terça-feira, 4 de maio de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. Cap. I. O Mistério da Oração. Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                            A ORAÇÃO

                                           por Bô Yin Râ.

Tradução de Pedro Teixeira da Mota, de esta obra muito valiosa, a partir da versão alemã e das traduções inglesas e francesas. Agradeço à Cláudia Lopes ter-me transcrito uma versão manuscrita redigida há uns anos a partir do francês e que serviu de base. Esperemos que a prossiga com certa regularidade.

A 1ª edição foi dada à luz em 1926 em Leipzig pela editora Richard Humel Verlag. Hoje as obras de Bô Yin Râ estão editadas pela Kober Verlag Ag Bern.

                                                                              *******

A VÓS,

QUE QUEREIS APRENDER A ORAR

                                                            

                                                           **********

          Cap. I                                 

                                            O MISTÉRIO DA ORAÇÃO

Segundo o antigo relato sagrado, os discípulos do carpinteiro sábio, do grande “Rabbi” da Nazaré, teriam vindo procurá-lo uma vez com a pergunta:

                           “Senhor, ensina-nos a orar!.”

 À qual - diz-nos a antiga narrativa – o   mestre da Vida a Deus unido os teria advertido, a não mais recitarem as longas litânias tradicionais, à maneira dos que não sabem, mas antes usarem somente as palavras simples e maravilhosamente belas que pronunciam ainda hoje os lábios de todos aqueles que, sob uma forma religiosa ou outra, professam ou crêem professar o ensinamento cheio de amor do grande homem de Deus.

No entanto até aos nossos dias são ainda muito poucas as pessoas que sabem realmente orar, e mais raro ainda é encontrar-se uma pessoa que sabe o que significa "orar" da alta e sagrada maneira que o grande Ser amante queria ver adoptada. - -

Conhecem-se em verdade ainda as palavras que ele, segundo a antiga narrativa, recomendou aos seus discípulos usarem -  só que agora “palreiam-se” também estas palavras, tal como anteriormente outras orações, as quais ele não valorizava especialmente. –

A profanação não é atenuada, pelo facto de a pessoa falar num tom de grande unção, - e mesmo uma sensibilidade reverente ao sentido que o pensamento pode retirar das magníficas palavras não é de modo algum suficiente para, ao repeti-las, se convertam numa verdadeira “Oração”.

Parece portanto que se tornou de novo necessário ensinar o que realmente é “Orar” em verdade, - de ensinar como é que das palavras da língua humana uma “Oração” pode emergir, e que segredo profundo a oração oculta!-

A arte sacerdotal sagrada de criar “Orações” e de verdadeiramente "orar", está hoje quase perdida e assim onde ainda hoje está em uso é todavia praticada muito mecanicamente, despida de vida, ou mesmo supersticiosamente

Porém, mesmo aqueles que crêem ainda orar, só vêm na oração imploração da Divindade, acção de graças ou louvores e não sabem que estes elementos podem-se encontrar numa oração, mas não constituem de modo algum a essência da Oração.

As pessoas não duvidam sequer que mesmo uma associação sublime de palavras de louvores, gratidão ou um pedido, tem de ser realmente “orada” antes de se poder tornar “Oração”.

Que Deus apenas em nós mesmos é alcançável por nós: - que apenas nas profundezas de nós próprios o coração do Ser Eterno e puro pode de si mesmo “nascer de novo”, numa "auto-geração individual”, repetindo-se infinitamente: - tal é a primeira e indispensável consciencialização que todo o ser, que realmente quer aprender a "orar", tem de lutar por realizar em si antes de mais.

 De igual modo tem de saber que o “Pai” eterno,- qualquer que seja o sentido dado pelo crente a esta palavra - não deseja nem acção de graças, nem louvores à maneira humana, e que será blasfematório crer-se verdadeiramente que o coração do Ser espere ser implorado pelo ser humano para se deixar flectir finalmente por tais orações”,- pois “pedir”, no sentido da verdadeira oração, é verdadeiramente algo essencialmente outro que o querer mendigante com o qual tantos se dirigem ao "Deus” de sua imaginação.

Eu realço aqui a expressão “Deus” da sua imaginação, pois a maior parte dos seres humanos, infelizmente, não passa para além duma tal concepção do seu poder imaginativo porque pensam, devido a insuficientes ou errados ensinamentos, que o caminho para Deus tem de levar sempre para cima, mas sempre para o exterior.

Assim nunca conseguirão certamente sentir a Divindade viva, pois não procuram no único lugar onde o vivo e eterno Deus lhes é alcançável.

Contudo, segundo o antigo relato, foi também dito:

“Procurai, de modo a que encontrareis!”

“Pedi, de modo a receberdes!”

“Batei, de modo a que se vos abrirá!”

                                                             *********

´Queremos demorar-nos aqui e aguardar em grande calma até o enigma contido nestas palavras se quiser desvendar ao nosso olho interior…

Entretanto, vou tentar explicar em palavras o que se deixa mostrar!

                                                                  *****

"Procurar" só pode certamente levar a encontrar quando a procura é onde o que é procurado se encontra realmente escondido.

“Pedir", tomado aqui no sentido que exclui toda a "pedinchice", só poderá obter destinatário se quem pede está com direito de receber.

"Bater", contudo, para conseguir entrada na casa, só tem sucesso de avançar se quem bate está plenaamente seguro da porta em que deve bater e sabe de que modo deve bater para ser admitido na casa e ser reconhecido imediatamente como alguém que tem a esperança de admissão.

Aqui porém "Procurar", “Pedir” e “Bater” de modo algum são separáveis, pois só na sua unidade constituem a - “Oração”!

Feliz de quem  deste modo sabe "orar"!

Será ouvido, quanto ainda“bate”!

Receberá logo, quando ainda “pede”!

“Encontrará” com toda a certeza o que ele desse modo "procura", de modo a que  é encontrado.

Nas suas íntimas profundezas tal orante vivenciará o que quis dizer o grande portador da Palavras viva, que uma vez disse aos que cria estarem suficientemente avançados:

“Tudo o que for pedido ao “Pai” no meu “Nome”, ele dar-vos-á!”

Luminosamente  manifestar-se-á  a quem ora o sentido contido nas palavras de louvor:

«Santificado” seja o Teu “Nome”!» - e finalmente reconhecerá, porque é que  o Mestre ensinou então a pedir em seu “Nome" pois:

«Tudo, o que o "Pai" tem, é meu!»

                                                     *******

Assim quem ora reconhecerá também na mais clara luz do do Espírito, que tudo o que se pode pedir ao “Pai” em "Nome" da sua própria representação manifestada, está já de toda a eternidade “oferecido” e dado, se bem que o “Pedido” seja necessário, para levar à manifestação - para causar efeitos perceptíveis temporais…

Só aprendem todavia a “orar” deste  modo, os que sabem unir a sua própria vontade completamente com a vontade do “Pai”! –

Mas para quem sabe “orar” unido à vontade do “Pai” eterno, então toda a sua Oração – o que quer que seja pedido - será um pedir de “asas”: - dessas asas que em verdade “levam mais alto que as asas da águia. “

sábado, 1 de maio de 2021

Amaterasu ô-mi-kami, a face Feminina Divina, do Sol, do Japão, do Shinto. Vídeo de culto. Mantras-noritos

A mais conhecida ou a principal face Divina no Japão é Amaterasu-ô-mi-kami, um Kami primordial, o do Sol, feminina.
A palavra kami  terá múltiplas origens etimológicas e pode ter brotado do reconhecimento de entidades invisíveis, subtis ou espirituais ou então apenas de qualidades de lugares da natureza, locais de poder, ou seja que tinham algo de especial, de extraordinário. 
Isso era Kami, e tanto poderiam ser assim tais objectos ou locais habitados por Kamis, deidades ou espíritos celestiais, ou ser eles mesmo Kamis, tais como montanhas, quedas de água, árvores ou pedras mais impressionantes.
 Com o tempo, frequentemente tais árvores, pedras ou águas vieram depois a ser mantidas em santuários já construídos por mão humana, em madeira, tradição que se conservará muito até hoje, com aspectos ecológicos valiosos de preservação de bosques e florestas sagradas e a reutilização das madeiras posteriormente em outros santuários ou em talismãs. Para além da beleza e poder que essas árvores centenárias tão cultuadas, e protegidas e sinalizadas pelas shide, tiras de algodão ou papel branco, nos transmitem, em geral presentes em quase todos os santuários...
 
  Esta palavra Kami tem muito esoterismo e para uns Kami viria de kuma, canto, nó e kumu, esconder, ligados aos sítios mais secretos da natureza e fontes de água, este reconhecimento sendo acompanhado de uma apreciação da natureza como lugar de culto. Para outros Ka seria o interior e secreto, e mi, o visível e tangível. Ou  o som Ka seria o misterioso e escondido, e o mi, o da maturação, da plenitude. Ou ainda o Ka, o fogo vertical e o mi, a água, horizontal. 
E, portanto, a sua pronúncia concentrada e sentida, de dentro para fora, e de fora para dentro, ou unindo os opostos, ajudaria o espírito, o shin (e Shinto: shin do, espírito caminho), a manifestar-se mais na nossa sensibilidade e consciência e, logo, a tornar-nos mais conscientes do mundo espiritual, dos kami. Ora os noritos, ou orações, baseiam-se no poder da palavra ou som, o kotodama, que tem efeitos em nós e no mundo dos kami ou espíritos-deidades, saudados ou evocados também pelo curvar-nos e depois com as mãos unificadas bater de palmas (hakushu) duas ou três vezes.
Com o tempo os Kami deixaram de ser só cultuados na natureza e em locais de poder e passaram a habitar certos santuários, os jinjas, seja ainda na natureza, seja já nas vilas e cidades. E também em pequenos santuários em casa, os chamados kamidanas, tal como será o pano de fundo de todo o vídeo de orações que gravamos na madrugada do dia 1 de Maio e que me obrigou depois a escrever esta apresentação.   
Já os famosos matsuri, as festividades, tão garridos e animados, também traduzidos como sacrifícios, obediências, e que têm muito das nossas procissões, poderiam estar ligadas a matsu,  esperar, o aparecimento, miare, de uma manifestação divina, ou kami, um espírito celestial, estando estes matsuris em geral consagrados a um ou outro kami, e sendo ele mesmo levados em santuários portáteis, os mikoshi, levados aos ombro por devotos, tal o que vemos na imagem dum matsuri em Osaka, em 2011.
Ora a divindade solar Amaterasu-ô-mi-kami surge nas cosmogonias transcritas no início do séc. VIII como gerada do olho direito de Izanagi-no-mikoto, o qual com
Izanami-no-mikoto constitui o casal cósmico primordial, e já depois de  outros Kamis ou espíritos celestiais terem sido gerados. Nesses livros primordiais Kojiki e o Nihon gi, ou Nihon-Soki, terminados em 712 e 720, portanto bem antigos, quando Portugal estava sob o domínio árabe e a começar a formar-se, Amaterasu é irmã de Suzano, o deus da Lua e do Vento. No Kojiki, Susano-wo é um dos deuses superiores ou celestiais (em contraposição aos terrestres) que mata uma deusa Oge tsu hime e dela nascem os vários tipos de espécies ou produções agrícolas...
Do irreverente comportamento dele para com a irmã resultou a decisão de Amaterasu-ô-mi-kami refugiar-se num caverna e não mais dar a luz ao mundo, provocando grande inquietação nos kamis e seres, que através de uma artimanha conseguiram fazê-la sair da gruta e voltar de novo a aquecer e a iluminar os mundos e seres. Este episódio do Kojiki adquiriu ao longo dos anos grande fortuna da arte e foi a principal fonte da iconografia mais antiga dela.
Mas como é que havendo tantos kami anteriores e superiores ela se vai tornar de certo modo a principal deidade ou Kami do Japão não é fácil discernir-se rapidamente, embora por ser o Sol, elemento primacial do mundo, e depois por os imperadores do Japão terem sido considerados como descendentes dela, seja natural tal primazia. Mas, claro, houve também aspectos humanos e políticos, de clans e de zonas que a tomaram como a sua protectora.
O santuário de Ise (na imagem, tão simples quão sagrado, em 2011) que lhe está consagrado é o ponto fulcral dessa adoração e sacralização, e as peregrinações a Ise são desde há muito dever quase obrigatório do japonês que conserva o culto pelas suas antigas tradições espirituais. Na segunda metade do séc.XIII foram compilados os cinco livros do Shinto-go-busho, que são ainda hoje fonte de orações e ensinamentos.
A ligação da família imperial a Ise e a Amaterasu o-mi-kami vem desde os primórdios, tem mesmo a entrega por ela de três tesouros imperiais, o que nunca foi posto em causa pelos grandes teólogos e estudiosos do Shinto e, embora em Ise a deusa Amaterasu-o-mi-kami tenha o seu santuário principal e tenha sido ao longo dos séculos uma mulher da família imperial a mestra das sacerdotisas ou mikos,  há outros jinjas ou santuários consagrados a ela só, ou a ela e mais algum kami. Para além disso, há muitos japoneses que particularmente, pessoalmente, sentiram em Amaterasu, seja a Divindade, caso de alguns filósofos e teólogos shintoístas, seja por ela mais fácil o acesso a ligação pessoal ao mundo espiritual  ou divino (ao modo da ishta devata indiana), e portanto lhe recitam as suas orações ou noritos, ou  meditações, poemas e orações gerados por eles...

Está neste caso o autor deste artigo, que tendo estado no Japão 40 dias, peregrinando a Ise, a Tokushima, ao Fuji, Omiwa, etc.,  e tendo-se prepara-se com boas leituras para isso, sentiu bastante os Kami e o Shinto e voltando a Portugal com um pequeno altar-santuário-portátil ou Kamidana, fazendo algumas meditações sintonizantes e sentindo bem a ligação com Amaterasu-ô-mi-kami, com certa regularidade, tal fez nascer alguns vídeos consagrados ao culto de tal ligação, ou a Amaterasu, o último sendo o pretexto para este texto e que pode ouvir com o link assinalado no fim...
A ideia, para quem se possa assustar com o que lhe parece um paganismo ou politeísmo, é bem mais simples, e denomino-a as Faces Divinas:
A Divindade primordial e infinita manifesta-se em certos Seres, aspectos ou Faces Divinas para se tornar acessível aos humanos e para lhes permitir desenvolverem estados de harmonia, amor e de aspiração, ou mesmo união interna divina.
Amaterasu o mi kami  é uma dessas faces, tal como há noutras religiões, seja seres humanos seja anjos ou deusas. É feminina, está ligado ao Sol, não só ao que vemos com os olhos físicos mas ao Espiritual e portanto através dela, do seu culto meditativo e da sua possível desvendação abençoante, o nosso coração em gratidão abre-se em graal para a Divindade.
 Estes 10 minutos de invocação do seu nome, e de repetição de mantras e orações de algumas tradições que tenho trabalhado, nomeadamente o Om Mani Padme Hum budista, o Tat Twam Asi vedanta-indiano e o Spiritus Dei cristão, são um meio para as pessoas sentirem e praticarem bhakti, sentimento-devoção-aspiração-concentração para o nosso despertar consciencial espiritual e para a abertura aos seres e à sabedoria universal, e à Divindade, de um modo ecuménico, vivo, vibrante...

              

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Poemas da Luz anímica e do Amor perene. Do XI ao XXIII, final, de há anos e bem melhorados agora. Com 5 pinturas de Bô Yin Râ e uma nipónica.

XII
Mil nomes pronunciei antes de chegar ao Teu,
Mil passos e retrocessos tracei nos areais
Até encontrar a firmeza das rochas e da terra
Por onde caminhamos e nos despertamos.

No nosso coração há mares
e nele, como conchas, peixes ou sereias
nossas almas nadam e comunicam
sentindo-se bem no Oceano sem fim.

Gritarei e esculpirei o teu nome
     Nas paredes das falésias imensas.
Traçarei o teu nome no ar lilás
    Qual voo da gaivota no horizonte.


 Não dormirei sem ter invocado teu Nome,
sem adormecermos no mesmo mantra.
E mesmo nas marés dos sonhos
estaremos sempre bem atentos
a não nos perdermos de vista,
     A âncora da Esperança que quer
bem firmemente perseverada
nas profundezas do Amor e Ser.

XIII
"Morrer é ser iniciado"
diziam os antigos gregos.
Cristo veio renová-la:
"Não há morte, mas ressurreição".


Vou peregrinando na vida
Procurando ser sábio e verdadeiro
E cada vez mais luminoso
Ligando bem o céu e a terra.

Quando te encontrei
na paz dos teus olhos
Vi o Oceano sem fim
E  nele
quis mergulhar.


Agora nadamos no mar sem fim
do Amor divino e invencível
que como Sol renascendo cada dia,
Atrai-nos para Deus, a fonte da Vida.

XIV
Busco a alma divina
Em mim e em ti,
Voo sereno mas com pressa,
  Amor e aspiração divina.

Procurar o espírito,
Erguer a individualidade,
Abraçar-nos nas essências,
Despertar-nos ao máximo
E sermos um na Divindade.


Não deixarei os cães
morderem ou ameaçarem
nossos caminhos e passos.
Atento e forte na luz
dissiparei toda e qualquer treva.


Tornar-nos-emos tão fortes e puros
como os lírios, cedros e montes,
ou as aves e crianças desprendidas
transmutando a sombra na luz.

Dispersarei as trevas do nosso ser.
Torpor, dúvidas ou tentações
estilhar-se-ão na luz do meio
em que nossas almas viverão.

XV
Teus olhos sonhados e místicos
belos, cristalinos e puros,
procuro chegar ao fundo,
passando da menina à alma
e quem sabe mesmo ao espírito.

Do beijo na face, a forma dos lábios
e os contornos das pálpebras
não traçarei palavras ou sons.
Basta o sentimento, a consciência desperta
e esta vontade imensa de te amar, de sermos amor.


XVI
Face à noite primordial cósmica,
Ao antigo Caos do Amor
E à união das nossas almas
só sentimos gratidão, beatitude e amor.

Não dormiremos como as estrelas,
como o galo pitagórico saudaremos a Aurora.
E da intensidade do nosso encontro e união
Ressoarão ondas rítmicas no Oceano Cósmico,
Cristalizando nas almas a presença Divina.

XVII

Só vendo ainda  as luzes da aurora

 Não posso saber de nudez total.

Quando ela chegar e nos abrasar

Pouca escória em nós restará,

Será verão quente na nossa unidade.

 

O Amor escorre da fonte cristalina

 Ciciando sons e ritmos divinos

Inundando a nossa alma de Luz

Erguendo-nos na dimensão imortal.


XVIII

Os Setembros cálidos e mágicos

 Quando subimos aos montes,

ou trabalhamos nas colheitas

em tudo a fertilidade sorrindo.

 

Dedos e mãos que se tocam,

Almas que se querem unir,

 São Miguel lá no alto triunfando:

Os raios de Amor cruzando a Terra.

 

Ritmos de luas, equinócios e eclipses,

São ocasiões de ritos e meditações,

 evocações das Harmonias  Cósmicas

na Terra tão explorada, ardente e carente.

 

XIX

Pássaros da luz

esparsa por aqui e acolá,

traçando fulgurações

nos encontros ocasionais.

 

 Como não gratamente relembrar

jardins de sol e estufas de sombra,

mesas, flores,  parreiras e diálogos,

almas e uniões tão expectantes?

 

A procura ardente do Espírito

Une as almas peregrinas afins,

E calmas como guardiões

Vigiam as costas de Portugal.

 

Unindo-nos com os mais novos

Complementamos os mais velhos,

Abraçando o  Céu e a  Terra,

 Harmonizamos o Androginato interno.

 

 Folhas, nuvens e pessoas ao vento

São apelos ao discernimento

Das seivas anímicas valiosas,

Que devemos cultivar perenemente. 

XX

 Gaivotas solitárias e miraculosas

atravessando mares e costas sem fim,

olhos no longe, impávidas e serenas,

voos rasantes nas cristas das ondas

subindo subitamente rumo ao sol 

e por fim ei-las precipitando-se

e no mar ondulante mergulhando:

e quando vem o peixe na boca

há paz na alma desabrochante.

 XXI

O  Amor é todo poderoso

mas para muitos é tão ilusivo.

pois ele parte, ele chega

ele exige, ele esfuma-se.

 

Nas horas mais nocturnas

O fogo do Amor devemos despertar,

para, resistindo ao torpor das trevas

ardermos, iluminar-nos e  contemplarmos.

 

Mas como, para quem

questiona a mente ao Ser?

- Lança a energia da aspiração coração

e chama pelo nome e face divina

que mais vibra no teu coração.

 

A Unidade Divina e a sua Comunhão.

É dada por quem amas ou amaste.

Cultiva os momentos de mais Amor

pois embora invisível arde e desvenda. 

 

Quem amas palpitará vibrante

Rumo a ti na Alma do Mundo.

Por fios luminosos correm anseios,

Precipitando visões celestiais

 Compensando as dores e esforços.

 

Tua alma grávida como uma catedral,

Contém ícones, resinas e filigranas,

E coroando, em cálice, a eucaristia,

 A visão duma face feminina divina.

XXII

Teu rosto e ser tão belo

não está ainda tão amado

que espelhe o espírito divino

e nos inunde da sua felicidade.

 

Teu corpo puro e subtil

Redondo e harmonioso

É uma promessa certa

 Da criatividade frutífera.


Teus dedos suaves

apontam as linhas,

desenterram as raízes,

segredam sentidos,

indicam caminhos,

desvendam os mistérios.

 

A presença da Luz Primordial

brilha no fundo do teu coração

e tudo será bem possível

na Primavera da tua alma.

 

Tua aura calma,

Tua vida límpida,

Permitem a paz,

Partilham o silêncio.

 

Em evocação de ti

Saudarei a Magia

 Causadora dos encontros

 Dos seres amáveis,

A descoberta das almas gémeas

A união das almas afins.

 

XXIII

Nossos nomes originais cruzados

E nossas mãos e almas entrelaçadas

Geram osmoses, poemas e claridades,

que aumentam a fraternidade planetária.

 

E vencendo as dúvidas e trevas,

Insónias, desânimos e agitações,

Por serviços e realização espiritual,

Desabrocharemos a consciência imortal.
 

terça-feira, 27 de abril de 2021

Albuns inéditos. José de Beires Junior, 1872. Desenhos, e um anteriano, lançados na barca perenizante dos Fiéis do Amor, com a voz da Teresa Salgueiro.

                                              

                               

                               

Este Álbum desenhado há mais de 170 anos sobreviveu às vicissitudes do tempo e chegou aos nossos dias com oito desenhos cheios de ingenuidade, força e frescura, que caracterizariam o seu autor José de Beires Júnior, que se poderá admitir ter seguido a carreira militar. Pela intercomunicação das coisas e dos seres veio parar-me às mãos e suscitou-me a ideia de o dar a conhecer e simultaneamente fazer chegar até à sua alma alguma luz e amor. Uma música do grupo Madredeus, com a voz sublime da extraordinária Teresa Salgueiro, Ao Longe o Mar, que encontra no fim do artigo, poderá ouvir desde já, até no sentido de recuperarmos mais a perenidade consciencial de tudo o que vale ou que amamos...

Possa muito da arte deste Álbum, já patente nas letras que assim o intitulam, miniaturizadas e esmeradas beneditanamente, e depois nos ingénuos desenhos, estimular-nos a sermos mais criadores e cultores, com amor despertante, da beleza e da harmonia e, portanto, da justiça e da fraternidade humana tão necessárias face a tanta iniquidade e sofrimento  que o imperialismo norte-americano e o neo-liberalismo ocidental  desencadeado no mundo. E assim a desenvolver mais a vontade ou a aspiração do amor, pois  é ela que nos arranca à mediana e tão perecível horizontalidade, tão manipulada ou mesmo opressiva...

De que nos falam os desenhos tão naifs senão do caminho do ser humano, e assim no 1º par de desenhos deparamo-nos com a face de um oficial garboso de capacete emplumado diante de uma criança tímida segurando uma maçã nas suas mãos, qual prece de gratidão,ou símbolo da busca do conhecimento e do amor, que se abre ou desafia a todos. O 2º leva-nos numa fragata com um "P", talvez de Portugal, na vela, rumo à travessia do Oceano, a que todos somos lançados nesta Terra, só aparentemente terra e física pois bem mais vasta e subtil ela é. Na 3ª folha José de Beires Júnior apresenta duas imagens de animus, da alma masculina, a que o seu peito aspirava e no qual se dilatava. Segue-se na 4ª folha  a sua materialização conquistadora no cavaleiro, no corredor ou jokey, aquele que sabe dominar os seus instintos e chegar às suas metas, qual arcano VII no Tarot. Ei-los:




O desenho a seguir ao do cavaleiro, na quinta folha, foi cortado, escapou-se da história e só podemos intuir que nele talvez a Amada, provavelmente ainda ideal, fizesse a sua aparição, mas uma mão incógnita a arrancou da nossa narrativa e da História...

Assim se passa tantas vezes na vida, quando dois seres se podiam constituir em duas páginas seguidas de um livro mas por diversas causas se rasga tal contiguidade de almas afins. Talvez por isso o desenho que se segue é um monumento com um vaso de cinzas, ou como lhe chama José Beires Júnior, um túmulo, ao estilo grego. Quem se memoriza e resgata da Eternidade? Foi alguém que conseguiu realizar que o morrer é ser iniciado, ou seja, que é apenas iniciar-se um novo caminho nos mundos subtis e espirituais?

Para o seu último desenho (e porque não desenhou mais?) José Beires Júnior escreve com a sua letrinha de jovem: "Um eclesiástico considerando as reformas de 1870", ou seja, lendo o jornal Diário Popular.  

Curiosamente na época em que Antero de Quental, com a denominada Geração de 1870, lançava as bases de uma certa revolução moderna das consciências portuguesas, primeiro com as suas Odes Modernas (1865, com a dedicatória a Germano Vieira Meires, e a nota final bem revolucionária, já não presentes na 2ª edição de 1875), depois entrando em polémica com o conservadorismo literário de Castilho e seu círculo, enviando-lhe a sua brilhante carta Questão do Bom Senso e do Bom Gosto e, finalmente, com as Conferências do Casino, realizadas a partir de Maio de 1871, na qual a sua sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, ao originar ataques fortes dos meios  eclesiásticos, obrigou Antero a escrever a Resposta aos Jornais Católicos, que saiu à luz na madrugada de 22 de Junho de 1871  no nº 5295 do Jornal do Comércio, magistralmente justificada assim no 1º parágrafo:  «Respeito todas as opiniões: nenhuma todavia tanto como a opinião dos vencidos cuja fé é superior aos factos que os esmagam, e muitas vezes à ciência que os condena. As opiniões, se vivem muito pelas ideias, vivem tanto ou mais ainda pelo amor e pelo carácter dos que as representam. Considero assim o partido católico. Combato-o, respeitando-lhe a lealdade da crença. Esperava dele a reciprocidade deste sentimento. Não posso pois senão estranhar e sobretudo lastimar o procedimento dos jornais católicos, que para impugnar as conclusões da minha conferência sobre as causas da decadência da Península, recorreram deslealmente a insinuações pérfidas sobre as minhas intenções e a minha convicção, adulteraram as minhas palavras, e me atribuíram opiniões  a que nem de longe aludi. isto tem um nome muito feio, e que eu não quero dar a pessoas que, apesar de tudo me obstino em respeitar.»

Por fim, deixando para atrás a súbita descoberta (já aqui com as fotografias no blogue) de uma possível referência a Antero de Quental e às Conferências do Casino, entramos no último desenho, já não de Beires Júnior mas de um desenhador Marques no qual vemos um homem bem vestido, pujante de vitalidade e empunhando nas mãos dois vasos plenos de flores garridas, qual homenagem ao seu predecessor José Beires Júnior, seja antes a uma amada. Ou será que queria apenas estimular a consciência de termos as flores da nossa alma, bem coloridas e desabrochadas e de oferecermos mais flores a quem nos rodeia ou quem mais merece ou precisa?

Demos graças a José Beires Júnior, a Marques, a Antero de Quental, a Teresa Salgueiro e aos  Madredeus (nesta sua música que nunca mais findará...)  e que a Luz e o Amor brilhem nas suas almas de Fiéis do Amor e da Tradição Espiritual Portuguesa...

                       

Poemas da Luz anímica e do Amor perene. Do VIII ao XI dum ciclo de XXII, escritos há uns anos. Com 4 pinturas de Bô Yin Râ.

                                                              

VIII
Momentos quentes, sublimes,
Quando as almas se fundem
E já não são só elas
Mas todo o Universo e Deus.

No cais da minha alma
Aportou a tua nau.
Grande reboliço
E alvíssaras se ergueram.

A espuma na areia e no ar
Revela a intensidade do embate
Entre o Oceano e a Terra,
Entre mim e ti, meu Amor.

Corpos molhados,
Almas imensas,
A lucidez do Espírito,
O abraço da Unidade.
 

IX
O paroxismo do Sol
Tinge o horizonte de sangue,
Assim as nossas almas
Vertem amor desde a aurora.

Quando erguemos o cálice,
Quando celebramos o Amor,
Quando nos entregamos
Totalmente um ao outro,

O que se irradiará então pelo Universo,
Que vibrações maravilharão os Anjos,
Que cânticos, orações, mantras e ais
Se juntarão à música das esferas?


X
O mistério da conjunção,
O segredo da criação,
Fremem de portas abertas
E luzes resplandecentes.

As palavras calam-se,
O vento serena,
Nada bule a não ser
A chama imensa do Amor.

As serpentes animam-se,
Erguem suas asas,
Há dragões no céu,
Arco-íris na Terra.

Pelos vales e montes
Ecoam o grito e a maresia
Do Amor infinito
Que nos une para sempre.


XI
Dentro de mim há uma ilha
Onde tu serás a princesa
Deste Robinson Crusoe
Há muito ali naufragado.

Vieste sorridente e calma
Trazendo a barca da salvação.
Não podia hesitar muito,
Saltei da ilha para teu coração.

Agora não estou enraizado,
Antes livre como o vento,
Sou uma centelha espiritual
Unido a tudo e a ti.

Ilhas reunidas entre si,
Paraísos e utopias na Terra,
Assim reverdeceremos
E  grande paz irradiaremos.

domingo, 25 de abril de 2021

Do Culto doméstico e da Higiene no Shinto de Hirata Atsatune, nos Romanos e nas nossas aras e lares.

O culto religioso ou espiritual doméstico, baseado nos efeitos familiares higiénicos, estéticos e psico-energético, desde uma antiguidade muito grande foi vivido em vários povos com apurada sensibilidade e intensidade. Vamos apenas aproximar-nos brevemente de duas tradições, uma ocidental, a de Roma, e outra oriental, a do Japão e mais propriamente a do Shinto, através da visão e ensinamentos de um dos seus pensadores, Hirata Atsatune, um filósofo importante do Fuko Shinto, a Renovação do Shinto, durante o período Edo (1603-1867), Shinto significando o caminho do Espírito (shin, ou ainda kami).

As fotografias do Japão neste texto foram obtidas na minha peregrinação de quarenta dias, registada em diário, em Julho, Agosto e Setembro de 2011. 

Em verdade, alguns  sábios do Japão nos séculos XVII, XVIII e XIX procuraram preservar e fortalecer a tradição cultural e espiritual  nipónica e shintoísta em tempos de fortes influências estrangeiras, seja chinesas e budistas seja ocidentais, e de crescente urbanização do país e, portanto, de perda dos modos de sensibilidade e vida naturais e antigos, nomeadamente os que os poetas, as mães, os educadores e os religiosos transmitiam às crianças e jovens. Algo disto entre nós sentiu entre nós e mencionou o poeta Augusto de Santa Rita, na sua tão significativa e valiosa Justificação inicial do número único da revista que publicou com Fernando Pessoa, em 1916, Exílio.

Nesses sentidos ou objectivos tais pensadores ou filósofos estudaram as tradições poéticas, míticas, etnográficas e religiosas, através  das etimologias, práticas e concepções de vida ou filosofias, e tentaram apontar as  mais valiosas de serem preservadas e cultivadas porque representavam ou indicavam o caminho da harmonia natural, entre a terra e o céu, entre os humanos e os kami. Denominou-se tal o Kokugaku, Estudos Antigospois basearam-se muito na poesia (waka) mais antiga (tal a compilação datada de 759 Man’yoshu), na crónica Kojiki (escrita por O no Yasumaro, a mando da imperatriz Gemmei, em 711-712) e em menor grau de valorização na Nihonshoki, de 720, e ainda nas orações cantadas ou noritos (um exemplo: https://youtu.be/Ly-Y5LS39bA) e ritos primordiais (tais os contidos no Yengishiki, do séc. X), e nos sentimentos e consciência que elas testemunhavam, sintetizados no famoso traço de sensibilidade ou mentalidade, o mono no aware, a empatia com as coisas e seres, por exemplo por Wenceslau de Moraes tão sentida, observada e aprofundada, destacando-o nos pioneiros ocidentais do conhecimento empático da alma japonesa, dentro da alma da criação, como ele também chamava.  

Denominado o Fuko Shinto, o Shinto restaurado ou reformado, purificado dos estrangeirismos e ensinando a recuperar o coração puro e natural (magokoro), teve os seus principais expoentes numa linha sucessiva de mestre discípulo, Kada no Azumamaro (1669-1736), Kamo Mabuchi (1697-1769), o mais importante Motoori Norinaga (1730-1801) e Hirata Atsatune (1776-1843), este clamando ter recebido a transmissão de Motoori Norinaga, que não conhecera fisicamente, por sonho, o que muito provavelmente não é uma legenda pois trata-se de fenómeno vivenciado e vivenciável pelos que estão  no caminho espiritual, mormente num ser tão dedicado à espiritualidade.

Neste artigo vamos abordar apenas Hirata Atsatune e alguns aspectos do seu ensinamento, tais como o de ter desenvolvido a ideia de que todos os japoneses eram descendentes dos deuses e não só a família do imperador, esta linha de força já tendo sido valorizada por Motoori Norinaga, até por razões políticas, bem como ainda a preeminência do kami ou deusa do Sol, a bem amada ou adorada Amaterasu o mi kami

Tinha a sua razão de ser tal ideia e concepção, porque deste modo Hirata Atsatune investia as pessoas numa individualidade, sacralidade e poder mais fortes, com capacidades portanto de também elas serem intermediárias entre a Terra e o Céu, entre o corpo e o espírito (shin). Mas já exagerava num certo nacionalismo quando pensava que só o povo japonês era o escolhido dos Kami ou deuses, e só ele descendia directamente Deles,  originado provavelmente no no seu afã  de estimular os seus conterrâneos e de partilhar ao máximo os ensinamentos salvíficos que estudava e desenvolvia da tradição espiritual nipónica do Shinto.
Ora na função de pontífices, de sacerdotisas (mikos) e sacerdotes, os
seres devem fazer os seus rituais, orações, meditações para cultuar os espíritos celestiais, os Kami, e nomeadamente os da casa. Será esta actuação que  nos interessará nesta artigo mais, pois tal sacralização da casa, à parte alguns amantes do Feng shui (e em geral numa forma algo geral e técnica)  está muito perdida.  E pode ser bastante útil à nossa evolução espiritual...
Hirata Atsatune, que gerou bastante obras, infelizmente pouco
traduzidas, algumas mesmo (sobretudo após a morte da sua amada mulher) acerca dos mundos subtis e espirituais, valorizou alguns kamis do lar, conhecidos tradicionalmente com diferentes nomes dependentes das zonas das casas que lhes são consagradas.

Ei-los: Ie no kami Yabune no kami, o kami da casa ou edifício, também chamado Toshigami, o kami guardião, ou os kamis, plurais (sorei),  da prosperidade da família, primitivamentes ligados à colheita do arroz, festejado anualmente e aupiciosamente no começo de cada ano (tal como em Agosto, quando se comemora o Bon Odori, o Festival dos Mortos, e que Wenceslau de Moraes tão magistralmente descreveu, vivendo-o em Tokushima e aonde eu estive em peregrinação na época certa), na época (talvez pelo sol e calor) considerada de abertura maior da ligação com o mundo espiritual. São muito belas as simbolizações que se lhes oferecem no começo do ano, o Shime kazari:

  Depois menciona  um kami já muito pouco cultuado mas na época muito importante, Ido no kami, ou Idogami, o kami do poço e fonte de água, e seria interessante estudar algumas das suas histórias e compará-las com o nosso fabulário dos poços, tão ligado ao inconsciente, à mulher, às fadas e mouras.  E ainda  o Kamado no kami, o kami do fogão e da cozinha, também conhecido por Sanbō Kōjin, no sincretismo do budismo e shintoísmo, nomeadamente no mais esotérico Shugendo. Este é importante pelo menos lembrar-nos, e de certo modo reverenciarmos, ao limparmos em especial o local do fogo, ou fogão, oferecendo ao Cosmos pensamentos e actos de ordem e limpeza-pureza...

E,  por fim, o muito necessário na época, dadas as más condições higiénicas nas cidades e bairros pobres,  Kawaya no kami, o kami da casa de banho, por vezes visto como feminino, e para cujo culto Hirata Atsatune propôs várias medidas de higiene,  construção, utilização de estrume,  harmonia e culto. Acreditava-se, por exemplo, com mais ou menos razão, que o estado dela influenciava quem nascia na casa, especificando-se que poderia mesmo influenciar o nariz do nascituro, provavelmente conforme os odores.

Se no Ocidente e em Portugal se perdeu esta consciência e visão da possibilidade de existência de  deuses ou espíritos tutelares da casa e das suas divisões, nos tempos mais antigos, nomeadamente dos Romanos não era assim, pois reconheciam-se  os deuses domésticos denominados Lares e Penates, que as pessoas cultuavam nas suas casas, no tablinium, um espaço-divisão que sucedia ao atrium, e que eram os escolhidos por cada família, sendo representados em moedas, vasos de cerâmica ou esculturas como seres de idade, com um manto sobre si, algo que pode sugerir espíritos de antepassados que agiriam como intermediários com o mundo divino. Anote-se que a sobrevivência de espíritos subtis humanos ou da natureza sentidos ou ouvidos nas casas portuguesas ficou  denominada popularmente pelos trasgos, vistos pelos teólogos como daimons-demónios ou ainda duendes.

Estes seres humanos já só espíritos, seja antepassados seja amigos e guias, em geral eram até mais cultuados como  os espíritos tutelares da família, os  Lares familiares, nos pequenos altares ou aras onde se lhes queimavam diariamente ervas e incensos ou se derramavam as libações. Assim tanto se purificava a casa como se invocavam as bênçãos (para eles e para os descendentes) pelas fragrâncias e orações, simultaneamente proferidas. Eram assim não deuses maiores mas génios, engenhos ou espíritos despertos no além e capazes já de inspirarem na Terra, e geralmente representados com  coroa de louro e uma taça corno de libação. Não estavam limitados porém à casa e em qualquer local se podiam manifestar e logo cultuar. Assim havia os da ruas e campos, os viales e rurales...

 Com o Catolicismo, a concepção feita de Deus e de Jesus Cristo seu único filho eliminaram todos os "concorrentes" e apenas se permitiu criar alguns cultos a anjos (em especial ao Anjo da Guarda, este a partir do séculos XVIII e XIX, muito reproduzido em gravuras e estampas)  e Santos, estes festejados com alguns traços do paganismo no início de Novembro, nos dias de todos os Santos e de todos os Defuntos, e nos seus dias de martírio ou canonização. Algo do Kami tutelar da casa ficou assim nas gravuras que entronizavam anjos, santos, Jesus, ou a partir do séc. XVIII, o sagrado coração de Jesus, como protector das casas, por vezes havendo até estampas ou azulejos de invocação de protecção ou de boas vindas para os que comungavam de tal crença, invocação e fraternidade. 

                                     Pode ser uma imagem de 1 pessoa

Podemos então admitir  que algumas imagens, gravuras, pinturas ou esculturas que temos nos nossos quartos e salas podem ser vistos como portas e janelas para os deuses, protectores,  inspiradores, os Kamis tutelares. Estão neste nível mais particularmente e intimamente as fotografias de familiares ou amigos que já partiram para os mundos espirituais e que de certo modo se tornaram Kamis, espíritos divinos (ou mais próximos de tal nível primordial), ainda que certamente hajam diversos níveis ou planos vibratórios no além, muitos seres estando ainda demasiado inconscientes, limitados ou baixos, antes precisando das nossas orações para despertarem, devido a terem trabalhado pouco na Terra para despertar tal as suas melhores potencialidades e uma consciência imortal.
Ora se rezar diante de tais pequenos santuários era valioso para os romanos
e isto foi também muito desenvolvido no Japão com os Kamidanas, pequenos santuários caseiros, e mesmo portáteis, onde kamis familiares e os celestiais e primordiais são cultuados. Ou então com Butsudana, com os Budhas. (Na imagem, o butsudana da família em cuja casa me instalei no Bon Odori,  graças a Takako Karaoke, a quem muito agradeço).

 Os Gregos e Romanos tinham uma classificação valiosa que incluía este nível intermediário: os semi-Deuses. Aqueles que pelos seus feitos se tinham erguido a um grau de imortalidade e de consciência dos deuses ou mesmo da  Divindade. Entre as referências a tal culto estão  os famosos Versos de Ouro de Pitágoras, que deverão até ser mais chamados versos pitagóricos, pois retratam em versos um catecismo de discípulos do insigne mestre.

Não houve nos pitagóricos certamente influências das ideias nipónicas que proclamam a passagem dos seres humanos a kamis seja pela suas vidas bem luminosas ou excepcionais, ou apenas pelo passar de certo tempo uma vez morto o corpo físico e entrados nos planos subtis e espirituais. Mas dado que a Grécia religiosa têm raízes shamanicas e que estas tiveram curso forte no Japão, na Coreia, na Rússia, sendo a fonte primordial do Shinto, até podemos considerar as duas tradições como veios do mesmo rio, e em que os Kamis e semi-deuses tanto podem ser espíritos angélicos celestiais ou apenas espíritos que já foram humanos terrenos e que agora vivem em corpos espirituais. 

Certamente podemos ainda referir  o contributo da Grécia, da Deusa Hygia donde nos veio a palavra Higiene, a deusa da Medicina, da cura dos simples e da higiene pública e que Hirata Atsatune tanto cultuou e procurou desenvolver, no seu afã de melhoria das condições de vida físicas e psíquicas dos seus compatriotas. Esta linha prosélita foi bem ampliada pelo seu filho adoptivo Kanetane (1799-1880) que de certo modo fundou a Escola de Hirata divulgando muito os seus livros. Um dos seus discípulos mais importantes foi Katagiri Harukazu  que criou o Mameo no tsudoi, o Círculo de Homens Sinceros, para o estudo  da obra de Hirata, com grande devoção ou culto ao seu espírito, invocado em longos noritos. Conseguiu erguer em 1867 um santuário, o Hongaku reisha, fortalecido por objectos icónicos pertencentes aos antigos mestres, que influenciou muita gente e compôs ainda belos poemas de partilha do valor da vida agrícola e da comunhão simples com os Kamis.
Em verdade discernida ou admitida a realidade dos Kamis, o facto estarem ou poderem
estar em toda a parte e manifestar-se em qualquer objecto, em especial no que se destaca pela sua qualidade, caso de certas pedras, árvores, locais da natureza, tornou-se uma concepção e crença  típica do Shinto e impulsiona-nos a admitirmos que será importante propiciá-los não só na natureza e nos santuários mas mesmo nas casas de banho, tanto mais que se não as mantivermos limpas geram-se energias negativas que, acumuladas, obstruem a fluída ou livre circulação, e logo afectam a saúde, e atraindo até eventuais entidades negativas. Já quanto a como são estas energias e também que entidades são essas, embora haja bastantes lendas e algumas visões clarividentes subjectivas, só quem investiga e vivencia lucidamente é que poderá sentir e logo ganhar, mais ou menos temporariamente,  alguma relativa compreensão segura. Vale mais porém sintonizarmos com os seres subtis ou kamis de luz...
Fiquemos então com a ideia-força da importância de todas as
divisões da casa que habitamos estarem belas e harmoniosas e poderem assim ser percorridas livremente pelas energias vitais ou mesmo por mais elevadas e abençoantes, ou até merecer a estadia de espíritos subtis luminosos e inspiradores. Esta concepção, aceite e cultivada,  gera comprovadamente uma purificação da casa e uma entrada de energias mais puras ou elevadas na nossa alma, nomeadamente nas nossas meditações.
Cultivemos então a beleza e a limpeza em todos os locais onde
estivermos, tanto exteriormente como sobretudo interiormente ( pela pureza e o não egoísmo)  e, como as mikos ou os pontífices desejados social e espiritualmente por Hirata Atsatune, tanto nos curvemos diante do Divino como ergamos com assiduidade nas nossas aras e lares o cálice do Graal ou do Coração flamejante e aberto ao alto em gratidão, aspiração, receptividade e irradiação das tão necessárias qualidades divinas de Justiça e Fraternidade, Sabedoria e Amor...