O intrigante aparecimento dos Manifestos Rosacruzes em 1614 na Alemanha originou tantas repercussões que se formou uma vasta bibliografia rosicruciana, e que nunca mais terminará, pois o que fora uma brincadeira tornou-se um veio amplo da tradição espiritual ocidental merecendo portanto dos que se interessam pelos caminhos da espiritualidade, algum estudo e acolhimento. Ora como ao longo dos anos, de quando em quando li e meditei tal tradição e seus símbolos, particularmente quando publiquei o livro de inéditos de Fernando Pessoa sobre a temática Rosa Cruz, em 1989, e recentemente ao participar nas palestras em Zoom-online, organizadas pelo Rui Lomelino de Freitas a propósito do seu livro de reedição d' Os Manifestos Rosacruzes, resolvi partilhar alguma bibliografia crítica rosicruciana, transcrevendo informações valiosas, ou mistagogas, e apontando questões que tais livros suscitam. O primeiro livro a observarmos é:

FACON, Roger. LE GRAND
SECRET DES "ROSE-CROIX". Nice, Éditions Alain Lefeuvre. 1979.
In-4º de 268 págs. Brochado.
É uma obra rica de
informações e de citações de autores, com dezenas de capítulos,
mas ao partilhar simultanemante compreensões e ensinamentos valiosos e acontecimentos mais mirabolantes ou então os exageros e mistificações de
sucessivos ocultistas e dirigentes rosacrucianos, sugere que no autor há certa ingenuidade na aceitação ou afirmação de versões, ideias ou teses, embora a narrativa seja mais de investigação estilo jornalística ou policial do que histórica, confessional ou doutrinária.
A capa original, de André Boudet, está alinhada com o texto da contracapa, que termina algo bombasticamente: «Perseguidos e adulados sucessivamente, os imortais prosseguem, mais do que nunca, a sua missão de fraternidade universal. É neste universo estranho e prodigioso que nos conduz Roger Facon. E os irmãos de hoje declararam-lhe:"Uma última chance será dada ao ser humano antes do fim dos tempos. Ela virá quando a ROSA FLORESCER SOBRE A CRUZ»... Que afirmações mais mirabolantes, certamente para vender mais o livro...
Perguntar-se-á: Que irmãos foram esses? Serão credíveis, tanto eles como Roger Facon, nascido em 1950, escritor de romances polares, isto é, de intrigas policiais e investigações, desde a infância, pela influência dos seus avós, com ligações ao imaginário da alquimia, e que escreverá umas duas dezenas de obras, entre o fantástico, o policial e o ocultista?
Cremos que evidentemente o fim de tempos é mais uma figura de retórica sensacionalista e repetida por tantos milenaristas, messianistas, apocalípticos. Os Irmãos que lhe teriam falado vêm em terceira mão e provavelmente em si são até mistagogias criadas por dirigentes rosicrucianos. Quanto ao fim dos tempos, seria para eles nos anos 70, 80, 90, 2000, 2015 ou agora em 2020 ou já 2030? Ou antes, não deveremos reconhecer que estamos sempre em movimento de crise e que mesmo os melhores rosacrucianos e astrólogos dificilmente conseguem calcular e adivinhar o que os políticos mais destrutivos deseja, ou pensam ou decidem? Finalmente, perguntemos, estará Roger Faucon influenciado pelo mítico fim dos tempos, em grande parte proveniente dos zelotas que redigiram o Apocalipse e dos que o atribuíram, para dar mais garantias, a S. João, o apóstolo querido de Jesus, e semeando uma fantasmagoria de luta, por entre ameaças, ilusões e temores, das forças do bem contra as do mal?
Avancemos então com a leitura crítica e a transcrição de alguns dados menos conhecidos recolhidos por Roger Facon, que nos primeiros capítulos do seu livro, reconheçamos, narra bem a história e o conteúdo dos Manifestos, a vida de Johannes Valentinus Andrea (1586-1654), o autor principal do erudito e espiritual círculo de Tübinguen (grupo do qual dá poucos dados), a quem se devem as obras, e que sendo filho
de um pastor protestante e duma farmacêutica, e neto de um pastor
luterano antigo chanceler da Universidade de Tubingen, recebera uma educação muito rica que lhe permitiu ainda adolescente escrever obras de teatro e as geniais Núpcias Alquímicas.

Baseando-se nos estudos de alguns autores e investigadores, Roger Faucon mostra estas datações
dos Manifestos: «Na sua História dos RosaCruzes, Franz Wittemans
lembra que, segundo Sperber, a Fama estava já mencionada em vários
escritos em 1595. Para Kazauer, ela foi composta entre 1570 e 1583.
Segundo Hans Schick, as Núpcias Alquímicas foram realizadas entre
1603 e 1605. A Fama dataria de 1610, a Confessio de 1611, 12. Para Will
Erich Peuckert, entre 1604 e 1605 saíram sucessivamente Núpcias, Fama e
Confessio, como vemos ficando várias hipóteses cronológicas no ar.

Seguem-se alguns capítulos sobre as reacções em França (realçando a obra do Abade Montfaucon de Villars), os primeiros seguidores Rosacruzes (Descartes, Comenius, Michäel Maïer, Robert Fludd e Francis Bacon) do séc. XVII, e os precursores do movimento Rosa Cruz, tais como, por exemplo, Camapanella e o médico e ocultista Paracelso (1493-1541), referido antes do seu tempo real de vida na biografia mítica de Christian Rosenkreutz contida na Fama Fraternitas, e que também teria,
como esta, criticado o Papa, mas ao mesmo tempo Lutero, caracterizando-os como sendo «um barrete branco, e um branco barrete, ou duas prostitutas que disputam a mesma camisa».
Dá algumas notícias históricas da violência católica e jesuíta na época que justificam a linha
protestante patente nos Manifestos Rosacruzes, e cita o belo verso de Lutero «Der Christen Hertz Rosen geht, Wann mitten untern
Kreutze steht...» «Le coeur du Christ devient rose, Quand il est au
milieu, sous la croix», que traduzo antes por «O Coração do Cristão torna-se Rosa, quando está sob o meio da Cruz...» A propósito dos
precursores mais remotos e de certo modo fantasiosos dos Rosa Cruzes, tem um sub-capítulo, Os Filhos do
Escaravelho, onde escreve: «H. Spencer Lewis, fundador em 1609 da
Ordem Rosicruciana A.M.O.R.C, faz retroceder a origem da Rosa Cruz às
escolas dos mistérios do Egipto. Para ele, a «famosa fraternidade» fora fundada pelo faraó Thotmès III (1500-1447 a. C) e teria
comportado inicialmente 12 membros. O seu sucessor teria passado para
300 membros e adoptado como signos de reconhecimento, a cruz ansata e
o escaravelho. E Roger Facon termina esse sub-capítulo, com outra ousada e incomprovável afirmação,
esta via Gérard Sède, um escritor algo mistificador: «Egipto cujo centro
iniciático maior é Heliopolis, a cidade do Sol. Uma cidade
particularmente cara a Tommaso Campanella. Irmão pregador, no qual
Gerard Sède via «não somente um precursor da Rosa Cruz mas ainda um
dos membros fundadores daquela».

Onde encontramos dados mais interessantes no livro de Roger Facon é acerca das organizações
rosacrucianas e ocultistas que o autor leu, conheceu ou pertenceu. E assim escrevendo das sociedades do séc. XIX, privilegia três, a Ordre Kabbalistique Rose Croix, 1888, de Stanislas Guaita, a Ordre Rose Croix
du Temple et du Graal, de Saar Peladan (que deu um forte impulso na arte simbolista, com os seus salões Rosa Cruz) e sobretudo a Societas
Rosicruciana in Anglia, esta fundada em 1865 por Robert Wentworth, e que
virá a
ter como dirigentes sucessivos Bulwer Lytton, William W. Wescoot e
Samuel
L. Mathers, este último afirmando que tivera contactos fisicamente com alguns
Superiores Incógnitos, sabendo-se hoje que foi tudo uma grande mistificação.
Fernando Pessoa, entre nós, lerá uma das suas obras e discernirá os
seus fortes desequilíbrios astrais que lhe provocarão a morte. Mathers não foi único
membro da Golden Dawn a dizer que beneficiara do contactos com os Superiores
Desconhecidos. Devemos citar, diz-nos Roger Faucon, também Aleister Crowley: «o maior dos
magos modernos», segundo Serge Hutin, «o único mago do XX século
ocidental», segundo Robert Amadou, dois ocultistas, ou melhor esotericistas franceses, por vezes pouco históricos No
fim da biografia curta que traça de Alesteir Crowley,
manifestará Roger Faucon a sua discordância, forte e corajosa, com esses dois maçons,
Serge Hutin e Robert Amadou, considerando que «com a Golden Dawn
e a O.T.O. – no seio do qual circulam teorias fascinantes da qual se
inspiraram os responsáveis do Grupo Thulé e os dignitários do III
Reich – nós estamos em presença do ocultismo desviado. Onde a
falsa mística
coabita com os velhos temas da extrema-direita... Nós estamos bem longe, em todo o caso, do espírito da Fama. A Rosa Cruz de que se reclamam a Golden Dawn e a Ordo Templi Orientis é uma rosa-cruz invertida: a Rosa-Cruz NEGRA.»
Outras histórias interessantes relatadas, já do séc. XX: o fundador duma das organizações mais populares, a A.M.O.R.C., Harvey Spencer Lewis (1883-1939), deu uma vida e imagem de Jesus pouco tradicional, e transcrevemos do resumo de Roger Facon: «Na sua segunda obra aparecida em 1929 na USA - Spencer Lewis, baseando-se em documentos essénios, tibetanos, egípcios e hindús,- mas também em escritos dos primeiros Padres da Igreja, em judeus e em pagãos - esforçou-se de demonstrar que o Cristo foi um «GENTIO DE SANGUE ARIANO». Instruído pelos melhores dirigentes da Fraternidade essénia instalada na Palestina (os «irmãos em Túnica Branca»), Jesus frequentou a escola secreta do Monte Carmelo. Depois viajou na Índia. Ao Tibete. Na Pérsia. Na Grécia. No Egipto. Antes de atingir o Adeptado. E de se tornar a incarnação do Verbo. Ele pregou um socialismo sagrado - radicalmente oposto ao imperialismo romano - e foi, por causa disso, condenado a sofrer o suplício da Crucificação. Somente, ELE NÃO MORREU NA CRUZ. Muitos dos seus discípulos, particularmente influentes (José de Arimateia, Nathael, Nicodemo) obtiveram a sua graça [ou libertação] do imperador Tibério. Jesus foi descravado, tratado, durante a noite no túmulo de José de Arimateia, depois conduzido ao mosteiro do Monte Carmelo, onde só acabaria por morrer bastante mais tarde. DE VELHICE. Depois de ter continuado a dirigir os seus discípulos». «H. Spencer Lewis, La vie Mystique de Jesus, Éditions rosicruciennes».
Em verdade, são afirmações algo ou mesmo muito mistificantes: Jesus ariano, peregrino planetário e um socialista crucificado pelo imperialismo romano...). Roger Facon critica fortemente este ensinamento da Amorc: «a interpretação proposta por H. Spencer Lewis é portanto contrária à Tradição. Ela não deve ser aceite por um cristão - e ainda por cima se é um esoterista. Ela é contrária ao espírito da Fama, da Confessio e das Núpcias Alquímicas de Christian Rosenkreutz. É uma interpretação marginal. Que deve, certamente, ser respeitada, como deve ser toda a opinião expressa humanamente nos países democráticos. Mas ela não responde às normas rosicrucianas tradicionais».
Narra em seguida sem pôr abertamente em causa o facto de ousadamente Christian Bernard, o sucessor e filho do primeiro Legado Supremo para a Europa da A.M.O.R.C., afirmar ter sido numa sua
vida anterior S. Tomás de Aquino (alguém que teria sido também Rudolfo Steiner...), e descreve algo dos seus misteriosos contactos com os cento e quarenta e quatro
verdadeiros irmãos Rosacruzes, presididos pelo próprio, e portanto não sendo um mero ser legendário, Christian Rosenkreutz, em doze capitais do mundo, uma das quais
Lisboa, onde esteve por duas vezes. Afirmações bem difíceis de se provarem.
Há poucas referências ao austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), fundador da Antroposofia e autor de bastantes doutrinações, imaginações e especulações rosicrucianas, destacando-se os seus valiosos comentários às Núpcias Alquímicas de Christian Rosenkreutz, consideradas como descrevendo o processo da iniciação por imagens e imaginações. Steiner apenas é nomeado a propósito do mirabolante livro Legende des Fréres Ainès de la Rose Croix, de Victor Caro (1911-1992) (em quem Faucon contudo sente que o mais prudente leitor pode e deve ter confiança), quando transcreve a longa lista mistificada e mistificadora da sucessão dos Mestres dos Fréres A. R. C., provinda dos Templários, onde surgem desde Robert Flud a S. Vicente de Paula, de Bulwer Lytton a Eliphas Levi e William W. Wescott, este que lhe teria dito que Max Heindel (1865-1919) poderia vir a ser também mestre.

A Rudolf Steiner (na fotografia em cima) é atribuída a função do 55º Imperador, nos anos de 1898-1900, surgindo em nota de rodapé algumas interrogações: «Max Heindel teria sido contactado por um Grande Mestre dos F.A.R.C, se acreditarmos em Roger Caro. Ora Heindel dá-nos uma descrição dos Irmãos Maiores da Rosa Cruz» bem diferente daquela que a Legenda. Treze membros em vez dos trinta e três. Heindel, sabemo-lo, entrou em conflito rapidamente com Steiner [com quem aprendera durante algum tempo]. Ora, o Dr. Steiner é o 55º Imperador dos F.A.R.C. Desejarão fazer-nos compreender que com Max Heindel, nós estamos em presença dum «dissidente», tendo querido dar um claridade particular a uma realidade relativamente modesta?».
Na realidade Max Heindel aprendera bastante com Rudolfo Steiner, de tal modo que lhe dedicara, a 1ª edição da sua Concepção RosaCruz do Cosmos, retirando-a posteriormente, uma vez que Steiner o criticara por ter afirmado que Max Heindel "tinha tirado tudo que pode das suas palestras e livros enquanto lá esteve". Max Heindel refere ou aceita algo de tal acusação mas defende-se porém com a sua iniciação com um Mestre Rosa Cruz superior, secreto, posterior à estadia com Steiner, em Berlim e de quem, desse sim, teria recebido ensinamentos valiosos. Mas se não tinha clarividência e se não recebeu de mestres superiores, Heindel copiou muito de Steiner.
A sua Rosicrucian Fellowship foi fundada em 1909 e dispensa gratuitamente as suas sincréticas doutrinas, muito devedoras de Blavatsky e de Steiner, mas ao contrário das várias outras organizações rosicrucianas, que se dizem mais ou menos mistificadoramente em contacto com os Superiores Incógnitos ou os verdadeiros irmãos Rosacruzes, não se fazem pagar directamente pelos cursos fornecidos. Max Heindel diz serem treze Irmãos, sete estando em acção no mundo e cinco sempre no templo de Berlim, onde ele tivera a sua iniciação secreta. No fim do mesmo capítulo Roger Facon refere muito brevemente a Escola Espiritual da Rosa Cruz Aurea, ou Lectorium Rosacrucianum, que diz ser de inspiração cátara e joanita. Os capítulos sobre Cátaros, Graal, Rei do Mundo estão também repletos de hipóteses imaginativas e incomprováveis. Talvez os melhores capítulos sejam os ligados aos Cavaleiros Templários, defendendo que os ditos três beijos heréticos na cerimónia da iniciação na Ordem corresponderiam à transmissão do sopro criador, à filiação na cadeia de ouro dos iniciados e ao despertar do Kundalini. E o da alquimia, «cujo fim é - por meio das técnicas apropriadas - de se abrir à iluminação do Espírito. De reencontrar a utilização do Corpo Divino. De retomar o lugar no "Mundo de Deus". Esta obra de Roger Facon, com sensibilidade e conhecimento, é generalista e divulgativa, algo no estilo de investigação jornalística ou policial (e ele trabalhou na polícia), com informações diversas recolhidas aqui e acolá, ora divertidas ora emocionantes, sucedendo-se a uma velocidade talvez grande demais e logo superficializando, mas que abrem para vários aspectos da saga oculto-rosicruciana, sobretudo nos últimos séculos tão prolífera em grupos, ordens, pseudo-mestres e iniciações, cisões, lutas. Não há grandes sinais de intuições originais do autor, embora se sinta uma predisposição de procura da verdade, de justiça e da "iluminação" tradicional... Demos por fim esta revisitação e aspiremos mais a manter a ligação espiritual e pelas nossas acções e meditações fazer desabrochar a rosa do espírito e do amor...
