O texto inicial deste artigo foi preparado-imaginado para uma conferência acerca de Agostinho da Silva realizada na livraria galeria lisboeta Pessoas e Saberes, no final da segunda década de 90, e completei-o no dia 6 Agosto de 2019, na Herdade do Freixo do Meio, acrescentando várias citações dele.
«Agradecendo a vossa presença, que torna esta conferência numa Ecclesia, uma assembleia, o que é reforçado pelo tema sob o qual ela vai decorrer, O Espírito em Agostinho da Silva,
gostaria antes de mais de saudar o prof. Agostinho, nosso amigo, que
provavelmente onde quer que esteja sentirá algo do que o nosso coração e
alma irradiam, o que, antes de mais, poderá ser a gratidão, bastando
para tal relembrar-nos dele, e nem sequer sendo necessário as circunstâncias e ocasiões
de franco e entusiasmante diálogo, ou quando as suas palavras tiveram
condão confirmador, esclarecedor e iluminador em nós.
Se vamos tratar dum tema complexo, façamo-lo aceitando a ideia repetida e assumida pelo prof. Agostinho de “não limitar o infinito, não definir o inefável”, tal como nos diz também numa quadra: «Dizendo que é só amor/ Fazes Deus menor que Deus/ Cercas o ilimitado/ Dos limites que são teus», e partamos para esta aproximação ao Espírito e ao Divino como uma peregrinação e demanda em comum, constituída pelas duas horas em que dialogaremos a fim de nos tornarmos melhores conhecedores e realizadores do espírito, ou discípulos da sabedoria, amor e verdade.
E nisto seguimos o prof. Agostinho, numa das suas características ou ensinamentos principais: tornarmos a vida conversável, algo a que ele tanto se devotou dinamicamente ao longo da vida, tal como explica nesta instrutiva e bela ideia: «A palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior.»
Mas antes de entrarmos mais detalhadamente no tema relembremos alguns aspectos da sua espiritualidade, tanto mais que houve uma certa desilusão quanto ao modo como foi tratado este tema recentemente na livraria lisboeta Barata, o que me fez oferecer estas palavras, e diria quase sacrificialmente, perante esta valiosa assembleia.
Da espiritualidade de Agostinho da Silva eu ressaltaria antes de tudo a sua capacidade, brotando do seu coração e ser, de dissipar o medo ou as dúvidas que eventualmente envolviam os seus interlocutores, que o procuravam para as conversas que decorriam ora em contos e histórias narradas, ora em diálogos mais socráticos, em que ele abria tanto possibilidades e contactos como portais, vistas e fundos, bem mais vastos dos que as pessoas lobrigavam à chegada à sua casa e que por si mesma também já tinha algo propício a tal, ao estar num dos sete montes de Lisboa, o Príncipe Real, na histórica Travessa do Abarracamento de Peniche, no quarto ou último andar, sem elevador, escada de madeira estreita e empinada, com uma vista espraiada sobre o casario da cidade e o Tejo, e as suas nuvens e ventos.
Realçaria nele também o viver e valorizar muito o serviço, o bem comum, o altruísmo, o saber ascética ou esforçadamente obtido para se poder ajudar ou adorar, chegando mesmo a assinar as cartas dactilografadas e fotocopiadas como "George Agostinho, vosso irmão servidor". Duas quadras suas, e um texto, são neste sentido bem elucidativos: «Que o melhor de meu destino/ me salve a mim e aos meus/ de saber para poder/ não para louvar a Deus.
E que me guarde primeiro/ da vontade de saber/ como coisa que possua/ antes que estrada de ser.»
Se vamos tratar dum tema complexo, façamo-lo aceitando a ideia repetida e assumida pelo prof. Agostinho de “não limitar o infinito, não definir o inefável”, tal como nos diz também numa quadra: «Dizendo que é só amor/ Fazes Deus menor que Deus/ Cercas o ilimitado/ Dos limites que são teus», e partamos para esta aproximação ao Espírito e ao Divino como uma peregrinação e demanda em comum, constituída pelas duas horas em que dialogaremos a fim de nos tornarmos melhores conhecedores e realizadores do espírito, ou discípulos da sabedoria, amor e verdade.
E nisto seguimos o prof. Agostinho, numa das suas características ou ensinamentos principais: tornarmos a vida conversável, algo a que ele tanto se devotou dinamicamente ao longo da vida, tal como explica nesta instrutiva e bela ideia: «A palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior.»
Mas antes de entrarmos mais detalhadamente no tema relembremos alguns aspectos da sua espiritualidade, tanto mais que houve uma certa desilusão quanto ao modo como foi tratado este tema recentemente na livraria lisboeta Barata, o que me fez oferecer estas palavras, e diria quase sacrificialmente, perante esta valiosa assembleia.
Da espiritualidade de Agostinho da Silva eu ressaltaria antes de tudo a sua capacidade, brotando do seu coração e ser, de dissipar o medo ou as dúvidas que eventualmente envolviam os seus interlocutores, que o procuravam para as conversas que decorriam ora em contos e histórias narradas, ora em diálogos mais socráticos, em que ele abria tanto possibilidades e contactos como portais, vistas e fundos, bem mais vastos dos que as pessoas lobrigavam à chegada à sua casa e que por si mesma também já tinha algo propício a tal, ao estar num dos sete montes de Lisboa, o Príncipe Real, na histórica Travessa do Abarracamento de Peniche, no quarto ou último andar, sem elevador, escada de madeira estreita e empinada, com uma vista espraiada sobre o casario da cidade e o Tejo, e as suas nuvens e ventos.
Realçaria nele também o viver e valorizar muito o serviço, o bem comum, o altruísmo, o saber ascética ou esforçadamente obtido para se poder ajudar ou adorar, chegando mesmo a assinar as cartas dactilografadas e fotocopiadas como "George Agostinho, vosso irmão servidor". Duas quadras suas, e um texto, são neste sentido bem elucidativos: «Que o melhor de meu destino/ me salve a mim e aos meus/ de saber para poder/ não para louvar a Deus.
E que me guarde primeiro/ da vontade de saber/ como coisa que possua/ antes que estrada de ser.»
Já num texto de Setembro de 1993
diz-nos, como mestre de bordo e franciscano espiritual: «Sair da crise com três princípios: o de me ver livre do
supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar
voto de obediência ao que for servir, não mandar»
Outro dos aspectos mais desafiantes, para ele e para nós, da sua espiritualidade era a atracção ou gosto pelos paradoxos e pela união dos opostos e contrários, o que por vezes me obrigava a pensar mais uns segundos para captar ou chegar à sua visão circular ou de 360 graus. Por isso era anti-unilateralismos, facciosismos, partidos únicos ou maiorias absolutas, ou ainda acantonamentos em um só dos lados da vida, frequentemente tão dual ou dualizada, tal como nos diz em 7-7-87: «Que ideologias e filosofias cedam logo seu lugar à sabedoria que lhes é rainha; e que a contemplação das essências, qualquer que seja o nome que se lhes dê, jamais faça perder a atenção ao fenómeno por mais insignificante que pareça, pois que nenhum o é.»
Outro dos aspectos mais desafiantes, para ele e para nós, da sua espiritualidade era a atracção ou gosto pelos paradoxos e pela união dos opostos e contrários, o que por vezes me obrigava a pensar mais uns segundos para captar ou chegar à sua visão circular ou de 360 graus. Por isso era anti-unilateralismos, facciosismos, partidos únicos ou maiorias absolutas, ou ainda acantonamentos em um só dos lados da vida, frequentemente tão dual ou dualizada, tal como nos diz em 7-7-87: «Que ideologias e filosofias cedam logo seu lugar à sabedoria que lhes é rainha; e que a contemplação das essências, qualquer que seja o nome que se lhes dê, jamais faça perder a atenção ao fenómeno por mais insignificante que pareça, pois que nenhum o é.»
Destacaria também como era forte o seu sentido universalista, alicerçado tanto nas
suas numerosas viagens e estadias em várias terras e povos como na sua
rede de amigos, "somos 700 espalhados por todo o mundo", dizia ele num
momento chave da sua maior intercomunicabilidade com as pessoas, altura
mesma em que a possibilidade de movimentação ou intervenção (mais ou
menos concentrada e eficaz) esteve presente em alguns dos amigos mais
chegados...
Sucederam-se
então os episódios da instituição da Fundação D. Dinis e a criação dum
Fundo em 1991 (com o dinheiro de retroactivos de ter sido professor)
para apoio de projectos de vida conversável e espiritual, numa de duas
cartas explicitado assim: «Fundo
Comum Del Rey Dom Dinis, para subsídios a individuais ou, de
preferência, a colectividades que tenham interesse
nos problemas teológicos que levanta o culto do Espírito Santo do
séc. XIII, tendendo,
segundo parece, concluir que são Irmãs todas as religiões que já
houve, há ou haverá, já que nem tudo do que nos apercebemos se
inclui no físico e no matemático.»
Mas da preferência pelas colectividades ou comunidades, ou mesmo do «estímulo que mais conveniente for considerado para que se desenvolvam estudos e experiências, do que foi ideologia e ideal do povo português no século XIII», passou-se pouco depois para bolsas monetárias para trabalhos ou teses de universitários, e os fugazes sonhos tanto de apoios a inserção de grupos na realidade da terra como de partilha da sua mensagem e utopia a boas audiências , ficou-se pelas treze Conversas vadias, ou entrevistas, passadas na televisão pública em 1990.
No fim, com a passagem do seu tempo terreno, pouco disso subsistiria e restam-nos a memória, os seus escritos, ainda assim bastante reimpressos e divulgados, a Associação Agostinho da Silva, fundada em 1995 (por Maria Violante, a companheira final de Agostinho da Silva), e que tem o seu portal na web com algumas obras acessíveis, e as dinamizações, palestras e publicações acerca dele e dos seus ensinamentos, com alguns vultos a persistirem mais em tais divulgações ou interpretações, ou mesmo, de quando em quando, com algum aprofundamento valioso...
Mas da preferência pelas colectividades ou comunidades, ou mesmo do «estímulo que mais conveniente for considerado para que se desenvolvam estudos e experiências, do que foi ideologia e ideal do povo português no século XIII», passou-se pouco depois para bolsas monetárias para trabalhos ou teses de universitários, e os fugazes sonhos tanto de apoios a inserção de grupos na realidade da terra como de partilha da sua mensagem e utopia a boas audiências , ficou-se pelas treze Conversas vadias, ou entrevistas, passadas na televisão pública em 1990.
No fim, com a passagem do seu tempo terreno, pouco disso subsistiria e restam-nos a memória, os seus escritos, ainda assim bastante reimpressos e divulgados, a Associação Agostinho da Silva, fundada em 1995 (por Maria Violante, a companheira final de Agostinho da Silva), e que tem o seu portal na web com algumas obras acessíveis, e as dinamizações, palestras e publicações acerca dele e dos seus ensinamentos, com alguns vultos a persistirem mais em tais divulgações ou interpretações, ou mesmo, de quando em quando, com algum aprofundamento valioso...
Talvez essa fase mais esperançosa durante a sua vida e que se gorou tenha tido continuidade e eficácia através do que
alguns dos seus seguidores, estudiosos ou amigos ergueram em colóquios,
congressos e comunicações, fazendo lembrar os franciscanos entusiasmados com S. Francisco de Assis, ou mesmo o Cristianismo inicial que
esperava uma vinda Jesus, a segunda vinda eminente, aos cantos de Marana Tha,
a que sucederam em vez disso as perseguições e, por fim, o endurecimento da
instituição eclesial, tão fortemente resguardada e dogmatizada para
que nada prevalecesse sobre ela, que o espírito passou, à parte em algumas almas, a ser apenas de
palavras, ritos e sacramentos, e por vezes até aprisionado, desfigurado e
desvitalizado por elas em vez de realização ou vivência interior e
despertante nos outros...
Desejaria então ressaltar como o despertar e sintonizar interno espiritual nosso é que é verdadeiramente a base de qualquer conversão, transformação e acção justa e não deve estar dependente de esperanças externas e exageradas nem de excessivas intelectualizações, seguidismos ou divulgações superficiais ou artificiais, despidas do espírito vivo interior, ou da vivência e experiência do que se fala.
Desejaria então ressaltar como o despertar e sintonizar interno espiritual nosso é que é verdadeiramente a base de qualquer conversão, transformação e acção justa e não deve estar dependente de esperanças externas e exageradas nem de excessivas intelectualizações, seguidismos ou divulgações superficiais ou artificiais, despidas do espírito vivo interior, ou da vivência e experiência do que se fala.
Em
Agostinho da Silva destacava-se a consciencialização sensível e
confiante na Vida, no Todo, na Ordem do Universo, no Divino, no Absoluto
e que ele em alguma proporção respirava e que em fraternas conversas era
comungado e que se multiplicava nos contactos em rede (telefónica e de moradas...) que
logo sugeria animadoramente...
A sua sincera fé no interior de cada ser, tão poderoso quer por via do Espírito Santo cósmico como guia e inspirador, quer ainda por via da presença do Espírito individual e na valorização da sua imprevisibilidade e criatividade , ainda visível no desenrascanço e no sentimento de fraternidade típicos dos portugueses e de alguns outros povos, tornavam-no num estimulador do dinamismo das almas que o visitavam ou das muitas com quem se correspondia.
Agostinho da Silva era claramente um optimista, um homem confiante nas infinitas capacidades humanas e talvez não o fosse apenas por temperamento próprio e de ser viajante português ou luso-brasileiro (que ainda se notava por vezes no seu sotaque ou jeito de falar) mas também enquanto discípulo do culto do Espírito Santo, sendo quase um espiritual franciscano (tal como Jaime de Magalhães Lima e Jaime Cortesão, este em alguns aspectos seu mestre), discípulo ou adepto de Joaquim de Fiora, para quem a mítica Terceira Idade ou do Espírito Santo se caracterizaria pela capacidade de muitos seres poderem, sem intermediarização, receber a inteligência das escrituras, sondar os mistérios da vida e vivê-los directamente em fraternidade e criatividade, completando assim o Pai e o Filho, e suas eras ou fases na história do Cristianismo, nas quais se dependera mais da letra da Lei e depois do sacerdócio ou intermediarização de Jesus e do seu amor e caridade.
Foram numerosas as ocasiões em que Agostinho dedilhou com arte e originalidade novas interpretações de Joaquim de Fiora e suas doutrinações ou elucubrações do Espírito Santo e da utopia do seu reino, tidas como proféticas e transcreveremos uma completando assim este esboço inicial de uma conferência que, antecedida por uma introdução breve sobre as principais ideias e visões sobre o Espírito ao longo dos tempos, decorreu bem com bastantes pessoas amigas, entre as quais o professor e sábio do Humanismo José Vitorino de Pina Martins e a sub-directora da Biblioteca Nacional Maria Valentina Sul Mendes, especialista dos livros mais antigos portugueses, os incunábulos.
Podemos, para finalizar, sem receios, considerar Agostinho da Silva um instrutor ou guia espiritual em belos passos da sua obra, ao dar ensinamentos e conselhos para o caminho espiritual, fosse o de se chegar ao espírito e ao Divino, seja à Idade do Espírito Santo, à ilha do Amor de Camões ou ao V Império do Padre António Vieira e de Fernando Pessoa, do qual esclarecerá, que «é o que temos de construir para que todos os homens de todos os povos salvem, juntamente, suas almas e seus corpos, e jamais tenham como Imperador senão sua própria e esclarecida consciência e o que de fundamental chamem Deus, isto é, a Criatividade Absoluta.»
E eis os últimos textos que partilhamos dos seus ensinamentos espirituais mais luminosos, o primeiro de 1965 sobre a utópica Era do Espírito Santo profetizada por Joaquim de Fiore: «Foi
condenado o Joaquim de Flora, não por ter pregado o império do
espírito, nem por ter profetizado a idade em que seria o homem
inteiramente livre para a criação, e mais dócil ao sopro inspirador do
que desejoso de afirmar a sua vontade, sua iniciativa, seu pioneiro
ardor, mas por ter ligado as suas ideias à convicção, logo expressa sem
humildade, de que era temporário o Catolicismo e secundária, em face do
Espírito, a revelação de Cristo (...)», sem dúvida uma afirmação na época bem herética ou revolucionária...
O segundo, escrito em 1992, aos 86 anos, numa das suas folhinhas dirigida aos irmãos e irmãs do Bem Comum, base da movimentação luminosa a que aspirava: «principalmente
servidores daquilo que são fundamentalmente e atentos à vocação íntima
dos outros (...) Teremos preceitos que nos guiem? Decerto: antes de
tudo, livremo-nos do supérfluo, não nos deixemos capturar por
sentimentos de posse, nem de bens, nem de pessoas, nem de nós próprios –
e aqui é muito útil o voto de obediência àqueles ou aquilo que para nós
mais alto esteja, pensamento, pessoa, bicho, planta ou até pedra...»
Saibamos pois, nestes tempos de crescente opressão na humanidade do que é natural, fraterno, verdadeiro e divino, manter a ligação com a Tradição Espiritual portuguesa e universal e nela nos inspirarmos e fortalecermos nos grandes embates do fim da era da dominação do império anglo-americano e atlântico, para uma era multipolar voltar de novo a ser a base justa do convívio dos povos e almas...
2 comentários:
Excelente abordagem à vida e obra desse espírito evoluído! Bem haja pelo seu dom da palavra.
Muitas graças pela apreciação generosa. Uma vida e obra sem dúvida muito rica, pioneira e luminosa, que bem merece boas aproximações...
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