quarta-feira, 7 de agosto de 2019

As "Quadras inéditas" de Agostinho da Silva. Uma hermenêutica espiritual, por Pedro Teixeira da Mota.

As Quadras de Agostinho Silva podem ter sido compostas tanto num cultivar da tradição popular ou até na esteira de Fernando Pessoa, como apenas como um brotar do seu ser e por uma época, a década de 80, do seu percurso biográfico, já com setenta e tal anos, em que lhe foi natural ou privilegiou tal estilo mais concentrado e aforístico.
                                            

Ou então, como ele nos diz, aduzindo antes a musa ou voz da deusa, a inspiração-intuição, na compilação intitulada Quadras inéditas, publicada em 1990 na Ulmeiro do seu amigo José Antunes Ribeiro: «Acordo e sai um poema/ Alguém mo sonhou de noite/ Só preciso não ser nada/ Para que a musa se afoite.»
As quadras de Agostinho da Silva constituem no seu todo inegavelmente o núcleo individual de maior sabedoria escrito em quadras em Portugal até aos nossos dias, sem com isso desconsiderarmos as centenas ou milhares, populares, anónimas, de grande beleza, amor, sabedoria, etnografia e rima e que graças a pacientes folcloristas dos inícios do séc. XX foram recolhidas e preservadas.
Merecem a grande maioria das quadras de Agostinho da Silva a leitura e meditação nossa ou mesmo decorá-las e assimilá-las com regularidade, quais mantras, e deviam também estimular-nos a criarmos as nossas próprias. Para além de serem interpretadas, o que pouco se fez até agora talvez por falta de espirituais agostinianos...
Oiçamos então duas delas bem valiosas:

                      
        Crente é pouco,
   sê-te Deus
                        e para o nada que é tudo
                        inventa caminhos teus. 

                        Entende tudo no mundo
                        quem aposta em entender
                        e por si cria a vida
                        que sobrevive ao morrer.

A quadra inicial apela à nossa passagem de mero crente, por exemplo, em Deus, para o estado consciencial ora de afirmarmos mais Deus em nós, ora de termos Deus mais afirmado ou firme em nós. Poderá mesmo o "sê-te Deus", significar "torna-te para ti Deus", "sê Deus em ti".
O primeiro verso é de uma profundidade e riqueza imensa mas, como muito deste nível, pode ser menosprezado por comentadores, ou passar mesmo desapercebido aos agostinianos e suas teses e comunicações.
Ser apenas crente é pouco, é vulgar: não basta acreditar, é necessário conhecer-se ou ser. Já na Antiguidade grega havia essa
dualidade entre a pistis e a gnosis, a fé e o conhecimento, considerando-se a 1ª via acessível a todos, e a 2ª a mais exigente, ao implicar um caminhar espiritual ou então uma súbita intuição ou iluminação do espírito, do Divino, da Unidade.  
Ambas foram consideradas dentro das religiões como vias de salvação, embora sem nunca se afirmar que apenas salvariam disto e daquilo mas que de modo algum levavam ao que se entende por salvação em termos de união a Deus ou de entrada nos níveis supra-paraísos psíquicos ou dos fiéis.
Quanto ao "sê-te Deus", encontramos em tal uma injunção de realização espiritual muito poderosa, quem sabe se expressa por estas palavras pela primeira vez em Portugal e que tem até ressonâncias com o Esto, Sê, 2ª pessoa  do singular do imperativo em grego, com uso iniciático nos Mistérios gregos, tal como nos descreveu Plutarco, nessa civilização grega tão apreciada e estudada por Agostinho da Silva...
                      
                                   
Partenon, visto pelo mestre alemão Bô Yin Râ
Usualmente diz-se ou dir-se-ia: "Sê Deus". Mas tal levanta uma certa ambiguidade, pois se tomada à letra é uma grande arrogância e heresia, mas já tomada no sentido de "seres Deus para ti mesmo", pode-se compreender no sentido tanto de seres divino no que fazes ou és, como também no "sê tu Deus", sê mais divino na tua vida.
Tanto o "sê-te Deus" como o "sê tu Deus" são mantras muito poderosos, e quando os meditamos vemos que o 1º é mais interiorizante e limitado e o 2º mais abrangente e ilimitado, gerando a possibilidade perigosa de se poder estar a sugerir ao eu-ego para se assumir como Deus e exercer tal sobre os outros, o que pode dar maus resultados...
O "Sê-te", escolhido por Agostinho da Silva evita tais perigos, e sugere não  nos deixarmos levar pelas circunstâncias e influência exteriores, mas sermos nós próprios: "sê o teu ser único, essencial, espiritual, divino", recomendação esta que será dedilhada frequentemente, constituindo verdadeiramente o eixo do mundo para Agostinho da Silva...
- Eleva a tua fasquia, e sê-te, sê o Deus que está em ti.
Agostinho da Silva está aqui e agora a dar-nos uma injunção iniciática:
- Desperta, desperta-te, ergue-te, sê-te, isto é, sê tu próprio, sê-te o Espírito Divino que está em ti nos teus níveis mais elevados, sê criatividade, liberdade, amor, plenitude....
                              
 Já a quadra seguinte, que foi associada por Agostinho da Silva à primeira, valoriza bem mais simplesmente mas também profundamente a gnose, ao cantar-nos:
 
          "Entende tudo no mundo
            quem aposta em entender
            e por si cria a vida
            que sobrevive ao morrer." 
 
Uma hermenêutica ou interpretação espiritual  breve dirá que quem tem como lema, mote ou intenção da sua vida o entender, o compreender, o conhecer, firme e perseverantemente, contra tudo e todos, calma mas meditativamente, determinadamente, certamente até na linha do lema de Paracelso, Ad astra per aspera, Aos astros pelas asperezas, Pelas dificuldades às alturas, essa pessoa consegue desenvolver seja o seu corpo espiritual que passa para além da morte física, seja intensificar a irradiação ou vida do espírito imortal, que é o seu próprio ser, agora recriado, renascido, levando-nos para além do repouso em paz sob a tumba, rumo aos mundos de mais luz, de maior proximidade do Sol Primordial Divino...
 
Escrito no dia 6 de Agosto de 2019 na Herdade do Freixo do Meio, Lavre, Montemor-o-novo, onde estive a proferir palestras, a trabalhar agricolamente e a dialogar, a convite do Alfredo Cunhal, adepto forte e fundamentado de Agostinho Silva e dos projectos ligados ao culto ou idade do Espírito Santo...

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Agostinho da Silva e a sua vida e espiritualidade: aproximações. Melhoradas no dia dos seus 117 anos. Lux!

O texto inicial deste artigo foi preparado-imaginado para uma conferência acerca de Agostinho da Silva realizada na livraria galeria lisboeta Pessoas e Saberes, no final da segunda década de 90, e completei-o no dia 6 Agosto de 2019, na Herdade do Freixo do Meio, acrescentando várias citações dele. 
«Agradecendo a vossa presença, que torna esta conferência numa Ecclesia, uma assembleia, o que é reforçado pelo tema sob o qual ela vai decorrer, O  Espírito em Agostinho da Silva, gostaria antes de mais de saudar o prof. Agostinho, nosso amigo, que provavelmente onde quer que esteja sentirá algo do que o nosso coração e alma irradiam, o que, antes de mais, poderá ser a gratidão, bastando para tal relembrar-nos dele, e nem sequer sendo necessário as circunstâncias e ocasiões de franco e entusiasmante diálogo, ou quando as suas palavras tiveram  condão confirmador, esclarecedor e iluminador em nós.
Se vamos tratar dum tema complexo, façamo-lo aceitando a ideia repetida e assumida pelo prof. Agostinho de “não limitar o infinito, não definir o inefável”, tal como nos diz também numa quadra: «Dizendo que é só amor/ Fazes Deus menor que Deus/ Cercas o ilimitado/ Dos limites que são teus», e partamos para esta aproximação ao Espírito e ao Divino como uma peregrinação e demanda em comum, constituída pelas duas horas em que dialogaremos a fim de nos tornarmos melhores conhecedores e realizadores do espírito, ou discípulos da sabedoria, amor e verdade.
                           
E nisto seguimos o prof. Agostinho, numa das suas características ou ensinamentos principais: tornarmos a vida conversável, algo a que ele tanto se devotou
dinamicamente ao longo da vida, tal como explica nesta instrutiva e bela ideia: «A palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior.»
Mas antes de entrarmos mais detalhadamente no tema relembremos alguns aspectos da sua espiritualidade, tanto mais que houve uma certa desilusão quanto ao modo como foi tratado este tema recentemente na livraria lisboeta Barata, o que me fez oferecer estas palavras, e diria quase sacrificialmente, perante esta valiosa assembleia.
Da espiritualidade de Agostinho da Silva eu ressaltaria antes de tudo a sua capacidade, brotando do seu coração e ser, de dissipar o medo ou as dúvidas que eventualmente envolviam os seus interlocutores, que o procuravam para as conversas que decorriam ora em contos e histórias narradas, ora em diálogos mais socráticos, em que ele abria
tanto possibilidades e contactos como portais, vistas e fundos,  bem mais vastos dos que as pessoas lobrigavam à chegada à sua casa e que por si mesma também já tinha algo propício a tal, ao estar num dos sete  montes de Lisboa, o Príncipe Real, na histórica Travessa do Abarracamento de Peniche, no quarto ou último andar, sem elevador, escada de madeira estreita e empinada, com uma vista espraiada sobre o casario da cidade e o Tejo, e as suas nuvens e ventos. 
Realçaria nele também o viver e valorizar muito o serviço, o bem comum, o altruísmo, o saber ascética ou esforçadamente obtido para se poder ajudar ou adorar, chegando mesmo a assinar as cartas dactilografadas e fotocopiadas como "George Agostinho, vosso irmão servidor".  Duas quadras suas, e um texto, são neste sentido bem elucidativos: «Que o melhor de meu destino/ me salve a mim e aos meus/ de saber para poder/ não para louvar a Deus.
E que me guarde primeiro/ da vontade de saber/ como coisa que
possua/ antes que estrada de ser.» 
Já num texto de Setembro de 1993 diz-nos, como mestre de bordo e franciscano espiritual: «Sair da crise com três princípios: o de me ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar»
Outro dos aspectos mais desafiantes, para ele e para nós, da sua
espiritualidade era a atracção ou gosto pelos paradoxos e pela união dos opostos e contrários, o que por vezes me obrigava a pensar mais uns segundos para captar ou chegar à sua visão circular ou de 360 graus. Por isso era anti-unilateralismos, facciosismos, partidos únicos ou maiorias absolutas, ou ainda acantonamentos em um só dos lados da vida, frequentemente tão dual ou dualizada, tal como nos diz em 7-7-87: «Que ideologias e filosofias cedam logo seu lugar à sabedoria que lhes é rainha; e que a contemplação das essências, qualquer que seja o nome que se lhes dê, jamais faça perder a atenção ao fenómeno por mais insignificante que pareça, pois que nenhum o é.»
Destacaria também como era forte  o seu sentido universalista, alicerçado tanto nas suas numerosas viagens e estadias em várias terras e povos como na sua rede de amigos, "somos 700 espalhados por todo o mundo", dizia ele num momento chave da sua maior intercomunicabilidade com as pessoas, altura mesma em que a possibilidade de movimentação ou intervenção (mais ou menos concentrada e eficaz) esteve presente em alguns dos amigos mais chegados...
Sucederam-se então os episódios da instituição da Fundação D. Dinis e a criação dum Fundo em 1991 (com o dinheiro de retroactivos de ter sido professor) para apoio de projectos de vida conversável e espiritual,  numa de duas cartas explicitado assim: «Fundo Comum Del Rey Dom Dinis, para subsídios a individuais ou, de preferência, a colectividades que tenham interesse nos problemas teológicos que levanta o culto do Espírito Santo do séc. XIII, tendendo, segundo parece, concluir que são Irmãs todas as religiões que já houve, há ou haverá, já que nem tudo do que nos apercebemos se inclui no físico e no matemático.» 
Mas da preferência pelas colectividades ou comunidades, ou mesmo do «estímulo que mais conveniente for considerado para que se desenvolvam estudos e experiências, do que foi ideologia e ideal do povo português no século XIII», passou-se pouco depois para bolsas monetárias para trabalhos ou teses de universitários, e os fugazes sonhos tanto de apoios a  inserção de grupos na realidade da terra como de partilha da sua mensagem e utopia a boas audiências , ficou-se pelas treze Conversas vadias, ou entrevistas, passadas na televisão pública em 1990. 
 
 No fim, com a passagem do seu tempo terreno, pouco disso subsistiria e restam-nos a memória, os seus escritos, ainda assim bastante reimpressos e divulgados, a Associação Agostinho da Silva, fundada em 1995 (por Maria Violante, a companheira final de Agostinho da Silva), e que tem o seu portal na web com algumas obras acessíveis, e as dinamizações, palestras e publicações acerca dele e dos seus ensinamentos, com alguns vultos a persistirem mais em tais divulgações ou interpretações, ou mesmo, de quando em quando, com algum aprofundamento valioso...
Talvez  essa fase mais esperançosa durante a sua vida e que se gorou tenha tido continuidade e eficácia através do que alguns dos seus seguidores, estudiosos ou amigos ergueram em  colóquios, congressos e comunicações, fazendo lembrar os franciscanos entusiasmados com S. Francisco de Assis, ou mesmo o Cristianismo inicial que esperava uma vinda Jesus, a segunda vinda eminente, aos cantos de Marana Tha, a que sucederam em vez disso as perseguições e, por fim, o endurecimento da instituição eclesial, tão fortemente resguardada e dogmatizada para que nada prevalecesse sobre ela, que o espírito passou, à parte em algumas almas, a ser apenas de palavras, ritos e sacramentos, e por vezes até  aprisionado, desfigurado e desvitalizado por elas em vez de realização ou vivência interior e despertante nos outros...
Desejaria então ressaltar como o despertar e sintonizar interno espiritual nosso é que é verdadeiramente a base de qualquer conversão, transformação e acção justa e não deve estar dependente de esperanças externas e exageradas nem de excessivas intelectualizações, seguidismos ou divulgações superficiais ou artificiais, despidas do espírito vivo interior, ou da vivência e experiência do que se fala.
Em Agostinho da Silva destacava-se a consciencialização sensível e confiante na Vida, no Todo, na Ordem do Universo, no Divino, no Absoluto e que ele em alguma proporção respirava e que em fraternas conversas era comungado e que se multiplicava  nos contactos em rede (telefónica e de moradas...) que logo sugeria animadoramente...
 A sua sincera fé no interior de cada ser, tão poderoso quer por via do Espírito Santo cósmico como guia e inspirador, quer ainda por via da presença do Espírito individual e na valorização da sua imprevisibilidade e criatividade , ainda visível no desenrascanço e no sentimento de fraternidade típicos dos portugueses e de alguns outros povos, tornavam-no num estimulador do dinamismo das almas que o visitavam ou das muitas com quem se correspondia.
Agostinho da Silva era claramente um optimista, um homem confiante nas infinitas capacidades humanas e talvez não o fosse apenas por temperamento próprio e de ser viajante português ou luso-brasileiro (que ainda se notava por vezes no seu sotaque ou jeito de falar) mas também enquanto discípulo do culto do Espírito Santo, sendo quase um espiritual franciscano (tal como Jaime de Magalhães Lima e Jaime Cortesão, este em alguns aspectos seu mestre), discípulo ou adepto de Joaquim de Fiora, para quem a mítica Terceira Idade ou do Espírito Santo se caracterizaria pela capacidade de muitos seres poderem, sem intermediarização, receber a inteligência das escrituras, sondar os mistérios da vida e vivê-los directamente em fraternidade e criatividade, completando assim o Pai e o Filho, e suas eras ou fases na história do Cristianismo, nas quais se dependera mais da letra da Lei e depois do sacerdócio ou intermediarização de Jesus e do seu amor e caridade.
Foram numerosas as ocasiões em que Agostinho dedilhou com arte e originalidade novas interpretações de Joaquim de Fiora e suas doutrinações ou elucubrações do Espírito Santo e da utopia do seu reino, tidas como proféticas e transcreveremos uma completando assim este esboço inicial de uma conferência que, antecedida por uma introdução breve sobre as principais ideias e visões sobre o Espírito ao longo dos tempos, decorreu bem com bastantes pessoas amigas, entre as quais o professor e sábio do Humanismo José Vitorino de Pina Martins e a sub-directora da Biblioteca Nacional Maria Valentina Sul Mendes, especialista dos livros mais antigos portugueses, os incunábulos.
Podemos, para finalizar, sem receios, considerar Agostinho da Silva um instrutor ou guia espiritual em belos passos da sua obra, ao dar ensinamentos e conselhos  para o caminho espiritual, fosse o de se chegar ao espírito e ao Divino, seja à Idade do Espírito Santo, à ilha do Amor de Camões ou ao V Império do Padre António Vieira e de Fernando Pessoa, do qual esclarecerá, que «é o que temos de construir para que todos os homens de todos os povos salvem, juntamente, suas almas e seus corpos, e jamais tenham como Imperador senão sua própria e esclarecida consciência e o que de fundamental chamem Deus, isto é, a Criatividade Absoluta.»
E eis  os últimos textos que partilhamos dos seus ensinamentos espirituais mais luminosos, o primeiro de 1965 sobre a utópica  Era do Espírito Santo profetizada por Joaquim de Fiore: «Foi condenado o Joaquim de Flora, não por ter pregado o império do espírito, nem por ter profetizado a idade em que seria o homem inteiramente livre para a criação, e mais dócil ao sopro inspirador do que desejoso de afirmar a sua vontade, sua iniciativa, seu pioneiro ardor, mas por ter ligado as suas ideias à convicção, logo expressa sem humildade, de que era temporário o Catolicismo e secundária, em face do Espírito, a revelação de Cristo (...)», sem dúvida uma afirmação na época bem herética ou revolucionária...
O segundo,  escrito em 1992, aos 86 anos, numa das suas folhinhas dirigida aos irmãos e irmãs do Bem Comum, base da movimentação luminosa a que aspirava: «principalmente servidores daquilo que são fundamentalmente e atentos à vocação íntima dos outros (...) Teremos preceitos que nos guiem? Decerto: antes de tudo, livremo-nos do supérfluo, não nos deixemos capturar por sentimentos de posse, nem de bens, nem de pessoas, nem de nós próprios – e aqui é muito útil o voto de obediência àqueles ou aquilo que para nós mais alto esteja, pensamento, pessoa, bicho, planta ou até pedra...»
Saibamos pois, nestes tempos de crescente opressão na humanidade do que é natural, fraterno, verdadeiro e divino, manter a ligação com a Tradição Espiritual portuguesa e universal e nela nos inspirarmos e fortalecermos nos grandes embates do fim da era da dominação do império anglo-americano e atlântico, para uma era multipolar voltar de novo a ser a base justa do convívio dos povos e almas...
 
            Harmonia da Terra e da Humanidade com o Cosmos e a Divindade, por Bô Yin Râ.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Um imprevisível testamento anímico-espiritual de Agostinho da Silva. Registo dos últimos encontros.

Uma aproximação à morte de Agostinho da Silva e ao seu testamento anímico.
Extracto de um diário manuscrito meu, o dos anos de 1993-1994, antecedido deste prefácio, escrito na modelar cooperativa Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, tão bem liderada pelo Alfredo Cunhal Sendim, em 5-VIII-2019.
 A vida e morte de cada ser desenrolam-se e completam-se num misto complementar do natural crescer-fluir e do limitar-se pelo que lhe é imposto, gerando-se desse confronto uma vida mais ou menos longa, sofrida, feliz, plena e ainda a qualidade da morte e até da misteriosa vida no além.
Quando alguém alcança uma vida duradoura e criativa podemos dizer que, provavelmente, muitos dos seus projectos da vida foram realizados e que parte assim com a alma relativamente bem desabrochada e com poucas frustrações ou desejos, leve estes consigo ou os deixe entre nós, para outros os cumprirem...
Certamente, o ideal será uma pessoa morrer ou libertar-se do corpo conscientemente, trabalhando e dominando bem a sua mente e alma até aos últimos momentos, algo certamente não muito vulgar nos nossos dias em que tantas doenças (por tantas causas, desde a agroquímica até aos anti-depressivos) apoquentam ou desfiguram as pessoas nos seus últimos anos de vida.
Sabemos que Agostinho da Silva viveu longa, dinâmica e plenamente, de 1906 a 1994, sobretudo em Portugal e Brasil mas passando por muitas terras e locais (em especial da comunidade de língua portuguesa e hispânica), e que considerava ser a verdadeira guerra santa a luta contra o infiel em nós, contra as traições ao nosso próprio ser e missão, contra o que impossibilita as pessoas de serem elas próprias, e que tal é uma batalha constante, uma arte de escaparmos às alienações e massificações da sociedade de consumo, de harmonizarmos potencialidades e possibilidades, o desejável e o realizável, as forças opressivas e as criatividades próprias, as limitações corporais e as forças psico-espirituais, estas últimas destacando-se porque, desenvolvidas ao longo da vida pelos actos, sentimentos e pensamentos, se estão a coalescer e autonomizar num corpo espiritual, que tanto resiste ao enfraquecer do corpo físico como com a morte vai passar para a vida no mundo subtil e espiritual.
Neste sentido de subsistência das nossas forças anímicas é fundamental compreendermos e acompanharmos a evolução nossa e dos outros mais próximos, tendo em conta o que de melhor somos e sabemos, temos e podemos. Ou seja, discernirmos e fortalecermos tanto os projectos e criatividades que deveremos desenvolver nesta vida terrena como ainda que qualidades, valores e núcleos estão mais desenvolvidos, ou merecem mais a nossa atenção, para não só serem aperfeiçoados e partilhados, mas também para continuarem com o nosso Espírito no post-mortem física.
A profundidade do nosso auto-conhecimento, sem falsas modéstias nem ilusões, abrangendo corpo, alma, espírito e cosmos, é então fundamental tanto para a nossa adequada intervenção no mundo (e alguns chamam-lhe missão) como para a nossa sobrevivência post-mortem, pois só por tal constante meditação vamos sabendo quem somos e que impulsões e desejos, forças e realizações temos dentro de nós e que não devemos deixar afogar, soçobrar, face a tantas limitações, violências e obstáculos que a vida moderna em sociedade produz ou causa,  especialmente o capitalismo globalista liderado pela "mentalidade do petrodólar e do imperialismo norte-americano ou oligárquico ", fazendo muito diminuir  o Bem comum ambiental, internacional, nacional e  individual.
                           
Agostinho da Silva sempre foi um lutador e navegador dos antigos, opondo-se às ignorâncias, censuras e ditaduras (e por isso partira de Portugal em 1944 e regressou do Brasil em 1969), crente no melhor dos seres, e afirmou-se como excelente pedagogo e apoiante das almas que o conheciam e consultavam, procurando ajudá-las o melhor possível a encontrarem os seus caminhos e projectos e, sobretudo, a interrelacionarem-se com as pessoas afins, em apoio, estímulo, desabrochamento e união.
E assim melhor desenvolverem o tal Bem comum, externo e interno, para ele muito paradigmatizado na tradição e programa do reino ou idade do Espírito Santo, com raízes em D. Dinis e o séc. XIII dos franciscanos espirituais e do visionário abade Joaquim Fiore, no qual o político-económico já não condicionaria e exploraria tanto as pessoas nem as impediria de serem livres, criativas, fiéis a si próprias e em que o culto do Espírito santo universal, que liga tudo e todos, e que unifica e coroa as distintas religiões, estaria apoiado no espírito individual, de cada um reconhecido e assumido.
Podemos dizer que Agostinho da Silva ao longo da sua vida tão rica de viagens e encontros, publicações e colaborações, desenvolveu amplamente um inteligência não só do intelecto mas também do coração, muito trabalhada ou expandida nos encontros dialogantes ou conversas com que se abria regularmente às pessoas que o procuravam e que, simultaneamente, também o enriqueciam, ao ser confrontado com as cosmovisões e problemas de cada um desses dialogantes...
Se a sua força de vida e de estudo (onde fora sempre excelente aluno) gerara muitas publicações de livros, folhetos e artigos de revistas, além de instituições, centros e cursos, mais ainda brotava da sua capacidade de diálogo criativo, poético, sábio e imprevisível (que durou quase até ao fim da sua vida, como veremos no apontamento do diário), em suma da sua sábia convivialidade, e de cujos sinais ou frutos nos restam os registos das suas entrevistas televisivas, ou por escrito ou em gravação de voz.
Mas certamente será do interior das almas, dos corações espirituais de cada um de nós, que deve brotar a comunhão com ele e a inserção na Tradição espiritual que nos une para enfrentarmos os desafios, por vezes graves, que nos rodeiam, com criatividade e inspiradamente, para o Bem...
Certamente o impossível e ideal registo dos seus últimos diálogos com amigos seria muito valioso, ao ilustrar os seus último frutos sazonados, antes que o enfraquecimento do cérebro o afectasse e diminuísse e a morte o ameaçasse no seu corcel negro, como poetizou Antero de Quental no seu Mors-Amor, claramente um dos seus melhores sonetos, ou mais afirmativo do Amor invencível...
Vamos assim transcrever de um diário o nosso apressado registo de quatro visitas breves a Agostinho da Silva, na sua casa em Lisboa, nas últimas semanas da sua vida terrena.

Diário de 1993-1994:

«16 de Dezembro, Quinta-feira, ida a Lisboa ao lançamento do livro da Dalila Pereira da Costa [uma comum amiga muito querida e que me foi recomendada por ele], na Guimarães Editora.
Visitei Agostinho da Silva, velho capitão do mar alto agora em mar encapelado. Ficou o retrato do cérebro algo afectado...

31 de Dezembro de 1993.
Saúdo o Arcanjo ou Arqueu de 1993: levas muitas mazelas na tua aura: conflagrações aqui, misérias acolá e nós pouco contribuímos para a melhoria da sua aura.

[1994, Fevereiro] Terça, ida a Lisboa. Visito Agostinho da Silva. O velho leão marinho está sentado na sua última lunação. Já não tem rivais à volta a invejarem-no. Pode morrer sozinho, com dignidade. O cérebro lentamente vai-se desagregando, ficam os olhos perfeitos, ora vazios, ora calmos, ora ainda prescrutantes.
Visitara-o há dias, uma semana provavelmente, mas por pouco tempo, pois estava cansado, fraco. Uns dias antes visitara-o também e aí transmitiu-me as forças de “Ter o inteiro Amor na vontade” e “É preciso querer para ser.”
Deu-me como dois mantras, duas iniciações, dois presentes.
"Estás a pedir sabedoria? Duvidas da minha capacidade de transmitir ainda?
Estás a estimular-me? Então toma um presente, acolhe, recebe com amor porque com amor te dou!”
Foi a última conversa com o velho e ilustre professor.

Agora cada vez mais o seu corpo vai-se inclinando, enfraquecendo e ele retirando-se...
Dizem as duas governantes ou mulheres que o têm ajudado nos últimos tempos, como ele acordava todo preocupado com o trabalho, o trabalho....
Sempre foi um grande trabalhador. Há dias, já doente, ainda se inquietava pelo trabalho que se fazia. O Círculo dos Leitores publicou as suas traduções de Virgílio. Li-lhe umas páginas, com ele atento.
Velho capitão-mor, estás-te a libertar.
Longos minutos de mão dada.»
                       

domingo, 4 de agosto de 2019

In-Memoriam de Agostinho da Silva...

Saudar o amigo, o conversador, o utopiano, o discípulo, o mestre, tudo isso pairará sobre esta pequena invocação de Agostinho da Silva, com quem tive a fortuna ou privilégio de conversar muitas vezes no seu apartamento na Travessa do Abarracamento de Peniche: -”O meu amigo...”
Já lá vão mais de trinta anos quando, por indicação do meu irmão mais velho Carlos, como Agostinho da Silva amante do Brasil e também já no além, comecei a visitá-lo com regularidade, dada a proximidade da nossa casa na rua de S. Marçal da sua (embora o meu local de residência se modificasse depois), e sobretudo porque senti uma sintonia de amizade, de busca, de demanda, de cavalaria de amor, de espírito e de universalidade.
Na verdade, todos os que conheceram mais calmamente Agostinho reconheceram nele um mestre da amizade e da conversa pura, onde, qual capitão de barca, estava sempre a velejar de acordo com os ventos subtis que levavam qualquer conversa por alturas e paragens inesperadas, sempre nutridas por mãos de experiência calejadas, e um coração confiante, amoroso e alegre e uma cabeça culta, informada, sabendo adaptar-se a qualquer resposta ou proposta criativamente.
                    
 Assim, após uma 1ª incursão inesperada à Índia, numa viagem de ida e volta por terra, parti em 1979 de novo para lá então já munido por Agostinho da Silva dos nomes dos seus amigos, e encarregado de saber das suas necessidades, amigos que eram dos últimos bastiões da cultura portuguesa em Goa. Vim deste modo a contactá-los e a ouvir a sua sabedoria e os seus queixumes saudosos duma mátria que os abandonara, forçada é certo: Renato de Sá e o Centro de Cultura Portuguesa, o dr. Rangel director do Clube Vasco da Gama, os responsáveis pelo Instituto Meneses Bragança, e ainda o Padre Alberto Mendonça e, finalmente, o subtil e beatífico jornalista António de Meneses,vindo depois a transmitir a Agostinho as impressões e resultados dessa estadia rica dum ano na Índia.
Com efeito é de realçar o interesse universalista e multicultural constante de Agostinho, (formado nas escolas de Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Hernâni Cidade e António Sérgio, e com um percurso original de pedagogo em Portugal e no Brasil), com ênfase na comunidade dos povos da língua portuguesa, nomeadamente Brasil, Timor, ilha de Moçambique e Goa, sendo a missão que sentia atribuída a tal comunidade e povos, conforme uma das Cartas Várias de 1986, a alta função de «guiarem o mundo ao reconhecimento da sua verdadeira essência: a do espírito na matéria esplendendo».
Todavia, na Carta do mês seguinte confessa: «guiá-los ao reino de Deus, o que já de resto levantaria outras dificuldades quanto por exemplo, à concepção de Deus, ou até ao aceitar da ideia». Daí que, a propósito destes objectivos de ecumenismo, de estudos comparativos e de práticas espirituais, se desse conta cedo, muito pioneiramente, por exemplo, já em 1961, em plena imersão no Brasil, de 1944 a 1964, que: «de qualquer modo, pouco se fez quanto à teologia do Espírito Santo, em si própria, e nas ligações que parecem existir com atitudes como as do Tao ou as do Zen; talvez neste ponto o estudo teológico levasse a entender melhor a facilidade e a fecundidade das ligações dos portugueses dos Descobrimentos com as civilizações do Oriente e dessa base de partida para que realmente se unissem as duas formas de comportamento no mundo».
Eram os desejos, ideais e sonhos de Agostinho da Silva da continuidade e aprofundamento das primícias do universalismo algo dinamizado por alguns portugueses a partir do séc. XV, correndo por entre as veias e as palavras, os actos e as conversas (1) sobretudo duns tanto amigos, cultores da Língua, ou mesmo grande Alma Portuguesa, e da Prisca Teologia ou Filosofia Perene, do Espírito Santo, da Fraternidade dos seres, religiões, povos e civilizações.
 E anos depois, no momento máximo da missão expansiva de Agostinho da Silva, ele próprio contabilizando primeiro em 500 e depois em 700 os que recebiam as suas periódicas folhinhas, os Amigos do Bem Comum, capazes de abanar tanta sonolência e indiferença e de lançar as bases ou impulsos duma quase revolução convivial que transformasse as pessoas e desvendasse uma das tradições mais especiais de Portugal, a do imprevisível Espírito santo, criança pura, liberdade responsável, comunhão, razão entusiasmada e ligação ao Divino mais forte em nós: «Crente é pouco/ sê-te Deus/ e para o nada que é tudo/ inventa caminhos teus.»...
Quiseram os fados que muitas vezes dialogasse com Agostinho da Silva, que algumas vezes os acompanhasse em saídas da sua torre de vigia na travessa do Abarracamento de Peniche, nº7, onde vivia com uma bela vista sobre o Tejo e o casario de Lisboa, rodeado dos seus livros e gatos, dum quadro com os nós da Marinha, e da amizade e amor de Violante, vizinha do lado, e duma ajudante, a Manuela, num ambiente marcadamente franciscano, tendência que estava na medula do seu ser, numa linha que ele reconhecia ser a de Portugal, e desenvolvida no séc. XIII com os franciscanos espirituais e os sonhos de Joaquim de Fiore do reino do Espírito Santo e que certamente também Jaime Cortesão, pai da sua primeira mulher, lhe transmitiu.
Aí recebia diariamente as pessoas ouvindo os seus problemas, dúvidas e anseios e, logo estabelecendo ligações, contactos e projectos. Assim vim a conhecer Raul Traveira, António Quadros, José Flórido, Aldegice Machado da Rosa, Santiago Naud, Dalila Pereira da Costa, Afonso Botelho, Barrilaro Ruas, Branca, Raposo Nunes, Nanda Lopes e outros. Simultaneamente, os diálogos na linha universalista da tradição espiritual portuguesa criavam clarificações, impulsos e interelações com todos estes e a pensadores e utopianos anteriores.
Certamente que nunca se considerava um mestre espiritual, e evitava mesmo práticas mais confessionais ou meditativas, embora reconhecesse que: «É-se religioso porque se afirma que, apesar de quanto separa, se põe acima de tudo, como valor, a unidade, se repele a divisão e se expressa o desejo supremo de fusão no Uno. Uno anterior à rebelião do anjo, com Deus e o Diabo, o Bem e o mal, o Ser e o não-Ser; Uno de que qualquer conceito é já limitação e a que nem sequer se pode atribuir existência, porquanto já são estas ideias de sujeito e objecto; é para este alvo do além de tudo que todas as flechas religiosas se dirigem; e nunca saberemos quando o atingem: porque o alcançá-lo necessariamente se exprime no silêncio». Por outro lado, mais horizontalmente, afirmou a sua ligação especial a um dos veios da espiritualidade afro-brasileira, o candomblé, e ao Zen, do Japão, por onde esteve uns meses sem que saibamos quase nada do que aí sentiu, viveu, pensou...
Nas conversas preferia deixar as rédeas dos nossos cavalos psíquicos encaminharem-nos em fulgurações de pensamentos sentidos, intuições vislumbradas, numa comunhão de corações e de forças, em diálogos por mim frequentemente puxados para os aspectos mais místicos e espirituais.
Nos finais dos anos 80 e começo 90 as suas cartas manuscritas circulavam então por umas centenas de pessoas (2) e antevia-se a possibilidade de se criarem alguns momentos de encontros colectivos que pudessem resultar quer num maior aprofundamento e influência da tradição do Espírito Santo, que se ia tornando talvez a coroação chave do seu pensamento, quer em vários tipos de reflexões e trabalhos culturais e educativos originais.
Oiçamo-lo, em Maio de 1990: «Numa espécie de simples e breve bilhete direi aos amigos que finalmente percebi, e decidido, que deverei dedicar os próximos tempos a suscitar a criação de lugares de fraterna conversa dos assuntos levantados no culto do Divino do séc. XIII, os de teologia, ou metafísica, como queiram, os do tratamento da criança,...».
Em Dezembro de 1991 anuncia «o Fundo Comum de El-Rei Dom Dinis, o início de um depósito destinado a fornecer o estímulo que mais conveniente for considerado para que se desenvolvam estudos e experiências, do que foi ideologia e ideal do povo português no século XIII, com os seguintes pontos essenciais; um, a que podemos chamar religioso ou místico ou filosófico, em que haveria a procura de um fundamental do mundo que fosse, a um tempo, físico e metafísico, universal e particular, libertador e disciplinador...»
Todavia, estes seus projectos, devido a certos envolvimentos de pessoas mais públicas ou políticas, e a acontecimentos, tal como  o dinheiro do fundo passar a premiar teses universitárias, acabaram por não proporcionar os encontros dum verdadeiro grupo de amigos ou discípulos que discutissem e aprofundassem os veios da tradição, os espinhos dos problemas, as qualidades e desafios contemporâneos, unidos na amizade e no magistério ou intuições de Agostinho da Silva.
Com a sua morte, partiu exteriormente o amigo, mas conserva-se certamente no interior a sua presença bem disposta e confiante , tal como ele próprio nos diz nesta sua sábia quadra: «Jamais perdi um amigo/Só a morte mo levou/E vivo o deu ao Eterno/E vivo em mim o deixou».
E se algumas iniciativas de estudo, publicações e sobretudo colóquios de divulgação do seu pensamento e mensagem têm sido realizados, nunca alcançaram, por diversas causas, uma representatividade ou veracidade plenamente espelhante da profundidade ou potencialidades da sua gnose e daqueles com quem ele mais dialogava. Restam-nos porém, além das cartas e gravações que possuímos, as Obras completas que têm sido publicadas com regularidade (e estão sair agora em 2019-2020 nova publicações com inéditos) divulgando, as muitas facetas do pensador, professor, profeta (certamente, em alguns aspectos mais um vero provocador), amigo e mestre.
Tendo sido durante três anos director e transformador do almanaque Borda d’Água, no ano de 2006, ano do centenário do nascimento de Agostinho da Silva, escolhi doze quadras suas para os doze meses e signos, interligando assim indissoluvelmente um filósofo ou mestre do Espírito Santo com um Almanaque que de algum modo partilhava alguns arquétipos da sabedoria da sua gente rural e simples, assim unindo céu subtil, onde Agostinho está plenamente, e a terra onde nós os vivos fisicamente ainda estamos em peregrinação. Não houve porém continuidade no Almanaque, além dos três a nos que pude transformá-lo e enriquecê-lo.
Relembrando, como ele disse, como sempre optimisticamente, que: «cada um de nós é um ente extraordinário, com lugar no céu das ideias; se nos soubermos lavar da lama que se nos pegou quando aparecemos na terra, seremos capazes de nos desenvolver, de reencontrar o que em nós é extraordinário, e transformaremos o mundo», ou ainda «cada vez olhando mais nos homens sua centelha divina e seu direito ao céu...», para finalizar esta mensagem escrita inicialmente para o In-Memoriam de Agostinho da Silva, e agora revista e modificada já no ano de 2019, desejamos que mais algumas almas vão despertando para uma vida mais fraterna, harmoniosa, criativa e espiritual ou mesmo para a Unidade Divina, estimuladas pelas ideias e exemplo de Agostinho.
E que trabalhemos com mais dinamismo e cooperação pelo aperfeiçoamento da Humanidade, na comunhão do Espírito Santo, que pode ser visto ora como a corrente de Amor inteligente substante a todo o Cosmos e que nos inspira a interelacionar fraterna e sabiamente com os outros ora que nos religa  ao nosso Espírito santo individual interno, como fraternamente aos dos outros seres, e assim nos alinha,  atrai e eleva mais à Luz e a Deus.

Notas:
1 «A palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior.»

2 «Vos iremos em folhinhas destas, dando as notícias do que dentro de vós tem de vir para que vosso seja: calmamente, alegremente, como as crianças brincaremos, nos realizaremos em vós e em nós vos realizaremos a todos. Gratos à vida e por ela a tudo gratificando».

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Do Trânsito das Religiões à Religião Planetária Espiritual e do Amor. Agostinho da Silva, um elo.

                                         
Na já longa história da Humanidade tem-se acentuado nestes últimos tempos a crescente necessidade da passagem de uma religiosidade dogmática e exclusivista, com consequências separatistas, dualistas e violentas, para uma coexistência mais dialogante e harmoniosa entre os vários credos e culturas a partir da consciencialização e o reconhecimento dos princípios, seres e energias, quer individuais quer universais, que estão por detrás ou subjazem as crenças e dogmas, práticas e realizações psico-espirituais dos diversos povos. 
Talvez possamos referir no Ocidente alguns humanistas dos sécs. XV e XVI como precursores desta importante transformação ou transmutação do visionamento religioso e deles evocar  Pico della Mirandola (defendendo as suas 900 Teses baseadas nas tradições caldaicas, gregas, árabes, cristãs, indianas), Erasmo de Roterdão (com uma vasta obra pacifista e desmistificadora de estultas aparências e superstições, bem como defensora da religião do espírito e da caridade), Marsilio Ficino, rastreando muito uma Prisca theologia, uma revelação divina que já vinha de Zoroastro e de Hermes, Giordano Bruno (1548-1600), muito pioneiro e ousado não só na sua aproximação ao infinito material e espiritual como também à subtil centelha divina do Espírito em nós, Thomas More (apresentando uma religião natural universal, na Utopia), ou ainda o francês Guillaume Budé (1467-1540) com o seu Trânsito do Helenismo ao Cristianismo, que de certo modo serve de mote para este artigo escrito (primeiro como uma epístola dedicada a Agostinho da Silva e aos leitores da revista Nova Águia, nº 3, depois revisto a acrescentado para o Spiritus Site e finalmente melhorado e finalizado neste texto para o blogue. 
Já nos séculos XIX  e XX poderíamos apontar ou referir, por exemplo, na Rússia, os seus sucessivos pensadores e espirituais que desenvolveram a Hagia Sophia, a santa Sabedoria, ou o espírito do Amor presente em Jesus, como a intermediarização entre a Divindade e a Humanidade, tais como Tolstoi, Soloviev, e em especial Berdiaef, com a sua Academia Livre de Cultura Espiritual, expulso com 160 pensadores no barco que os leva para o exílio da Rússia em 1923, e que escreverápor exemplo: «A liberdade é um dever e não um direito, algo que se afirma e conquista. A aristocracia é um princípio espiritual.» Poderíamos ainda referir a algo mistagógica Helena Petrovna Blavatsky, a co-fundadora da Sociedade Teosófica e em seguida o casal Nicholai e Helena Roerich, estes transmitindo o Agni Yoga e um extenso epistolário, além de milhares de pinturas. 
                                                    
Nos nossos dias há cada vez mais pessoas a sentirem  a necessidade da passagem da unilateralidade e competitividade das religiões para a coexistência pacífica e dialogante no seio, ou sob as bênçãos, da magna Religião Perene do Espírito. 
Não é difícil descortinarmos ou hierarquizarmos os principais factores que contribuem (apesar dos retrocessos pelos fanatismos e até diabolismos) para a crescente  unificação espiritual, tal como as populações multi-religiosas, os casamentos entre pessoas de credos  diversos, os frequentes encontros de diálogo ou oração juntando fiéis das diferentes tradições e, finalmente, os contributos da comparatividade religiosa, da psicologia transpessoal, do esoterismo ou esotericismo e da mística, por vezes através de seres mais carismáticos ou mais aptos a compreenderem, realizarem e a usarem as terminologias próprias, mas afins, de cada uma delas.
Um meio parece porém elevar-se sobre os demais na sua urgência e magnitude de alcance: a publicação de um ou mais manuais de ensino religioso, mostrando ou ensinando desde cedo às criança como as realidades mais elevadas são as mesmas, ainda que abordadas, descritas ou denominadas diferentemente, e que os ritos, práticas ou experiências são também comuns e idênticos, diferenciando-se apenas nas formas e preceitos exteriores, pois as fundamentações são semelhantes, quer de origem telúrica, histórica ou celestial, quer por razões corporais, anímicas ou espirituais.
É  importante que qualquer pessoa que sinta vontade de participar num culto de uma religião possa fazê-lo sem receios ou repulsões,  compreendendo o que se está a passar e sendo bem acolhida, participando assim consciente e com gratidão no acto ou cerimónia de elevação energética e invocação de valores, seres e níveis espirituais, e sobretudo da Divindade, que é a Fonte de todos eles. E tal passa-se em comunhão com os mestres fundadores e os seus discípulos, mestres ou santos, ou seja, a Igreja, Assembleia ou Fraternidade enquanto participação numa presença viva, num corpo subtil que anima ou pode inspirar todos os que, no templo ou na comunidade  se encontram, para oração, meditação, adoração ou
partilha. 
Importante nesta participação mais lúcida e despertante será a pessoa sentir-se à vontade ou livre e universal na sua religiosidade ou espiritualidade, pois ainda que seja por nascimento, tradição ou opção de ser membro de qualquer uma das religiões, essa pessoa não ficará fechada nas separatividades e exclusividades, antes comunga na Essência comum espiritual, presente em todos os seres e religiões, que se torna mais sensível ou se manifesta na experiência da oração, do culto, da paz, da luz, da palavra e, portanto da comunhão com o já referido corpo místico já não só da Igreja particular mas da Igreja ou Congregação da Humanidade constituído pelas grandes almas, santos e santas, mestres ou guias, e todos os fiéis de amor…
Neste caminho ascensional da Humanidade, tal como é descrito na Divina Comédia, no de Dante ao Paraíso, conduzido pela divina Sabedoria ou Beatriz, destacaram-se na segunda metade do séc. XX em Portugal algumas individualidades, tais como Dalila Pereira da Costa e Agostinho da Silva,   e iremos evocar alguns aspectos dos ensinamentos de Agostinho Silva que poderão impulsionar-nos a compreender e participar mais luminosamente nesta passagem ou trânsito e desafio iniciático dos nossos tempos. 
Tendo conversado regularmente durante vários anos com este notável estimulador de consciências despertas e fraternas, relembro antes de mais algo essencial nele: «a palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior».
Em verdade, fui testemunhando nas muitas conversas que travámos a sua universalidade, ouvindo-o defender a unidade espiritual das religiões, meras estradas para o mesmo cimo da montanha de uma vida na terra valiosamente trabalhada, sentida e amada nas suas miudezas e plenificada com a ligação sentida com Deus, o Espírito ou o Todo, ou o que lhe quisermos chamar, conforme ele nos diz numa das suas cartinhas em 1987: «que ideologias e filosofias cedam logo seu lugar à sabedoria que lhes é rainha; e que a contemplação das essências, qualquer que seja o nome que se lhes dê, jamais faça perder a atenção ao fenómeno por mais insignificante que pareça»…
Claro que Agostinho da Silva tinha dentro da sua ampla e fundamentada universalidade e imprevisibilidade criativa certas afinidades electivas, podendo-se até destrinçar ou deslindar veios que o alimentavam e que resultavam tanto de níveis genéticos, geográficos e culturais como também da arcânica (ou misteriosa…) génese da sua individualidade e da sua viagem de espírito descido à terra e depois navegando ou bolinando (expressão que ele tanto gostava…) nos vários mares e continentes.

Ao considerarmos essas forças anímicas e culturais que recebeu familiarmente e já estudante jovem nos contactos com o seu professor, o genial escritor e orador, filósofo e matemático Leonardo Coimbra (ou com o vate Pascoaes, o historiador Jaime Cortesão e outros membros da Renascença Portuguesa, reunidos à volta da revista A  Águia), e as que desenvolveu enquanto português das Sete Partidas, e em especial na sua profunda e longa vivência do Brasil, é notório que ele é um elo importante da Tradição Espiritual ou Perene em Portugal, um anel da corrente luminosa que atravessa como um fio as contas do rosário da nossa história, vindo na esteira espumosa ou ardente, por exemplo, de Damião de Goes, Camões, Antero de Quental e de Fernando Pessoa, dinamizando espiritualmente e fazendo avançar mais umas milhas (os que com eles e as suas obras sintonizarem) a travessia no Oceano que nos leva de alguns modos das trevas à luz, do sofrimento ao amor ou mesmo felicidade. 
Ora se Antero de Quental encontrara no Budismo e na Filosofia transcendentalista contributos para a sua reflexão sobre o facto religioso, vendo-o já não como ligado a dogmas infundados e a uma realidade social limitadora e decadente ou só devocional, mas antes  como meio de libertação social, filosófica, ética e consciencial, isso permitiu-lhe propor tanto um tipo de Budismo coroando o Helenismo, como um Cristianismo de profundidade interior mística, ou ainda um puro espiritualismo supra-religioso.
Será com Fernando Pessoa que encontramos mais funda a demanda ocultista e esotérica, tão ligada às religiões na busca do conhecimento espiritual e divino, e que no seu caso passa, na viajem evolutiva da sua vida, do paganismo transcendental para a gnose iniciática, onde se afirma oposto a todas as religiões organizadas, embora em alguns textos de teorização do V Império ou da Idade de Ouro caracterize-o como a reunificação das várias Religiões, partes dispersas do corpo de Osíris. A sua excessiva atracção intelectual por profecias e mitos, e pelas teorias das ordens de Magia do séc. XIX, em detrimento da pura realização interior espiritual,  e logo o seu envolvimento com algumas energias mais complexas, ineficazes ou ilusórias, num meio ainda bastante limitado, a sua frustração amorosa e o seu gostar do vinho, acabaram por acarretar uma morte precoce, não nos deixando o que se poderia esperar do seu génio e fundo labor de pensamento, crença e escrita, do qual os sucessivos inéditos publicados deram bastante conta…
Já Agostinho da Silva, consciente da Tradição Perene, mais prático, viajante e amoroso, viveu e aprofundou bastante prática e convivialmente a  vida relacional e espiritual humana e em certos aspectos com bastante originalidade, nomeadamente na demanda do trânsito para a religião universal do Espírito;  em primeiro, reflectindo filosófico-teologicamente o misterioso Espírito Santo, na esteira de el-rei Dom Dinis e Isabel de Aragão, Joaquim de Fiora, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, e de certo modo suplantando-os, e deixando-nos várias ideias valiosas neste campo, tal quando escreve em Outubro de 1986 sobre a missão da Comunidade dos Povos da Língua Portuguesa: «guiarem o mundo ao reconhecimento da sua verdadeira essência: a do espírito na matéria esplendendo», acrescentando: «é o Espírito o traço comum de sujeito e objecto, por onde se estabelece todo o diálogo; é o Espírito a fonte indefinível de onde a vida pode fluir sob quaisquer formas, aquelas que eu conheço e venero ou não, e aquelas de que nem sequer posso ter uma ideia; é o Espírito que anima os que estão comigo e os meus adversários; foi o Espírito quem me trouxe o Cristo e quem a outros trouxe Buda, Maomé e Lau-Tseu; foi o Espírito quem me deu Eckhart (1260-1328) e quem me deu a geometria analítica; nele se reconciliam Aristóteles e Platão…».

 Esta visão do Espírito, neste passo que não é a de outros textos ou diálogos mas a complementariza, é a da linha do Advaita Vedanta ou do Zen, não reconhecedora do espírito individual mas realçando o universal e único Uno, e é audaciosamente projectada  terrenamente por Agostinho da Silva para algo quase impossível nos nossos dias, tão manipulados e de compadrios, mas tão evidente e necessário: «uma política sem partidos, nem sequer o único, é a condição indispensável para que o reino se instaure…»
Talvez algum excesso de optimismo quando viu próximo o reino ou era do Espírito Santo, para o que contribuía tanto o seu franciscanismo (recebida em parte de Jaime Cortesão, que tanto valorizava a vivência simples de S. Francisco de Assis e dos espirituais que o seguiram) como os impulsos fraternos brasileiros, alguns sincretizados no candomblé, isto é, o que
nas tradições dos pagés índios foi transplantado e enxertado  dos cristãos e das religiões ancestrais africanas, das quais aliás gostava de narrar um conto cosmogónico e bem espiritual de uma tribo  do Ruanda no qual Deus, para evitar problemas, deixava uma parte ou imagem de si dentro do coração de cada homem e mulher, a qual deveriam consultar e desenvolver, numa “solução de tornar-se ao mesmo tempo transcendente e imanente (...) ou seja, que o Deus único, pode aparecer de várias maneiras, ser olhado com vários atributos e ter soluções diversas perante um problema».
Da sua ampla transversalidade e abertura religiosa brota já em 1971 o desejo da criação de Cadernos Teológicos, ou talvez melhor Religiosos, afirmando: «não sou mais do que aprendiz de religião, uma espécie de catecúmeno, embora com duas convicções: uma, a central, alicerçada, além de tudo, pelo que meditei no candomblé da casa da grande Olga de Alaketu, e que é a da Fé que me liga às crenças joaquimitas e, portanto, às mais puras dos nossos povos de origem portuguesa ou aos portugueses aculturados, a segunda periférica, a de procurá-la e encontrá-la em todas as religiões, quer as do Deus ausente, quer as do Deus presente». 

Original a primeira afirmação: a de ter sido com uma mãe de santo. Olga de Alaketu, que Agostinho, europeu e se aculturando no Brasil, alicerçou mais fundo a fé da vinda do Espírito Santo sonhada e anunciada por Joaquim de Fiora e seus sucessores joaquimistas.  A segunda, quanto ao Deus ausente, refere a sua abertura e afinidade com o Taoísmo e o Budismo Zen, que o auxiliavam não só a manter-se no desprendimento e num certo vazio algo franciscano como a sentir que as descobertas da Física moderna confirmavam os dados dos místicos, dos iniciados ou da gente simples de coração, estes referidos na expressão das religiões do Deus presente, não só nos altares ou nas crenças, mas sobretudo nos corações e espíritos humanos. 
Relembremos ainda que, nesta linha ecuménica ou de trânsito para a Unidade das Religiões na Religião do Espírito e do Amor, Agostinho da Silva consagrou três dos seus Cadernos de Divulgação aos Colóquios de Erasmo, à Utopia de Thomas More, e à Vida de Vivekananda, o discípulo do místico Ramakrishna (1883-1866), um grande vivenciador da unidade das religiões, da Divindade única que se manifesta sob diversas formas, e acerca de quem já escrevi neste blogue, dado o conhecimento directo que obti dele nas minhas estadias na Índia.
                                      
Aliás Agostinho da Silva em 1986, confirmando a importância da sua sintonia com Ramakrishna (como eu vim anos depois, em 1995, relembrar numa palestra em Calcutá, no Instituto de Cultura de Ramakrishna), escrevia: «ando muito pelas linhas de pensamento ou sentimento de um Ramakrishna ou de um Espinosa, sua contrapartida filosófica, de cristãos, maometanos, animistas e budistas ou hinduístas, que a todos desejaria abraçar naquele catolicismo, naquele universalismo».
Oiçamo-lo então ainda um pouco mais neste tema tão actual da religião "universal" (que é o significado etimológico de "católico"...), a do Espírito, sobretudo face aos surtos ocasionais de violência religiosa-racial ou a actos ou afirmações infantis, irresponsáveis ou anti-religiosas de alguns representantes das religiões, da política ou dos media: «Gosto de pensar um Portugal historicamente monoteísta e que estivesse frequentemente procurando o essencial do que já foi ou é, hebraico, cristão e muçulmano; mais ainda que pusesse, objectivo, o que as três religiões têm em comum; que o comparasse em seguida com toda a variedade oriental, africana e índia, e ainda aqui isolasse o comum, para não falarmos já de gregos ou romanos; que fizesse o esforço de sondar ateísmos, e que acabasse por ser o mistério e o silêncio que ficam.» 

É o trabalho das novas gerações, sem guerra santa senão aquela contra os nossos defeitos ou vícios, contra o infiel interior, ou contra o que nos torna infiéis à nossa vocação e missão de individuação espiritual, de seres de luz e de amor, de sermos nós próprios, como ele bem poetizou numa quadra:
 
Não peço a Deus nada alheio
com o que em mim há me vou,
só lhe rogo bem humilde
me faça ser o que sou.

Acerca desta ideia de “Fiel do Amor”, a si próprio, ao espírito lembremo-nos do que escreveu em 1-7-87: «os infiéis que hoje importam são os que, pelas restrições económicas, educacionais ou políticas ou filosóficas, são condenados por toda a vida à infidelidade à sua própria vocação, àquilo de único a que vieram ao mundo, e afinal morrem sem ter vivido. Culpados somos todos se nos entretivermos com festas de pretérito: antecipemos as do futuro, que mais para isso somos portugueses e todos os que herdarem ou herdaram». 
Talvez que sob a sua orientação, nos seus últimos anos de vida, se pudessem ter feito alguns encontros ecuménicos, aprofundamentos das realizações e doutrinas religiosas ou mesmo festas do futuro, mas por diversas razões tal não aconteceu com a dimensão necessária, ainda que ocorressem conferências, encontros, diálogos bem luminosos.
Mas mesmo já em 1964-65, num artigo da revista Espiral, ele estava consciente de que «de qualquer modo, pouco se fez quanto  à teologia do Espírito Santo, em si própria, e nas ligações que parecem existir com atitudes como as do Tao ou as do Zen; talvez neste ponto o estudo teológico levasse a entender melhor a facilidade e a fecundidade das ligações dos portugueses dos Descobrimentos com as civilizações do Oriente e desse base de partida para que realmente se unissem as duas formas de comportamento no mundo. Por outro lado, se afastariam muitas das incompreensões de [o Concílio de] Trento, muitos dos irmãos separados se poderiam reunir, muita hostil catequese se poderia pôr de parte». 

A actualidade destes escritos de Agostinho da Silva é tão evidente que custa vermos  festividades do Espírito Santo demasiado marcadas pelo álcool ou a comida desregrada, ou as exteriorizações cerimoniais e sentimentais, o que manifesta a ausência ainda dos tais estudos teológicos ou sobretudo da sua divulgação e assimilação pelo público geral, como a dos encontros de aprofundamento espiritual que ele sonhava (e para o qual escreveu tantas cartinhas aos amigos), dinamizados por «uma só ordem de todas as religiões, uma ordem fundada nas três liberdades tradicionais e essenciais de não possuir coisas, de não possuir pessoas e de não possuir a si próprio. Os três votos como diríamos. Esta Ordem nova para o mundo terá que tomar a si os três grandes jogos do universo: 1º criar beleza. 2º servir. 3º rezar, o que significa que todo o melhor do pensamento se concentrará na meditação do Espírito e na instauração do seu Reino (...) Nenhum instrumento de Quinto Império o dará sem oração. Só por ela virá esse império estendido a todas as nações do mundo, a todas elas revelando o espírito». 
Anotemos a sintonia dupla com  Antero de Quental, tanto na sua crítica ao redutor e opressivo Concilio de Trento, como também na ideação dum Ordem de contemplativos, por Antero de Quental, denominada de Mateiros, em cuja prática estão os sempre actuais ou necessários desprendimento,  desapego e simplicidade face à crise de desorientação e reorientação económica e monetária, ética e espiritual em que a humanidade entrou nos últimos anos, e cada vez mais desde que o império oligárquico do dólar e do Ocidente entrou em guerra com os Estados que preferem a multipolaridade à Nova Ordem Mundial globalista liderada pelo anglo-americanos e seus alinhados e vendidos coligados.
Apontados assim alguns dos materiais de construção (para que não seja só de sonho e letras…) da ponte que muitos desejam ou anseiam ver construída e cruzada não só por ousados peregrinos ou heterodoxos místicos, ou religiosos já universalistas mas também por povos livres nas suas tradições e escolhas, e famílias alegres e despreocupadas ou curiosas, ou os respeitadores viajantes ou peregrinos, como é cada ser nesta vida, resta-nos relançar o apelo a que cada vez mais se compreenda, estude e aprofunde a comparatividade de religiões e das práticas espirituais, das compreensões ambientalistas e dos preceitos éticos, de forma a que surjam livros adoptados nas escolas, talvez até sob a égide da UNESCO e das Nações Unidas, cujo título poderia ser Manual da Unidade das Religiões, Manual da Religião (ou religiosidade) Planetária, Manuel da Educação Religiosa, Manual da religiosidade da Terra, ou o que vier a ser...

Eis um convite interior e exterior aos mais conscientes da Unidade do Espírito ou com asas ou penas (e corações…) mais flamejantes em direcção à Unicidade Divina e da Verdade.
Realização espiritual.  Pintura de Bô Yin Râ.