina».
Iniciando a sua instrução da oração mental, fala de um modo bastante visual, real e directo:«Criou-te Deus para te fazer bem-aventurado... Mas não te pôs teu amoríssimo Pai, para conseguir a suma felicidade, mais que uma lei suavíssima, que te servisse de asas, com que voasses... Abre os olhos, caríssimo irmão meu, prepara-te para receber um raiozinho de luz, que te desperte ao amor do sumo bem, que menosprezaste. Oração mental é o remédio que o Senhor te aplica, e com tanto empenho que não se contenta com persuadi-lo uma vez só, mas muitas vezes o repete nas Escrituras; repara bem, conversar com Deus é o remédio...» Quanto tempo de escuta silenciosa recomendaria para depois de tal diálogo ou solilóquio, que no fundo é mais uma útil confissão e por vezes um auto-sugestionamento, não sabemos...
Ainda assim, interroga-se como é possível tal: «Oh eterno amor da minha alma! Que gosto tendes de ouvir um bichinho vil por natureza, e mais vil pela culpa? Que consonância faz a vossos ouvidos o canto de uma cigarra entre as suaves músicas dos Anjos?» Estaria Frei Manuel de Deus conhecedor ou atento à audição subtil interna, usada por místicos gregos e indianos, e na qual o canto das cigarras nos campos e de noite parece uma sinfonia planetária?
Recomenda depois a consideração do famoso e eficaz "mantra" (quando se pessoaliza..) Amarás a teu Deus, e Senhor, de todo o teu coração, com toda a alma, com todo o entendimento, e com todo o esforço. Este é o máximo, e primeiro preceito.»
Já na parte final, na Demonstração da excelência da oração mental pública de muitos juntamente, introduz uma obra de outro dos mais ardorosos defensores da oração mental ou de quietude, tão atacada por alguns e no caso, uma décadas depois, proibida mesma pelo Marquês de Pombal: «Há pouco tempo saiu à luz um livro, cujo título é, Vindícias da virtude, obra do grande Padre, e ilustrado Mestre, o Doutor Frei Francisco da Anunciação, que desfaz com tanta eficácia, sagrada erudição, e evidência todos os argumentos, de que se vale a impiedade para fazer guerra à virtude, que lendo-o, não poderão deixar de emudecer os malévolos e confirmar-se os pi[edos]os». E valorizando de novo a oração mental em grupo, explicita com experiência e originalidade o paradigmático passo do cap. XVIII de S. Mateus:«De dois modos se costumam ajuntar os fiéis para a oração, ou para pedirem todos a mesma coisa, ou para orar cada um particularmente segundo a sua devoção, e necessidade. Mostra nosso Senhor nestas palavras a grande eficácia da oração de muitos, como dizem todos os Santos Padres, e faz especialíssima promessa de serem ouvidos. E sendo tão admirável o motivo: "Onde estiverem dois ou três congregados em meu nome, eu estou aí no meio deles". Diz Cristo Senhor nosso, que está no meio dos que estão juntos por seu amor, e sua glória na oração, e que esta é a causa de ser a oração  de muitos congregados eficacíssima; porque está no meio deles, como penhor dos que hão-de ser ouvidos, como mestre ensinando, como Pai defendendo, como medianeiro rogando, como alma daquele corpo místico animando-o».
E fiquemo-nos por aqui, dando graças a Frei Manuel de Deus, e rogando à Divindade que nos fortifique a todos nesta peregrinação rumo à Verdade e à Fonte, no amor, na sabedoria e no bem, ou ainda no corpo místico da Humanidade por onde correm os veios e as graças da verdadeira oração...

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