terça-feira, 24 de maio de 2022

A estrela, símbolo do espírito, na "Iconologia" de Cesare Ripa, obra prima da sabedoria do Renascimento.

 A obra de Cesare Ripa, Iconologia, o vero Descrittione dell’imagini universali cavate dall’antichità et da altri luoghi, per reppresentare le virtù, vitii, affetti e passione humane, arti, discipline, humori, elementi..., 1593, foi durante séculos uma das fontes principais da sabedoria dos antigos, abrangendo a mitologia, a religião, a etnografia, a ética e moral, os costumes, as ciências. Mas, ao congraçar ou juntar, a partir da 2ª edição de 1605, imagens originalmente desenhadas para tornar visíveis, imagináveis os conceitos desejados, apoiados em citações de autores clássicos,  exemplos e explicações contextualizantes, tornou-se não só um convite à contemplação e portanto a uma ligação com os mundos espirituais mas uma enciclopédia portátil de todo o saber e imagem (e por ordem alfabética de temas ou conceitos). Tal como o era o livro Adágios de Erasmo,  embora sem imagens e baseando-se apenas nas vozes ou ditos de toda a Antiguidade, certamente bem contextualizados e até relacionados ironicamente com a actualidade, numa sabedoria crítica   humanista hoje muito perdida na cultura e informação tão superficializada e manipulada da generalidade das pessoas...

A obra de Cesare Ripa (1555-1622), Iconologia, no frontispício em cima já na edição ampliada veneziana de 1645, assumia um título bem ousado pois apelava ao enlaçamento do Logos (divino) e do Ícone (vera efígie), e embora sendo doutrinária, ética e espiritualizante, visava sobretudo instruir os artistas (e reconhecem-se hoje as influências em muitos pintores) com simbolismos apropriados aos seus desígnios e, ao conter tanta informação das religiões e sapiências antigas, filósofos e padres da Igreja, apesar das suas confissões de conformidade ao Catolicismo (como se pode ver na nota de rodapé final), sentimos uma  vontade grande de Cesare Ripa de fazer passar a sabedoria perene que se encontrava no paganismo, como que oferecendo uma arte-ciência mnemónica e operativa, numa senda mais iconográfica do que Marsilio Ficino e Paracelso tentaram mais esotérica e magicamente, e que ligaria o visível e o invisível, a mente criativa ou contemplativa e o espírito e os seres espirituais, ganhando até uma certa perenidade no teatro inconsciente ou subconsciente humano, onde as imagens e arquétipos predominam...
O sucesso da obra foi muito grande, pois para cada qualidade, virtude, paixão, vicio, aspecto do génio, arte, ciência e actividade humana, bem como da natureza celestial e terrestre, com os seus elementos, humores, estações e fenómenos, havia as correspondentes imagens belas, misteriosas, desafiantes, com boas informações e exemplos e assim qualquer escritor, poeta, pregador, orador, pintor, escultor ou gravador podia fortalecer-se com sabedoria milenária, desde o antigo Egipto, inspirar-se mais universalmente e, logo, melhor realizar as suas obras e seus desígnios seja estéticos, seja instrutivos, seja imortalizantes...
Esta breve introdução é uma aproximação contextualizante às três primeiras imagens com estrelas na Iconologia de Ripa e tentar compreender o que elas simbolizavam ou indicavam, conforme o que ele escreveu, citou ou então que nós podemos deduzir e intuir, ou por vivência pessoal conhecer, saber...

O 1º ícone com a imagem de uma estrela, como a podemos ver e ler na edição de 1645, italiana, surge na representação da Alma racional e beatífica, e mostra-nos uma mulher com um vestido que Cesare Ripa diz claro e luzente, o vulto coberto por um véu finíssimo e transparente, com asas aos ombro e uma estrela sobre cabeça.

                                

E escreve: «Sendo uma substância incorpórea e imortal, representa-se assim para ser compreendida e é desenhada graciosissimamente por ter sido feita pelo Criador, o qual é a fonte de toda a beleza e perfeição à sua semelhança, e a vestimenta é clara para demonstrar a pureza e a perfeição da sua essência» ou, se quisermos, do seu íntimo ser e existir.

                                     Aiwass Journal - Ancient Egyptian Star Ceiling (Luxor) "The Five Pointed  Star, with a Circle in the Middle, & the circle is Red." Liber AL vel  Legis, 1:60 | Facebook 

Quanto à Estrela propriamente diz que com ela, «conforme Piero Valeriano, no livro 44 dos seus Hieroglifos, os egípcios significavam a imortalidade da alma». É pouco e é preciso uma boa hermenêutica para discernirmos que ele está dizer que a estrela representará o espírito imortal que coroa a alma. De facto, a estrela representa o espírito,  o núcleo e centelha divina presente no mar da alma e no corpo, pois na realidade somos corpo físico, alma de emoções, sentimentos e pensamentos e, finalmente, espírito, centelha divina, aqui abonada pela tradição egípcia, como imortal. E perguntamos, ao iniciar esta investigação que outras características ou qualidades ele discernirá, aceitará ou proporá quanto ao espírito, ao longo do livro.
Hoje sabe-se que os egípcios consideravam a estrela, que neles surge
nos hieróglifos como de cinco pontas,  tanto uma imagem das estrelas que havia no céu físico e no do além, no mundo Duat, como também o símbolo do ba ou seja, a manifestação espiritual de cada ser que em si era visto como pluridimensional. 

                                             

Quanto às asas, Piero Valeriano não aprofunda muito, pois diz  que elas nos ombros denotam a agilidade e espiritualidade, como também as duas potências intelecto e vontade.
Ora podendo elas sem dúvida simbolizar, e bem, tal quanto à alma de
um modo geral, elas são sobretudo representações fidedignas das energias que irradiam das almas mais luminosas, e que sendo raios podem então ser vistas clarividentemente como asas, de forças coloridas e irradiantes ou mesmo elevantes. Cada ser tem as suas asas, e se ele não as deixa cortar ou atrofiar demasiado pelos seus erros e hábitos, e pelas paranóias que a sociedade lhe impõe ou sugere, tais os noticiários de televisões, então consegue melhor manter-se em acção criativa e amorosa nos seus projectos e ideais, nas suas aspirações e forças ascendentes, ou relações horizontais e harmonizadoras.
O conjunto da imagem é harmonioso e, bem contemplado, pode
induzir a consciencialização do que existe na alma subtilmente (e algo inconscientemente) e que está na imagem emblemática representado subtilmente e com intuitos operativos, dinâmicos, transformadores...

                              

Uma 2ª representação da Estrela encontramos no ícone do Bom Augúrio, com a seguinte singela discrição: «Um jovem que tem uma estrela sobre a cabeça, nos braços um cisne e está vestido com a cor verde, que significa augúrio, pois as ervas quando verdejam, prometem boa cópia de frutos. Piero Valeriano [1477-1509], [Hieroglyphica], no seu livro 44, diz que aqueles que antigamente operavam os augúrios confirmavam que a estrela era sempre sinal de prosperidade e sucesso feliz.»
Nesta interpretação da visão da estrela sobre a cabeça de uma pessoa discerne-se um
sinal auspicioso. Mas numa hermenêutica mais espiritual teremos de discernir se é uma visão clarividente que alguém teve e que afirma tal, ou se é apenas um dado de tradição ou mesmo até da boa estrela que se diz seguir os mais afortunados na vida, tal como por exemplo o persa Saadi, de Shiraz, aonde estive em peregrinação, a dado momento da sua obra Bostan conta.
Uma terceira (e há mais) representação da Estrela na Iconologia de Ripa encontramos na imagem do conceito
Conjunção das Coisas Humanas e Divinas:

«Desenhar-se-a uma pessoa de joelhos com os olhos virados para o Céu e que humildemente sustem com ambas as mãos uma cadeia de ouro pendente do céu e de uma estrela. Não há qualquer dúvida que com o testemunho de Macróbio e de Luciano, a corrente mencionada significa  uma conjunção das coisas humanas com as Divinas, e um certo vínculo comum com o qual a Divindade, quando lhe agrada e atrai a si e leva a mente nossa ao Céu [ou interioridade espiritual], donde nós com a nossa própria força não podemos sair, de modo que isto quer significar que se a nossa mente se governa com o querer divino, poderá atar-se com a cadeia pendente do céu e de uma estrela. E esta é aquela força de inspiração Divina, de cujo foco Platão quis que todo o ser humano seja participante a fim de dirigir a mente ao Criador e a erga ao Céu, mas convém que tal seja conforme a vontade divina em todas as coisas e que oremos a Sua Divina Majestade que nos faça dignos da sua santíssima graça.» 

Possa a catena aurea, a corrente dourada, que liga o mundo celestial e divino e o terreno e humano, ou a estrela e a alma, ser vivificada pelo amor sincero e a força justa nossas que assim fertilizarão e harmonizarão melhor a Terra e a Humanidade...

Nota de rodapé: «Do cisne diz Virgílio no livro primeiro da Eneida: ni frustra augurium vani docuere parentes. aspice bis senos laetantis agmine cycnos, aetheria quos lapsa plaga Iovis ales aperto.... "Mas é não frustradamente nem em vão que o sacerdote augurador ensina os pais a observarem o voo de doze cisnes alegres, aves sagradas de Júpiter e que planarão e aterrarão no local auspicioso". Mas a nós cristãos não nos é lícito crer na vaidade dos augúrios.»

Possam as melhores intuições face à súbita contemplação de cisnes, pombas, aves, nuvens, estrelas ou céu nos inspirar e guiar,  e na comunhão com os elos perenes da Sabedoria humano-divina, sermos mais plenamente o espírito, a estrela ou centelha divina em nós... Aum!

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