quarta-feira, 7 de agosto de 2019

As "Quadras inéditas" de Agostinho da Silva. Uma hermenêutica espiritual, por Pedro Teixeira da Mota.

As Quadras de Agostinho Silva podem ter sido compostas tanto num cultivar da tradição popular ou até na esteira de Fernando Pessoa, como apenas como um brotar do seu ser e por uma época, a década de 80, do seu percurso biográfico, já com setenta e tal anos, em que lhe foi natural ou privilegiou tal estilo mais concentrado e aforístico.
                                            

Ou então, como ele nos diz, aduzindo antes a musa ou voz da deusa, a inspiração-intuição, na compilação intitulada Quadras inéditas, publicada em 1990 na Ulmeiro do seu amigo José Antunes Ribeiro: «Acordo e sai um poema/ Alguém mo sonhou de noite/ Só preciso não ser nada/ Para que a musa se afoite.»
As quadras de Agostinho da Silva constituem no seu todo inegavelmente o núcleo individual de maior sabedoria escrito em quadras em Portugal até aos nossos dias, sem com isso desconsiderarmos as centenas ou milhares, populares, anónimas, de grande beleza, amor, sabedoria, etnografia e rima e que graças a pacientes folcloristas dos inícios do séc. XX foram recolhidas e preservadas.
Merecem a grande maioria das quadras de Agostinho da Silva a leitura e meditação nossa ou mesmo decorá-las e assimilá-las com regularidade, quais mantras, e deviam também estimular-nos a criarmos as nossas próprias. Para além de serem interpretadas, o que pouco se fez até agora talvez por falta de espirituais agostinianos...
Oiçamos então duas delas bem valiosas:

                      
        Crente é pouco,
   sê-te Deus
                        e para o nada que é tudo
                        inventa caminhos teus. 

                        Entende tudo no mundo
                        quem aposta em entender
                        e por si cria a vida
                        que sobrevive ao morrer.

A quadra inicial apela à nossa passagem de mero crente, por exemplo, em Deus, para o estado consciencial ora de afirmarmos mais Deus em nós, ora de termos Deus mais afirmado ou firme em nós. Poderá mesmo o "sê-te Deus", significar "torna-te para ti Deus", "sê Deus em ti".
O primeiro verso é de uma profundidade e riqueza imensa mas, como muito deste nível, pode ser menosprezado por comentadores, ou passar mesmo desapercebido aos agostinianos e suas teses e comunicações.
Ser apenas crente é pouco, é vulgar: não basta acreditar, é necessário conhecer-se ou ser. Já na Antiguidade grega havia essa
dualidade entre a pistis e a gnosis, a fé e o conhecimento, considerando-se a 1ª via acessível a todos, e a 2ª a mais exigente, ao implicar um caminhar espiritual ou então uma súbita intuição ou iluminação do espírito, do Divino, da Unidade.  
Ambas foram consideradas dentro das religiões como vias de salvação, embora sem nunca se afirmar que apenas salvariam disto e daquilo mas que de modo algum levavam ao que se entende por salvação em termos de união a Deus ou de entrada nos níveis supra-paraísos psíquicos ou dos fiéis.
Quanto ao "sê-te Deus", encontramos em tal uma injunção de realização espiritual muito poderosa, quem sabe se expressa por estas palavras pela primeira vez em Portugal e que tem até ressonâncias com o Esto, Sê, 2ª pessoa  do singular do imperativo em grego, com uso iniciático nos Mistérios gregos, tal como nos descreveu Plutarco, nessa civilização grega tão apreciada e estudada por Agostinho da Silva...
                      
                                   
Partenon, visto pelo mestre alemão Bô Yin Râ
Usualmente diz-se ou dir-se-ia: "Sê Deus". Mas tal levanta uma certa ambiguidade, pois se tomada à letra é uma grande arrogância e heresia, mas já tomada no sentido de "seres Deus para ti mesmo", pode-se compreender no sentido tanto de seres divino no que fazes ou és, como também no "sê tu Deus", sê mais divino na tua vida.
Tanto o "sê-te Deus" como o "sê tu Deus" são mantras muito poderosos, e quando os meditamos vemos que o 1º é mais interiorizante e limitado e o 2º mais abrangente e ilimitado, gerando a possibilidade perigosa de se poder estar a sugerir ao eu-ego para se assumir como Deus e exercer tal sobre os outros, o que pode dar maus resultados...
O "Sê-te", escolhido por Agostinho da Silva evita tais perigos, e sugere não  nos deixarmos levar pelas circunstâncias e influência exteriores, mas sermos nós próprios: "sê o teu ser único, essencial, espiritual, divino", recomendação esta que será dedilhada frequentemente, constituindo verdadeiramente o eixo do mundo para Agostinho da Silva...
- Eleva a tua fasquia, e sê-te, sê o Deus que está em ti.
Agostinho da Silva está aqui e agora a dar-nos uma injunção iniciática:
- Desperta, desperta-te, ergue-te, sê-te, isto é, sê tu próprio, sê-te o Espírito Divino que está em ti nos teus níveis mais elevados, sê criatividade, liberdade, amor, plenitude....
                              
 Já a quadra seguinte, que foi associada por Agostinho da Silva à primeira, valoriza bem mais simplesmente mas também profundamente a gnose, ao cantar-nos:
 
          "Entende tudo no mundo
            quem aposta em entender
            e por si cria a vida
            que sobrevive ao morrer." 
 
Uma hermenêutica ou interpretação espiritual  breve dirá que quem tem como lema, mote ou intenção da sua vida o entender, o compreender, o conhecer, firme e perseverantemente, contra tudo e todos, calma mas meditativamente, determinadamente, certamente até na linha do lema de Paracelso, Ad astra per aspera, Aos astros pelas asperezas, Pelas dificuldades às alturas, essa pessoa consegue desenvolver seja o seu corpo espiritual que passa para além da morte física, seja intensificar a irradiação ou vida do espírito imortal, que é o seu próprio ser, agora recriado, renascido, levando-nos para além do repouso em paz sob a tumba, rumo aos mundos de mais luz, de maior proximidade do Sol Primordial Divino...
 
Escrito no dia 6 de Agosto de 2019 na Herdade do Freixo do Meio, Lavre, Montemor-o-novo, onde estive a proferir palestras, a trabalhar agricolamente e a dialogar, a convite do Alfredo Cunhal, adepto forte e fundamentado de Agostinho Silva e dos projectos ligados ao culto ou idade do Espírito Santo...

2 comentários:

Unknown disse...

Excelente análise dessas belas quadras, plenas de sabedoria e profundidade. Bem haja!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças! Uma breve interpretsção espiritual...