terça-feira, 21 de julho de 2020

Uma trovoada previsível pelas nuvens e que se deixou fotografar. Lisboa, 20/21.V.2020

 Fotografando em Lisboa algumas nuvens especiais da tarde de 20.V, depois do trabalho, escrevi primeiro, ao partilhá-las por telemóvel para o grupo das nuvens, "quase de trovoada" mas depois substituí por "quentes"... Mas afinal eram mesmo de trovoada e de chuva, como se desvendaram entre a meia noite e a meia noite e meia e eis algumas. Que nos inspirem e iluminem!
 
 Discretamente, para quem se encontra a trabalhar no computador, alguns clarões brancos passam fortes e misteriosos: fogos de artifício, alguma festa?
                                      
Subitamente, vemos que os clarões substanciais, quais bolas de fogo nos céus índigos, são o resultado de raios nas nuvens...
                                      
              Na noite escura criam-se formas de luz bem arquétipas...
                                          
                                 Bolas de fogo branco, puro, que impactam sobre casas e pessoas

                                          Ondulações energéticas subtis que nos estimulam e purificam
                                        
E nos abrem para os mundos espirituais... Eis uma boa fotografia para ser contemplada: surfar numa onda gigante...

Mesmo quando o vento do sul empurra a chuva para dentro de casa e nos recolhemos, os clarões convidativos dos raios ígneos não deixam de nos iluminar
A terra, o rio Tejo e suas Tágides, os ares, tudo se transfigura nestes momentos algo cósmicos...
Raios horizontais, quais lanças ou setas que seres subtis ou kamis disparam, emanam...
       Por vezes os raios são teofanias, ou seja, sentimos como uma   pequena visão analógica da Divindade fabulosa.
                    Escreva a sua legenda, sentida ou interiormente vivida...
                           
Fender as trevas do ignoto, discernir, amar, ser, partilhar
                            
Imagem sugestiva das dimensões subtis que permeiam a nossa física
                           
Quais danças de seres e filamentos, possam as nossas almas dançar nas aspirações e meditações, comungando na luz visível e invisível...
                      
Saudações aos espíritos da natureza, aos devas, aos antepassados e kami, aos mestres e à Divindade e suas Faces....
                      
Assim como se abrem assim se fecham os cortinados, assim são as aberturas e visitações do alto e do espírito e do amor e felicidade... Saibamos ser observadores lúcidos e peregrinos firmes no caminho da Luz, da Verdade, do Amor e da Divindade....

domingo, 19 de julho de 2020

Armando Martins Janeira, especialista de Wenceslau de Moraes e da presença portuguesa no Japão, na comemoração da sua desencarnação.

                                                
O embaixador Armando Martins Janeira, diplomata, escritor e profundo conhecedor e divulgador da presença portuguesa no Japão e em especial de Wenceslau de Moraes, nasceu em Felgueiras, Bragança, em 1 de Setembro de 1914 e desencarnou no Estoril, com 73 anos, no dia de 19 de Julho, de 1988. Casara aos 45 anos com a alemã Ingrid Bauer, que o acompanhou com grande qualidade na sua missão e o continuará no amor e partilha da amizade luso-nipónica, sendo  fundadores, em 1981, da Associação de Amizade Portugal Japão. Ainda o ouvi por duas vezes...
Sendo diplomata desde 1939, esteve duas vezes no Japão:  como 1º Secretário de Legação, de 1952 a 1955, e como Embaixador de Portugal, de 1964 a 1971, em Tóquio.
                                      
 Deixou uma vasta obra histórica e ensaística e nela destacaremos por ordem cronológica e pela temática nipónica, em 1956  Caminhos da Terra Florida – A Gente, a Paisagem, a Arte Japonesa, e O Jardim do Encanto Perdido – Aventura Maravilhosa de Wenceslau de Moraes no Japão

 Em 1962  imprime O PEREGRINO, em Lisboa, num in-fólio oceânico de 72 páginas em papel de arroz. Dentro de estojo em algodão estampado ao modo japonês, constitui uma valiosa aproximação a Wenceslau de Moraes, com referências importantes ao Shinto e ao Budismo na sua vida e obra e como foi acolhido pelas duas religiões aquando da sua morte. É uma belíssima edição, muito bem ilustrada com um postal até escrito por Wenceslau, uma toalhinha japonesa e uma gravura em madeira do estilo ukiyo-e, provavelmente já do séc. XX, além de imagens fográficas de Wenceslau. Tiragem de 100 exemplares numerados e portanto rara.
Em 1966 sai Um Intérprete Português do Japão.  Wenceslau de Moraes. E em 1970  O Impacte [Impacto]Português Sobre a Civilização Japonesa, que virá a ser reeditado em 1988.
 
Em 1971 dá à luz uma boa escolha e bem apresentada, intitulada Wenceslau de Moraes. Selecção de textos e introdução de Armando Martins Janeira.
 
  Em 1981 é impresso o excelente Figuras de Silêncio – A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, com prefácio do prémio Nobel da Literatura Shusaku Endo, e onde aborda muito bem as grandes almas portuguesas no Japão: o capitão-do-mar Jorge Álvares, Fernão Mendes Pinto, os missionários jesuítas S. Francisco Xavier, Luís de Almeida, Luís Fróis, João Rodrigues e Diogo de Carvalho e finalmente "o último dos grandes aventureiros lusíadas: Wenceslau de Moraes."
Além de cinco livros escritos em inglês, há ainda alguns inéditos em vias de serem publicados. 
                               
  Os seus livros estão repletos de sabedoria não só dos outros mas de si próprio e nesse sentido escreveu: «O significado da vida e da felicidade — todos os sábios do Oriente e do Ocidente nos ensinam — só se encontra quando o homem se dedica a uma grande tarefa, se entrega inteiramente a uma missão e se dissolve no poder imenso que o transporta para além da existência individual». 
Vivendo no Japão cerca dez anos, onde ajudou a «erguer 15 monumentos comemorativos da grande obra portuguesa», um museu, uma escola infantil e um cortejo histórico, este descobridor moderno confessará: «Foi uma luta combatida e vivida num fervor de cruzada, não para ressuscitar um legado histórico, mas para inserir a História na vida de hoje e amanhã. Isto só no Japão poderia ter sido conseguido. Oxalá um dia em Portugal igual eco se levante, para que assim a obra portuguesa no Japão desça da leniente seara dos eruditos para o campo da cultura geral, e aí tome um significado vivo e universal, hodierno e criador — para que o amor entre os dois povos se engrandeça».
                                           
Foi e é, de portugueses e estrangeiros, quem melhor compreendeu Wenceslau de Moraes e também o Japão, destacando nele, na antologia referida, págs. XV-XVI, duas fases: «Nos primeiros anos de Japão, Moraes vivia no encanto da cor, na surpresa do exótico, no arroubo das maravilhas pitorescas do lendário Dai-Nippon. Este lado superficial deu-lhe em Portugal grande voga: ainda hoje para os leitores de Portugal, Moraes é apenas um escritor exoticista, delicado e louco, perdido no lindo sonho de um romântico Japão (...) 
O Moraes profundo e verdadeiro é o dos últimos anos do Japão. É o homem que amadurece no sofrimentos os seus verdadeiros valores humanos. É o estrangeiro isolado em um meio hostil, por vezes insultado, perseguido, mas nunca desistindo do grande propósito da sua vida - conhecer a essência da vida oriental e fazer o relato detalhado das suas reacções ocidentais no ambiente estranho que o cerca. Este relato minucioso é um documento de inestimável valor humano pois até hoje ninguém nos deixou uma confissão tão íntima e interessante das suas experiências diárias de oriental entre orientais.»
Realçará ainda dois aspectos muito importantes: «Moraes escreveu a primeira história de amor entre um ocidental e uma japonesa - a confissão do seu drama com Ko-Haru; e porque foi também o pioneiro na análise da vida diária de uma comunidade japonesa, a pequena cidade de Tokushima, Moraes mostra também mais largueza e visão do futuro.» 
Do seu conhecimento do amor religante ou religioso dos japoneses há um trecho de Armando bem curioso e instrutivo: «O Japonês ama carinhosamente os seus templos, quer sejam xintoísta- erguidos no cimo das montanhas para de mais perto adorar o Sol - quer na sua penumbra sorria tranquila a plácida face de Buda, infundindo bondade e profunda paz espiritual conquistadas pelo esforço ingente de renunciar ao mundo para se dissolver no universo, e assim, dentro do humano, atingir o infinito. O Japonês ama acima de tudo os seus velhos templos e os seus antigos jardins, que desde há mais de mil anos trata com esmerado carinho, e onde ainda hoje vai procurar retemperar a sua alma de serenidade e de paz.»
  Encontra-se presente na Câmara Municipal de Cascais, no seu Centro Cultural, uma exposição dedicada a Armando Martins Janeira e com eventos e conferências a decorrer, embora as últimas (uma minha) tenham sido adiadas por causa do Covid.

Uma raposa do Japão (kitsune) em Portugal. De Emília de Sousa Costa (1877-1959), "Triste vida a da Raposa", um conto para crianças bem sensivel.

Emília de Sousa Costa (1877-1959) foi uma notável artista, escritora, professora, feminista, protectora da infância, natural de Lamego e a família de Vila Pouca de Aguiar, que trabalhou na Caixa de Auxílio a Raparigas Estudantes Pobres, na Tutoria Central de Lisboa e no conselho central da Federação Nacional dos Amigos das Crianças. Casou com o "juiz" e escritor Alfredo de Sousa Costa, de quem teve descendência, Deixou-nos muitos contos infantis, cheios de ensinamentos e boas emoções para todos e para sempre: uma literatura perene, que bem mereceria alguma antologia. 
Um neto dela, no seu blogue Velharias, num valioso artigo de 11-VII-2016, intitulado Um porta-retratos antigo por preencher recenseou na Porbase da Biblioteca Nacional, 120 obras da sua autoria e dá até o seu  nome de nascimento, Emília da Piedade Teixeira Lopes e assinala que deve ter sido por ela que a notável republicana, feminista e espiritualista Maria Veleda (a quem consagramos recentemente um artigo neste blogue)  passou a trabalhar na Tutoria da Infância, pois fora criada pelo seu marido Alberto de Sousa Costa, para além de que a sua irmã Margarida casara-se em 1909 com o poeta Cândido Guerreiro, de quem Maria Veleda tivera uma paixão juvenil e um filho. Uma "discordância" senti contudo, pois a partir de uma ou outra fotografia, admite que a sua avó "não parece ser bonita", o que talvez não seja o caso, como vemos na imagem que reproduzo. Quanto ao belo, ou ao bonito, lembremos que a visão da beleza, ainda que haja parâmetros clássicos e bastante subjectiva pois vem sobretudo da alma que vê, e esta transfigura quem gosta ou ama, e pode chegar mesmo ao ponto de - tal como diz o nosso Luís de Camões, cavaleiro e fiel do Amor e frequentemente um neo-platónico ou quase um bhakta indiano, na sua cosmovisão -, poder causar o: "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar"..., mas sem deixar de querer concretizar na matéria e no corpo tal ligação anímica  com a "linda e pura semideia", como diz no fim do poema, pois "o vivo e puro amor de que sou feito, Como matéria simples busca a forma".
Imagem do http://mulheresilustres.blogspot.com/2011/06/emilia-de-sousa-costa.html, um espaço com boa iconografia.
A sua abertura ao Japão neste conto é bem valiosa, havendo talvez alguma influência de Wenceslau de Morais (1854-1929),  ou mesmo alusão a ele, ao ser referido um oficial da Armada, ou Marinha. Wenceslau que, na sua vasta obra, menciona mais de uma vez o espírito-deidade, ou kami,  Inari e as suas raposinhas ou kitsune terá sido possivelmente  lido pelo casal Sousa Costa.
 
A Triste Vida a de uma Raposa!, com sugestivas ilustrações de Raquel Gameiro,  teve a 2ª edição em 1943, na Editora Educação Nacional, no Porto, e que tem ao todo oitenta e seis páginas, da qual fotografámos o 1º capítulo, já que se passa no Japão, pois a kitsune vem depois para Portugal, para o  Douro vinhateiro, junto ao nosso sacro rio, e entra neste blogue numa linha de partilha de algumas das relações entre o Japão e o Portugal que tenho encontrado em livros, revistas, jornais e manuscritos, e também para uma (dona Liliana) ou outra amiga que têm crianças que conseguem manter a pureza e a naturalidade  necessária a elas gostarem de ouvir contos de encantar e logo deixarem-se tocar, formar e comungar com as raízes tradicionais de qualidades, virtudes, arquétipos e seres espirituais. 
Outra destinatária é a página-grupo no progressivamente mais opressivo Facebook, ligado ao Shinto e ao Japão que eu fundei, Shinto em Portugal e no Mundo, On Shinto, the way of the Kami, além da necessidade de fortalecer nas pessoas uma maior sensibilidade às boas relações e diálogos entre os animais e os homens. E particularmente com a raposa, kitsune, consagrada e considerada no Japão animal auspicioso e propiciador da fertilidade dos campos e das culturas, nomeadamente a do arroz biológico e sempre presente nos milhares de santuários de Inari, o espírito- deidade da agricultura, do arroz, da fertilidade mas também dos ferreiros e guerreiros. 
                                        Goddess Inari | Journeying to the Goddess
 Há no Japão milhares de santuários, grandes ou pequeninos, dedicados a Inari, basicamente deidade feminina, cuja etimologia se considera ser ine-nari (arroz crescer), e um dos mais famosos é o de Fushimi, junto a Kyoto, fundado em 711, e onde estive em peregrinação duas vezes, tendo gravado alguns vídeos que estão no Youtube. As raposas sendo o seu animal e as suas mensageiras espertinhas na Terra, surgem assim em estátuas, frequentemente em par, diante dos  altares, como protectoras e inspiradoras. 
Em Fushimi Inari, perto de Kyoto, em 2010, num recanto oculto, com uma pequena queda de água para o misogi, que pratiquei, a consagração a Inari kami, com as kitsunes, e a Amaterasu omikami, com o Yata no Kagami, o espelho, da auto-consciência e da mente transparente.

Mais recentemente, hoje mesmo 4-X-2022, a Inês Carvalho de Matos partilhou para a rede social, ao contrário da VK.com,   tão censuradora do Facebook,  e mais concretamente para a página já referida Shinto em Portugal  e no mundo, um texto e algumas belas imagens do ritual do casamento das raposinhas primordiais e com afirmações finais etnológicas valiosas: «Em Minowa no Sato, na região de Gunma, realizou-se o ritual Kitsune no Yomeiri: "o casamento da raposa". Os figurantes recriam o episódio mitológico do casamento das raposas, que na cultura popular japonesa (com origens no Shintoísmo) é o evento que provoca chuva súbita em dias de sol e também clarões inexplicáveis durante a noite ou no meio do campo.»
Possamos nós presenciar tais fenómenos, muito raros nas cidades, claro, mas ocorrendo nos campos de Portugal ou do Japão, como propõe a Inês, e que são bem transfiguradores para quem os sabe contemplar unificadoramente....
  Uma bela história de Emília Sousa Costa, certamente sem rigor de erudição shintoísta mas com bastante sensibilidade, para crianças mas não só e, capaz de nos emocionar, ainda que apenas neste primeiro capítulo, fazendo-nos viajar ao Japão  e sentir a sua gente e costumes...
Desfrute então de algumas páginas de uma história luso-nipónica de Emília de Sousa Costa e que se pode ter originado em Wenceslau de Morais, oficial da Armada, consúl de Portugal em Kobe e apaixonado pela civilização e duas mulheres do Japão, Ó-Yoné e Ko-Haru, título aliás de uma das suas magníficas obras, das melhores descrições nipónicas no Japão antes da II Grande guerra e do absurdo de Hiroshina e Nagasaki.
Alguns erros na descrição do panteão do Shinto, pois Tien, é céu. A frase correcta seria: "a religião oficial venera os deuses (kami) do Tien (céu) e outros deuses (kami) inferiores ou menos primordiais, entre os quais o simpático kami Inari Sama, isto é, o Senhor ou Dom Inari....


                       Uma descrição da delicadíssima hospitalidade e a culinária  do Japão....









domingo, 12 de julho de 2020

Erasmo: "Da Utilidade do Conhecimento dos Adágios". Breve biografia e tradução, no seu dia de partida da Terra, 12.VII.1536.

                                  
Desidério Erasmo, de Roterdão, um dos maiores sábios de sempre, deixou o seu corpo terreno a 12 de Julho de 1536 (na imagem, já no fim da vida), em Basileia, com 69 anos. Dando à luz sucessivas obras de sabedoria perene (tal os Adágios), de crítica dos costumes (Os Colóquios, o Elogio da Loucura), de retórica e de religião, nomeadamente dos primeiros padres da Igreja, valorizando uma religiosidade de inteligência, piedade e amor, tornara-se o mestre, ou a voz mais respeitada, dos humanistas e da cristandade europeia no Renascimento, chegando mesmo a pôr em causa (a pedido do Papa) Lutero e a sua negação do livre arbítrio. Dos portugueses será amigo de Damião de Goes (na fotografia) e inspirará ou influenciará André de Resende, Frei Valentim da Luz, João de Barros, Diogo de Teive, entre outros. 
A sua crítica dos costumes desvairados da Igreja católica, propondo uma religião de piedade, não-violência e veracidade, suscitou a proibição no Índex (sobretudo a partir do Concílio de Trento e 1562) de muitas das suas obras, ainda que variando conforme as "limitações" dos censores e das infalibilidades papais que as garantiam. Realçando muito um coração puro, livre de superstições, corajoso e aspirando a Deus, dirá: «O importante, onde se deve aplicar toda a nossa energia, é a curar a nossa alma das paixões: inveja, ódio, orgulho, avareza, concupiscência. Se não tenho o coração puro, não verei a Deus. Se não perdoar ao meu irmão, Deus não me perdoará. (...) S. Agostinho encontrou um ou outro caso onde não se reprova a guerra: mas toda a "filosofia de Cristo" a condena. Os apóstolos reprovam-na sempre, e os doutores santos que a admitiram em certos casos, em quantos outros não a condenam? Porquê procurarmos à custa duma passagem o com que autorizar os nossos vícios?» 
No seu afã de irenismo, como se chamava então ao pacifismo, escreverá várias obras e cartas, muito pioneiramente pondo em causa de certo modo as evangelizações, colonialismos e imperialismos que tanto tanto mal têm feito ao mundo, dirá ainda: «Há muita distância entre guerra e latrocínio, entre dilatar o reino da fé e aumentar a tirania deste mundo, entre buscar a saúde das almas e perseguir o botim de Mafoma. Das terras descobertas trazem-se ouro e pedras preciosas, mas mais digno de louvor seria levar lá a sabedoria cristã que vale mais que o ouro».
Ao morrer, o nosso sábio eborense André de Resende (1498-1573) escreve a Damião de Goes contando-lhe como sonhou ouvir uma voz clamando: «extinguiu-se para o mundo aquele que era o ornamento que os séculos nunca chorarão suficientemente». E apela: «Os que profanaram a sua reputação acusando-o de heresia, aprendam agora a moderar as suas sevícias e deixem ao menos intactas as suas obras que a posterioridade grata poderá venerar e honrar». Infelizmente não sucedeu assim e em Portugal o espírito aberto e sábio do Humanismo, bem presente nos cavaleiros e fiéis do Amor e nos erasmianos, não conseguiu sobreviver às pressões do fanatismo ortodoxo, da Inquisição e da censura. 
O Elogio da Loucura, os Colóquios, os Adágios, as Cartas e a sua versão do Novo Testamento são sas suas obras mais perenes. 
Entre nós, em 2008, traduzi com Álvaro Mendes o Modo de Orar a Deus, dado à luz nas publicações Maitreya (com desenhos da capa e no interior de Maria de Lurdes de Oliveira), e comentei-o com certa profundidade, depois de ter contextualizado a obra e as metodologias de oração, bem como biografado Erasmo. Poderá encomendar à editora, ou mesmo a mim, se quiser um exemplar com dedicatória...
Para esta celebração em 12-VII-2020 do aniversário da morte deste querido amigo, traduzi dos Adágios, a partir do latim e de uma versão abreviada espanhola, uma parte do VI capítulo do prólogo, pela muita sabedoria desafiante que contém, nomeadamente no desenvolvimento da amizade e da comunidade, do amor e da Unidade, tão necessários para a evolução da Humanidade, algo que na tradição espiritual portuguesa no séc. XIX foi muito pensado e desejado por Antero de Quental, apelando a que nos elevemos acima do nosso egoísmo e vibremos mais no Bem impessoal e universal.
  Oiçamos então Erasmo: « (...) Para principiar, que a ninguém pareça estranho que eu diga que os provérbios pertencem à ciência da Filosofia. Estimava Aristóteles, segundo Sinésio, que os adágios não eram senão relíquias daquela Prisca Filosofia que se extinguiu por causa das calamidades graves dos humanos e que se conservaram em parte por sua brevidade e concisão, em parte pelo seu bom humor e  engenhosidade; por isso, temos de examiná-las não com apatia nem com negligência, mas com proximidade e profundidade, porque neles subsistem certas chispas daquela vetusta sabedoria que foi muito mais perspicaz na investigação da verdade do que o foram os filósofos posteriores. Também Plutarco (no tratado que fez intitulado Quo pacto sint audiendi poetas) [De que modo são ouvidos os poetas] considera que os adágios dos antigos eram semelhantes aos sagrados Mistérios, nos quais as coisas mais importantes e divinas costumam expressar-se sob cerimónias insignificantes e na aparência quase ridículas.
De facto nestes ditos tão breves chegam-nos através do seu envoltório as mesmas mensagens que os príncipes da filosofia nos transmitiram através de tantos volumes. Por exemplo, aquele adágio de Hesíodo "a metade é mais que o todo" não significa outra coisa que o que Platão, tanto no Górgias como nos seus livros da Política, esforçou-se com múltiplos argumentos por ampliar: "é preferível admitir uma injúria do que causá-la".[Ou ainda, que na metade está uma potencialidade que sobre passa o Todo]
Que outro princípio transmitiram alguma vez os filósofos que fosse mais salutar para uma correcta educação para a vida ou ainda mais vizinha  da religião cristã?
Como pode um minúsculo provérbio encerrar algo de tanta importância: "a metade é mais que o todo" (dimidium plus toto)! Porque  quem aufere o todo, está a defraudar o outro ao deixá-lo sem nada: portanto vale mais ser defraudado que defraudar. 
Para além disso, quem  medite a fundo e com esforço o dito de Pitágoras "as coisas são comuns entre amigos"    descobrirá  sem dúvida neste breve dito estar incluída a súmula da felicidade humana. Que outra coisa faz Platão em todos os seus volumes senão persuadir à comunidade e ao seu originador, a amizade
Se os mortais se persuadissem disto, afastar-se-iam do meio da guerra, da inveja e da fraude;  resumindo, um rebanho universal de calamidades logo emigraria da vida.
A que outra coisa apela Cristo, o príncipe da nossa religião? Um preceito e um só transmitiu ao mundo, o da caridade-amor,  admoestando de que dela só dependem toda Lei e os Profetas. E a que outra coisa nos exorta  senão a charitas, amor, a que tudo seja comum a todos?  Para que, religados na amizade com Cristo, pelo mesmo laço que o une a ele ao Pai, imitando no que é permitido aquela comunhão absoluta pela qual ele e o Pai são verdadeiramente o mesmo, sejamos também um com ele, para, diz Paulo, realizarmos "ser um espírito e uma carne", com ele; de modo a que pela lei da amizade todas as coisas sejam comuns: o que é de Ele seja nosso e o que é nosso seja de Ele. E que então, unidos entre nós uns com os outros, com  vínculos iguais de amizade, como membros da mesma cabeça e como um único e mesmo corpo, sejamos animados pelo mesmo espírito, e assim o mesmo soframos, o mesmo gozamos, como o prefiguram também aquele místico pão, feito de muitos grãos reunidos na mesma farinha, e a bebida do vinho, na qual se fundem muitos bagos no mesmo líquido; para que, finalmente, ao estar em Deus a totalidade das coisas criadas e Deus por sua vez em todos, o universo no seu conjunte retorne à unidade. Vês que grande oceano de filosofia, ou mesmo de teologia, abre-nos um tão pequeno adágio?»
Saibamos nós então, na comunhão com Erasmo e os humanistas e espirituais, escolher, e mesmo escrever (com as mãos de Erasmo, por Hans Holbein), alguns adágios, frases concisas de sabedoria, ou ditos ou mantras, ou preces, e meditarmos e orarmos com eles, assimilando-os no corpo e alma e vivendo-os e irradiando-os luminosamente.
O caduceu de Hermes ou Mercúrio, a circulação das energias ascendentes subtis. Empresa do famoso tipógrafo e humanista Ioannis Froben, de Basileia, grande amigo de Erasmo.

sábado, 11 de julho de 2020

Os cavaleiros do Amor. Antero de Quental, por Félix Horta, in "Livro d'Horas". Com um desenho de Almada.

O diplomata e poeta micaelense Félix Borges de Medeiros Horta, nascido em Ponta Delgada em 1890,  publicou o que cremos ser o seu 1º livro em 1908, o Auto da Vida e trinta anos depois, já bem mais amadurecido, o Livro d' Horas, o qual numa prateleira da livraria alfarrabista Kronos Bazar, do amigo caldense Fernando de Castro, me despertou pela sua lombada e título e, depois, pela capa, a atenção movente.
Levado por aquele impulso intuitivo que nos leva a avistamentos ou descobertas inesperadas, lancei a mão, abri a obrazinha e na página que veio à luz do dia estava inscrito ao alto: Antero.
 Era um belo poema que resumia o seu ser e vida. E como tenho abordado este poeta-filósofo e seus amigos, tendo criado mesmo uma página no Facebook a ele dedicada, adquiri o livro. E já de madrugada, ao deitar, resolvi lê-lo em voz alta e comentá-lo para uma gravação, e assim no fim deste artigo encontra o vídeo de 19 minutos...
Resumamos ainda brevemente o livro de Félix Horta, in-8º de LIII págs., dado à luz nos competentes prelos da Imprensa Nacional, valioso  pelo conteúdo e por ser tão esteticamente bem impresso, não só pelos desenhos e capa mas também pela letra gótica, algo bem raro no séc. XX. E ainda por conter uma breve dedicatória, numa letra bem espraiada e amistosa, a um seu leitor Vasco da Cunha, introduzindo-nos desse modo um pouco mais na sua vibração anímica, que possa ter passado a ele quando o teve na mão.
                                    
Anote-se e reproduza-se ainda o seu ex-libris ou imagem que escolheu como poeta e desenhado para ele por Almada Negreiros, e que nos surge tão discreta e minusculamente logo nas páginas brancas que nem nos demos conta disso inicialmente. Vola et Ama, Voa e Ama, eleva-te e sê pleno, unificador. 

E não encontrei qualquer referência ao alado desenho na iconografia de Almada Negreiros.
                                    
O cap. I , in Limine, no Limiar, contém a dedicatória aos seus pais, "à Terra em que nasci, esse vulcão que o mar embala e ao embalá-lo canta", ao mistério, ao amor, aos mártires e aos que o ampararam ou sofreram por sua causa.
                                    
O cap. II, a Ideia, traça a sua crença no mestre Jesus, em Nossa Senhora da Luz, na comunhão das almas, em especial com seu pai, mas também na vacuidade do pensamento para chegar ao conhecimento Divino e na dualidade das forças que o inspiram, impulsionam ou tentam.

 
 No cap. III, do Amor, este surge-nos bastante vivenciado na dualidade do desejo-encontro e dúvida-separação. 
 No cap. IV, do Homem, contém quatro poemas dedicados a Antero a Soror Mariana, a Camões e a Pedro o Cruel, os dois primeiros muito bem conseguidos, e de realçar Mariana Alcoforado surgir no capítulo do Homem, e ser ela quem que  brilha amorosamente na noite das dificuldades e dos tempos, assim o finalizando: «(...) Sem forças adormece. É madrugada. E ao despertar daquela imensa dor a carta recomeça: - Meu amor!».
 No cap. V. da Morte, pensaríamos que haveria algo de discípulo de Antero, cavaleiro enamorado ou vencedor da morte, mas não, é uma vivência profunda da morte da amada real que descreve, e assim se compreende melhor o dilaceramento patente no cap. III do Amor. Contém seis poemas valiosos, o primeiro levando mesmo o desafiante título Génia, o último confessando nos primeiros versos: «Eu sei quem é que força aquela porta/ e vem, de branco, à noite, silenciosa,/ rondar a minha vida lutuosa/ e afagar-me com suas mãos de morta./ Eu sei quem é aquela forma airosa/ que por saudade ao mundo se transporta,/ que me olha, sorri e me conforta/ e é gelada, pálida e bondosa. (...).
 O cap. VI e final, intitulado da Terra é um belíssimo canto a São Miguel dos Açores, de cinco páginas, iniciado assim: 

 «Nasce das ondas e vai quase aos Céus,
Como uma escada posta aos pés de Deus,
a terra onde eu nasci.
Doura-o o sol e dá-lhe tons e cores
para beijar a Ilha dos Amores
que se levanta ali
num festival supremo de beleza,
em honra do deus Pan,
pela natureza maravilhosa e forte!
Apolo deu-lhe o fogo em convulsões
nas crateras abertas dos vulcões
desafiando a Morte. (...) »

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Oiça então o belo poema dedicado a Antero de Quental, com alguns comentários luminosos, num sacrifício de dezanove minutos do seu precioso temp0....