sábado, 28 de maio de 2022

Um diálogo com Agostinho da Silva, A pomba do Espírito Santo. E o poema do cedro do jardim do Príncipe Real. Primavera de 1985.

Transcrição de uma página do diário de 1985 pois, revisitando o caderno, encontrei  um pequeno registo de um encontro com Agostinho da Silva (1906-1994), valioso amigo e irmão-mestre da tradição cultural e espiritual portuguesa, com quem dialoguei muitas vezes. Preserva-se assim um testemunho da sua alma de marinheiro e descobridor de rumos utópicos mas possíveis. Que nos inspire, e muita Luz e Amor para ele.

                           

«Preparando a visita à velha Albion [para participar no European Humanity Gathering 1985, organizado pela Findhorn Foundation], venho aqui passar a casa do prof. Agostinho da Silva a hora tardia, o Sol vai-se pondo e tingindo o ar e a relva de cheiros dourados que sobem como recordações de infância às nascentes da nossa alma e fazem-nos sentir, no meio da azáfama citadina, pontos de encontro e de eternidade.

Ele está quebrantado. Sentamo-nos um pouco. Está na sua hora de descanso. Seu coração, que o serviu [quase] 80 anos, agora estremece. Dou-lhe alguns conselhos [talvez o de massajar o meridiano do coração ou estimulá-lo a partir da compressão rítmica do dedo mínimo]. Falamos brevemente. Perguntei-lhe sobre o Espírito Santo.
- "Com certeza, sem desesperança".
-  Não é exagero o V Império, não será impossível? 
- "Possível é, mas levará tempo. A pomba branca terá de atravessar muito fumo até chegar ao céu", diz, e eu, nos seus dentes já algo com falhas e num trejeito facial, vislumbro a fome e a injustiça
mundial existentes.
"Então para a pomba chegar até cá abaixo terá que atravessar muitas barreiras e dificuldades".
Sentimos um pouco então no coração este encontro inconsciente das duas forças  ou níveis [a do Espírito plenificante e a humanidade, as energias que sobrem e as que descem.]
- "Vai ser difícil mas para o bom marinheiro não custa navegar; para os outros é que será mais difícil".
Mais uns conselhos alimentares [provavelmente disse-lhe para não comer fritos, evitar açúcares brancos, diminuir gorduras animais, comer mais cereais integrais e biológicos], oferta de grissinos integrais que levava comigo, [e ele faz uma rápida] análise do Brasil. Tancredo provocando um surto transcendente [eleito presidente a 14 de Março de 1985, o já democrata e popular Tancredo Neves, na véspera da posse, foi internado com apendicite e morreu a 21 de Abril, provocando grande comoção nacional]. E aqui estou a escrever na beleza [do jardim] do Príncipe Real.» 

Transcrevo o poema dedicado às árvores e insculpido junto ao já bem centenário e tão individualizado cedro, qual coração deste aprazível jardim lisboeta, onde aos sábados se realiza um valioso mercado de produtos de agricultura biológica, tão necessária aos eco-sistemas e às pessoas, e onde o Agostinho tantas vezes passou ou esteve.

«Tu que passas e ergues para mim o teu braço
Antes que me faças mal olha-me bem.
Eu sou o calor do teu lar nas noites frias de Inverno;
Eu sou a sombra amiga que tu encontras
Quando caminhas sob o Sol de Agosto;
E os meus frutos são a frescura apetitosa
Que te sacia a sede nos caminhos.
Eu sou a trave amiga da tua casa, a tábua da tua mesa,
A cama em que tu descansas e o lenho do teu barco.
Eu sou o cabo da tua enxada, a porta da tua morada,
A madeira do teu berço e do teu próprio caixão.
Eu sou o pão da bondade, a flor da beleza.
Tu que passas olha-me bem e não me faças mal.»


Já em casa anoto no fim da página, após a visita e diálogo com Agostinho: "Boas meditações: Que não se percam o Amor sentido de quando em quando, a Sabedoria pensante e pensada  e a acção-vontade inflamando os corações em acções justas, luminosas. Eis uma Trindade equilibrada."

2 comentários:

João Teixeira da Motta disse...

sim, eram muito simpáticos e enriquecedores esses encontros que tínhamos com ele, ou em sua casa ou no jardim do Principe real...

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Sim, vivos e animadores, e mais em sua casa...