domingo, 12 de julho de 2020

Erasmo: "Da Utilidade do Conhecimento dos Adágios". Breve biografia e tradução, no seu dia de partida da Terra, 12.VII.1536.

                                  
Desidério Erasmo, de Roterdão, um dos maiores sábios de sempre, deixou o seu corpo terreno a 12 de Julho de 1536 (na imagem, já no fim da vida), em Basileia, com 69 anos. Dando à luz sucessivas obras de sabedoria perene (tal os Adágios), de crítica dos costumes (Os Colóquios, o Elogio da Loucura), de retórica e de religião, nomeadamente dos primeiros padres da Igreja, valorizando uma religiosidade de inteligência, piedade e amor, tornara-se o mestre, ou a voz mais respeitada, dos humanistas e da cristandade europeia no Renascimento, chegando mesmo a pôr em causa (a pedido do Papa) Lutero e a sua negação do livre arbítrio. Dos portugueses será amigo de Damião de Goes (na fotografia) e inspirará ou influenciará André de Resende, Frei Valentim da Luz, João de Barros, Diogo de Teive, entre outros. 
A sua crítica dos costumes desvairados da Igreja católica, propondo uma religião de piedade, não-violência e veracidade, suscitou a proibição no Índex (sobretudo a partir do Concílio de Trento e 1562) de muitas das suas obras, ainda que variando conforme as "limitações" dos censores e das infalibilidades papais que as garantiam. Realçando muito um coração puro, livre de superstições, corajoso e aspirando a Deus, dirá: «O importante, onde se deve aplicar toda a nossa energia, é a curar a nossa alma das paixões: inveja, ódio, orgulho, avareza, concupiscência. Se não tenho o coração puro, não verei a Deus. Se não perdoar ao meu irmão, Deus não me perdoará. (...) S. Agostinho encontrou um ou outro caso onde não se reprova a guerra: mas toda a "filosofia de Cristo" a condena. Os apóstolos reprovam-na sempre, e os doutores santos que a admitiram em certos casos, em quantos outros não a condenam? Porquê procurarmos à custa duma passagem o com que autorizar os nossos vícios?» 
No seu afã de irenismo, como se chamava então ao pacifismo, escreverá várias obras e cartas, muito pioneiramente pondo em causa de certo modo as evangelizações, colonialismos e imperialismos que tanto tanto mal têm feito ao mundo, dirá ainda: «Há muita distância entre guerra e latrocínio, entre dilatar o reino da fé e aumentar a tirania deste mundo, entre buscar a saúde das almas e perseguir o botim de Mafoma. Das terras descobertas trazem-se ouro e pedras preciosas, mas mais digno de louvor seria levar lá a sabedoria cristã que vale mais que o ouro».
Ao morrer, o nosso sábio eborense André de Resende (1498-1573) escreve a Damião de Goes contando-lhe como sonhou ouvir uma voz clamando: «extinguiu-se para o mundo aquele que era o ornamento que os séculos nunca chorarão suficientemente». E apela: «Os que profanaram a sua reputação acusando-o de heresia, aprendam agora a moderar as suas sevícias e deixem ao menos intactas as suas obras que a posterioridade grata poderá venerar e honrar». Infelizmente não sucedeu assim e em Portugal o espírito aberto e sábio do Humanismo, bem presente nos cavaleiros e fiéis do Amor e nos erasmianos, não conseguiu sobreviver às pressões do fanatismo ortodoxo, da Inquisição e da censura. 
O Elogio da Loucura, os Colóquios, os Adágios, as Cartas e a sua versão do Novo Testamento são sas suas obras mais perenes. 
Entre nós, em 2008, traduzi com Álvaro Mendes o Modo de Orar a Deus, dado à luz nas publicações Maitreya (com desenhos da capa e no interior de Maria de Lurdes de Oliveira), e comentei-o com certa profundidade, depois de ter contextualizado a obra e as metodologias de oração, bem como biografado Erasmo. Poderá encomendar à editora, ou mesmo a mim, se quiser um exemplar com dedicatória...
Para esta celebração em 12-VII-2020 do aniversário da morte deste querido amigo, traduzi dos Adágios, a partir do latim e de uma versão abreviada espanhola, uma parte do VI capítulo do prólogo, pela muita sabedoria desafiante que contém, nomeadamente no desenvolvimento da amizade e da comunidade, do amor e da Unidade, tão necessários para a evolução da Humanidade, algo que na tradição espiritual portuguesa no séc. XIX foi muito pensado e desejado por Antero de Quental, apelando a que nos elevemos acima do nosso egoísmo e vibremos mais no Bem impessoal e universal.
  Oiçamos então Erasmo: « (...) Para principiar, que a ninguém pareça estranho que eu diga que os provérbios pertencem à ciência da Filosofia. Estimava Aristóteles, segundo Sinésio, que os adágios não eram senão relíquias daquela Prisca Filosofia que se extinguiu por causa das calamidades graves dos humanos e que se conservaram em parte por sua brevidade e concisão, em parte pelo seu bom humor e  engenhosidade; por isso, temos de examiná-las não com apatia nem com negligência, mas com proximidade e profundidade, porque neles subsistem certas chispas daquela vetusta sabedoria que foi muito mais perspicaz na investigação da verdade do que o foram os filósofos posteriores. Também Plutarco (no tratado que fez intitulado Quo pacto sint audiendi poetas) [De que modo são ouvidos os poetas] considera que os adágios dos antigos eram semelhantes aos sagrados Mistérios, nos quais as coisas mais importantes e divinas costumam expressar-se sob cerimónias insignificantes e na aparência quase ridículas.
De facto nestes ditos tão breves chegam-nos através do seu envoltório as mesmas mensagens que os príncipes da filosofia nos transmitiram através de tantos volumes. Por exemplo, aquele adágio de Hesíodo "a metade é mais que o todo" não significa outra coisa que o que Platão, tanto no Górgias como nos seus livros da Política, esforçou-se com múltiplos argumentos por ampliar: "é preferível admitir uma injúria do que causá-la".[Ou ainda, que na metade está uma potencialidade que sobre passa o Todo]
Que outro princípio transmitiram alguma vez os filósofos que fosse mais salutar para uma correcta educação para a vida ou ainda mais vizinha  da religião cristã?
Como pode um minúsculo provérbio encerrar algo de tanta importância: "a metade é mais que o todo" (dimidium plus toto)! Porque  quem aufere o todo, está a defraudar o outro ao deixá-lo sem nada: portanto vale mais ser defraudado que defraudar. 
Para além disso, quem  medite a fundo e com esforço o dito de Pitágoras "as coisas são comuns entre amigos"    descobrirá  sem dúvida neste breve dito estar incluída a súmula da felicidade humana. Que outra coisa faz Platão em todos os seus volumes senão persuadir à comunidade e ao seu originador, a amizade
Se os mortais se persuadissem disto, afastar-se-iam do meio da guerra, da inveja e da fraude;  resumindo, um rebanho universal de calamidades logo emigraria da vida.
A que outra coisa apela Cristo, o príncipe da nossa religião? Um preceito e um só transmitiu ao mundo, o da caridade-amor,  admoestando de que dela só dependem toda Lei e os Profetas. E a que outra coisa nos exorta  senão a charitas, amor, a que tudo seja comum a todos?  Para que, religados na amizade com Cristo, pelo mesmo laço que o une a ele ao Pai, imitando no que é permitido aquela comunhão absoluta pela qual ele e o Pai são verdadeiramente o mesmo, sejamos também um com ele, para, diz Paulo, realizarmos "ser um espírito e uma carne", com ele; de modo a que pela lei da amizade todas as coisas sejam comuns: o que é de Ele seja nosso e o que é nosso seja de Ele. E que então, unidos entre nós uns com os outros, com  vínculos iguais de amizade, como membros da mesma cabeça e como um único e mesmo corpo, sejamos animados pelo mesmo espírito, e assim o mesmo soframos, o mesmo gozamos, como o prefiguram também aquele místico pão, feito de muitos grãos reunidos na mesma farinha, e a bebida do vinho, na qual se fundem muitos bagos no mesmo líquido; para que, finalmente, ao estar em Deus a totalidade das coisas criadas e Deus por sua vez em todos, o universo no seu conjunte retorne à unidade. Vês que grande oceano de filosofia, ou mesmo de teologia, abre-nos um tão pequeno adágio?»
Saibamos nós então, na comunhão com Erasmo e os humanistas e espirituais, escolher, e mesmo escrever (com as mãos de Erasmo, por Hans Holbein), alguns adágios, frases concisas de sabedoria, ou ditos ou mantras, ou preces, e meditarmos e orarmos com eles, assimilando-os no corpo e alma e vivendo-os e irradiando-os luminosamente.
O caduceu de Hermes ou Mercúrio, a circulação das energias ascendentes subtis. Empresa do famoso tipógrafo e humanista Ioannis Froben, de Basileia, grande amigo de Erasmo.

2 comentários:

Luiz Gomes disse...

Boa noite tudo bem? Sou brasileiro, carioca e procuro novos seguidores para o meu blog. E seguirei o seu com prazer. Novos amigos também são bem vindos, não importa a distância.

https://viagenspelobrasilerio.blogspot.com/?m=1

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças, Luiz Gomes. Que o novo de 2022 seja abençoado por Erasmo e os mestres espirituais e logo mais criativo e feliz em nós!