Esta imagem de uma mulher de cabelos aos ventos, desenhada na folha de guarda
final de um velho alfarrábio, desafia-nos a soletrarmos alguma mensagem
ou intencionalidade do seu desconhecido autor. A tinta e traço sugerem o
século XVIII, tanto mais que ao alto, foi somado a uma data, 1500, 250,
o que dá 1750. Será que quem desenhou pensou que o livro, bem antigo
mas não tanto, teria sido impresso nessa data, já que a obra está hoje e
estaria então em 1750 incompleta, pois começa só na página 47 e termina
na 600 (das 616), e era-lhe difícil confirmar a data da impressão, já que não teria os recursos bibliográficos, hoje bem ampliados nas digitalizações disponíveis na web?
A obra foi a enciclopédia do saber medicinal das ervas, plantas, animais, árvores
e pedras durante séculos e é do botânico e médico grego Dioscórides (40-90), acrescentado e comentado
pelo Dr. Andrés Laguna (1499-1559), que melhorou o autor clássico em vários aspectos (explicitados na obra)
graças aos Descobrimentos portugueses, às obras de Garcia de Orta e
João da Costa e à sua experiência, madre de todas las cosas.
A partir de uma página digitalizada, a 134, e que se encontra neste exemplar incompleto, podemos confirmar que a obra é a versão Pedacio
Dioscorides anazarbeo, acerca de la materia medicinal y de los venenos medicos, traduzido
de lengua Griega, en la vulgar Castellana, & illustrado con claras y substanciales Annotaciones, y con las figuras de innumeras plantas exquisitas y raras, por el Doctor Andres de
Laguna, medico de Julio III Pontif. Max., impressa em Antuérpia, em casa de Juan Latio, em 1555.
É um exemplar muito estropiado ("imperfeito", mas valioso e amado, como sobre eles escreveu o nosso confabulator José V. Pina Martins, e muita luz e amor para ele!), com falhas e rasgões vários, comprado a
um preço bem simpático já há uns anos ao nosso amigo livreiro alfarrabista Bernardo
Trindade, da tão procurada e amada livraria na rua do Alecrim, nº44, agora trasladada para o Largo da Academia das Belas Artes, nº 17 r/c.
Mas ei-lo contudo a reanimar-se sempre que é consultado no seu saber milenário das mezinhas e nas
suas belas gravuras abertas em madeira admirado, tanto mais que encerra uma valiosa marginália: dedicatórias, prefações, autorizações, notas de posse, desenhos e, claro,
anotações, seja nas margens e atinentes ao tema, seja nas folhas de guarda, tal como nós agora podemos observar, vivenciar, entrando por ele a dentro...
O desenho é cativante, sobre um pescoço algo cónico encontramos a bela face, oval ou arredondada, qual
bola de cristal, e de baixo dos seus ouvidos membranosos e delicados, adivinhamos róseos,
parte uma corrente ondulante da sua longa cabeleira, ainda que no topo
da cabeça ela esteja tornada singelo diadema ondulatório. A boca está calma, serena,
introspectiva no seu amor e centro interior e, enquanto um dos olhos
contempla o mundo espiritual o outro vê-nos calma e amorosamente, como que dizendo que devemos estar sempre a ver e a amar o corpo e a alma, o mundo material e o subtil dos sentimentos e intenções, nos seres e no universo...
Podemos dizer que esta imagem nos diz, na sabedoria indiana, Tat Twam Asi, Tu és isto, um espírito de Amor manifestado em beleza e serenidade, na tua pluridimensionalidade e em unidade com o campo unificado de energias consciências e informações que te rodeia ou envolve.
Os cabelos são como as cordas subtis de uma harpa dedilhada pelo vento e lançando de si os sons, mantras e ritmos que nos encantam e elevam, e pondo assim as almas
em comunicação e quem sabe até comunhão com o som subtil, primordial, a mítica e pitagórica música
das esferas ou talvez mais das partículas...
A face bola de cristal pura e cristalina, qual esfera elevada do nosso ser e da ilha do Amor, interroga-nos: - Quando ouviremos, falaremos e chamaremos nós em Amor, e despertaremos e desvendar-nos-emos?
E quem sente as correntes que o Amor envia pelos cabelos, e que atravessam
as distâncias levadas pelos ventos e as aves das intenções e poesias, reconhece
que os teus cabelos são uma floresta ao vento, onde o Amor circula e inspira-nos.
Felizes das almas que se tornam poetas videntes, kavis e rishis, que encontram as faces da Divindade e da Amada que os enchem e se
tornam as suas musas, e felizes das mulheres e musas que encontram os
seus poetas e as suas Faces Divinas e na Unidade têm o seu ser e
caminham, aprofundam e adoram criativamente e beatificamente. Segue uma música devocional indiana sugerida hoje mesmo no youtube de Nishta, embora o desenho do séc. XVIII já tenha sido intervencionado há algum tempo, música esta que de algum modo ecoou como pano de fundo ou ambiente interior cósmico da alma enquanto ampliei esta homenagem ao livro, ao desenho, à amada, à Divindade.
Que a Divindade, seja qual a for a Face em que a invoquemos ou a contemplemos, adoremos ou amemos, nos inspire sempre, e que o Amor, a Justiça e a Paz brilhem mais em todos os seres e povos. Aum, Amen, Hum, Hare, Shiva, Shakti, Hrim...
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