domingo, 1 de maio de 2022

A Índia eterna: os Himalaias e o Ganges, no poema Savitri, de Ernesto Marecos. Lido e comentado no 1º de Maio e no fogo de Beltane

Os Himalaias, Himavat, por Bô Yin Râ.

Ernesto Marecos foi um escritor do meio do século XIX nascido em Lisboa a dia 16 de Junho de 1836, filho de um funcionário público e poeta e que, após cursar a Universidade de Coimbra, em Direito, três anos incompletos, teve conflitos políticos pelos seus dotes poéticos e oratórios ao serviço de ideias ou causas reprovadas por outros, pelo que teve de se alistar no funcionalismo público, partindo para o Ultramar onde estará por Angola, de 1855 a 1857, desenvolvendo intensa actividade literária e teatral, a qual foi recentemente estudada pelo amigo Francisco Soares e por Fernando Topa. 

Regressado a Portugal, publicou na tipografia da famosa revista Panorama em 1867, Savitri, Lenda Indiana, contendo na contracapa a indicação de duas das suas obras publicadas: As Primeiras Inspirações, poesia, e Juca a Matumbolla, lenda, anunciando-se no prelo As Confidências, e o Thesouro de Fanir, legenda extraída das tradições germânicas, sobre a morte de Atila, que curiosamente foi impressa, com 43 págs.,  com a data de 1866, conforme podemos ver numa cópia digitalizada da Biblioteca Nacional. Sentimos bem o elevado fôlego de ideais, qual Antero de Quental (embora não haja registos do conhecimento mútuo presencial), que brilhava no seu peito, quem sabe se de algumas mesmas leituras nutridos, tal Schlegel (1772-1829), Schopenhauer (1788-1860), Jules Michelet (1798-1874), Victor Hugo (1802-1885), Edgar Quinet (1803-1875), Conde Arthur de Gobineau (1816-1882), Alfred Maury (1817-1892), Max Müller (1823-1900).
Anote-se nos nossos autores mais conhecidos editados por A. J. F. Lopes (e que se vendiam na sua loja à rua do Ouro, 132-134), Bocage, Rebelo da Silva, Mendes Leal Júnior, Lopes de Mendonça, L. A. Palmeirim, Biester, Júlio César Machado. E por curiosidade significativa o anúncio de estar nos prelos o valioso Memorial dos Cavaleiros da Távola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, um autor tão estudado e amado nos nossos dias por Silvina Pereira...

                                              

Ora Savitri, que é tanto a efulgência vivificante do Sol como a sua presença interior no ser humano (há 11 hinos no Rig Veda dedicados a esta Face Divina e está mencionada em 170) e ainda o nome da princesa da lenda, é um poema de grande fôlego e amor à Índia, ainda platónico já que só a conhecerá, depois de ter dirigido em 1869 a alfândega do distrito de Cabo Delgado, em Moçambique, quando foi transferido em 1875  para alfândega  de Nova Goa. Mas que obras lera e como formara o seu conhecimento da Índia que ali se observa  são mistérios, embora houvesse traduções francesas de clássicos e de estudos indianistas que corriam em Portugal, tais os de  Hyppolyte Fauche (1797-1869) Alfred Saudous (1815-?) e A. Philibert Soupé (1818-1904), que Antero de Quental possuía. E desde que em 1875 esteve em Cabo Delgado, Moçambique  algo poderá ter recebido da colónia indiana lá fixada. Finalmente, também  não saberemos bem com que gnose ou riqueza espiritual vivenciada em Nova Goa, ou seja, na Índia e mais perto dos Himalaias, deixará a Terra, em Moçambique, em 1879, rumo ao eterno Oriente...

Como Ernesto Marecos vibrou tanto no seu poema Savitri, animando-o de grande força e beleza, resolvemos ler os versos iniciais e comentá-los levemente, donde o vídeo de 12 minutos, no final deste artigo, e seguindo-se esta transcrição deles:

1 - «O Himalaia soberano,
Das montanhas o monarca,
Que um vasto horizonte abarca,
Do Eterno eterno troféu,
Mal aos pés divisa a terra,
Mas sobre o gelo constante
Do seu diadema brilhante.
Como que sustenta o céu!»

2 -
«Do topo do espaço imenso
Que, ó monte gigante, ocupas
Jorra em brancas catadupas,

Ferve, irrompe em borbotões
O Ganges que ora entre as rochas
Solta em fúria ingentes brados,
Ora em vales perfumados
Modula ternas canções.

3 -
Vai o rio dos três mundos,
Da corrente na vertigem,
Do céu onde teve a origem
Até aos abismos do mar:
Mas no curso longo e rápido,
Da majestade infinita,
Quantos povos não visita,
Que terras não vai cortar!

4 -
Esse liquido colosso
Entumecido, ofegante,
É o enamorado amante
Da região mais gentil:
Fecunda, atravessa, afaga,
Banha, beija na passagem,
Sua amante cuja imagem
Reflecte em carícias mil.

5 - 

Ó India, deixa que o nobre
Caudoloso potentado
Te leve da fama o brado,
De ignotas plagas além!
Tu, a pérola mais linda
Das pérolas do universo,
Tu que foste o puro berço
Da grandeza, a pátria, a mãe;

6 -
Tu que da seiva opulenta
Assombras pelos prodígios;
Tu que mostras os vestígios
Dos feitos egrégios teus:
Tu que do mundo o passado
Quase sozinho completas,
   Que na voz dos teus poetas [Rishis, Kavi Yogis]
Primeiro falaste a Deus.

7 -
Deixa que o Ganges celebre
Tão sublimes maravilhas!
Se, qual brilhaste, não brilhas;
Se cansaste de reinar;
Não te pesem os lamentos,
Não te corras dos insultos
Dos povos que, hoje mais cultos,
Tu ensinaste a falar!

8 -
Não se esquece o que tu foste
Porque não morreu a história!
Tu, o guia, o norte, a glória
Da humanidade, o farol,
Se as lei não ditas altiva:
De outras eras tens a herança
Tens do futuro a esperança,
Tens as bênçãos do teu sol!

9 -
O tempo, austero, inflexível,
Olhe, passa, e não consome
Cada letra do teu nome
Que apagar não poderá,
Como não pode as riquezas
Tentar roubar-te do solo,
Os diamantes do teu colo
Que jamais te arrancará.

10 -
Se das gerações de atletas
Que ao mundo abriram espaços,
E que dormem nos teus braços
O estremo sono da paz,
Só as ruínas atestam
A solene primazia
E sobre elas tripudia
O estrangeiro astuto e audaz.

11 -
Se o torrão incomparável
Te invade em vão o estrangeiro,
E o teu aspecto guerreiro
Desmaia ao frio mortal:
Ainda assim, não há um sólio,
Um Império que te valha,
Que a nobre mortalha
Do Ocidente os tronos vale!

12 -
Por isso, ó Índia, que o Ganges,
Que em teu seio se recreia,
Vá murmurando a epopeia
Do teu passado feliz!
Ensine a remotas praias,
E que daí leve a aragem,
Um trecho a cada paragem
De cada grande país!»

 Eis um dos mais belos trechos portugueses dedicados à Índia eterna e divina e aos seus  Himalaias e ao Ganges, para que continuem a inspirar a Humanidade, gerado por um nobre idealista hoje quase esquecido, Ernesto Marecos. Muita luz e amor na sua alma! No poema vemos o Himalaias apaixonado pela Ganga Ma e pela fertilidade, beleza e felicidade do amor que ela leva por onde passa. Anote-se que no segundo canto, após a evocação himalaica e gangeana transcrita,  entra-se numa peça de amor, com os principais tipos humanos indianos, passada no reino de Madras, quando Avapis era o rei (»Este monarca famoso/Que tivera na consciência/Para as lides da existência/Um raio de luz vivaz») e que recebera como filha, Savitri, uma alma verdadeiramente luminosa, prem-anandica (A sua voz era um canto,/Hino de meigos mistérios/Afinado em tons aéreos/De uma estranha inspiração;/Música de sons vibrantes/Como o cadenciado harpejo/Que vai desferir num beijo/Na harpa eólia a viração!»). Mas isso será para se saber ou ler quando a Biblioteca Nacional tiver mais obras de Ernesto Marecos digitalizadas, ou então elas sejam por algum benemérito transcritas, reimpressas ou digitalizadas. Oiçamo-lo, com leves comentários meus, num 1º de Maio, dia de Beltaine e do fogo sagrado na tradição celta.

                     

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