A
demanda das melhores
ou mais verídicas compreensões ou concepções da vida compete a cada
época, geração, grupo, individualidade pelo que as pessoas não podem
contentar-se com as descobertas ou
construções dos antepassados, devendo antes com coragem e criatividade
avançar em novas descobertas, compreensões, vivências e sínteses, a
partir de todos os conhecimentos e ensinamentos úteis a que tenham acesso ou sintam afinidade.
As concepções religiosas ou, se quisermos, filosóficas, são essenciais delas, e não podem ser deixadas fossilizarem-se já que as crenças antigas devem ser questionadas, meditadas e aprofundadas, para serem confirmadas e revivificadas pela nossa própria experiência ou vivência.
No cerne das religiões, que significa religar, estão a Divindade, o Cosmos, o espírito individual e
as personalidades que captaram ou receberam dados fundadores ou
apoiadores de tal concepção e via Ora as pessoas que as seguem ou
aderem, embora aceitando certos dogmas ou relatos, necessariamente tem
uma percepção da verdade religiosa e da Divindade
sempre própria e única, já que é a sua personalidade e o seu
espírito que discernem de um modo ou outro único um pouco que seja do
mistério ou da inacessibilidade da Verdade, da Fonte, da Origem, do Absoluto ou da Divindade.
No Ocidente, após as épocas de concepções divinas múltiplas, femininas e masculinas,
do tempo do denominado politeísmo e paganismo, passou-se pelo cristianismo para
uma concepção algo confusa de uma Divindade que tentou coordenar a
herança do judaísmo, com o seu Deus exclusivista, Jehova, e a visão
mais íntima, amorosa e gnóstica do Deus Pai, de Jesus. E para se conseguir apresentar ou aproximar
melhor a riqueza e subtileza tão pouco alcançada do Ser Divino teve de criar-se na Igreja Cristã nascente uma Trindade,
divinizando-se Jesus; e como ela era ainda bem incompreensível e
até ineficaz, juntou-se adoração a Maria, como mãe de Deus, e
depois a feita aos santos e santas, como intermediários entre Divino e o quotidiano pão sofrido nosso. Contudo Jesus ensinara a orar só ao Pai e nem sequer a ele, Jesus, o mestre, recomendara.
A adoração exterior assente numa concepção muita limitada de Deus
prevaleceu e se não fossem vários místicos e místicas a vivenciarem
interiormente a Divindade, seja no Cristianismo seja no Islão, seríamos
hoje bastante mais materialistas, já que tal entrou no inconsciente
colectivo, ou na memória genética da humana, preservando-se uma consciência
de que houve alguns seres que conheceram mais directamente o sagrado e o divino.
Nestes tempos de crescente acesso a todo conhecimento da humanidade e da fragilidade das concepções ocidentais da Divindade será bem importante de
quando em quando debruçar-nos sobre outros povos, outras religiões, outras visões da Divindade e
vamos então aproximar-nos um pouco de Shiva, uma da forma mais
adoradas na Índia, pelo que de muito valioso nele se encontra.
Para tal iremos apoiar-nos e transcrever da obra de um valioso orientalista do século XIX, o francês Milloué, algumas linhas valiosas, do seu estudo sobre as Religions de l'Inde, 1890, sobre o culto de Shiva, mencionando porém que mesmo antes dos Vedas, na civilização mais remota (3.500 a. C.) do vale do Indu, com as suas grandes cidades de Moenjo Daro e de Harapa, se encontrou um selo em argila (fotografia em cima) com Pashupati, o Senhor dos Animais, em posição yogi ou de shaman, e que muitos investigadores tendem a considerá-lo como um proto-Shiva, tanto mais que estava também associado à fertilidade e ao phalus ou lingam, símbolos da axialidade vertical masculina e característicos do Shivaísmo e que noutras páginas, não transcritas por mim, Louis de Milloué, conservador e depois director do fabuloso Musée Guimet, descreverá, e donde extraímos uma das mais belas e completas ou ricas iconografias simbólicas de Shiva, Nataraja, o Senhor da dança.
.
«Sabemos
já que Shiva, desconhecido nos Vedas, tomou emprestado, na época
seguinte bramânica, o carácter do deus védico Rudra, do qual conservará
também as funções e os atributos. Como ele, é um destruidor (e é nesta
qualidade que figura na Trimurti, Trindade), um médico, e também
um produtor. Para além disso é sobretudo o deus dos sacrifícios, tomando
pé assim sobre o antigo papel ou função de Agni e de Indra, ao qual
toma emprestado mesmo o nome de Ishvara, Senhor (...). [E serão muitas as suas outras funções, faces e nomes.]
Comentário nosso: Este princípio da consideração que todas as deidades ou concepções divinas, desde que adoradas com pureza ou sinceridade benéfica, chegam até a Divindade primordial, no caso Shiva, que significa Felicidade, é certamente algo que nos deve inspirar a não desanimarmos dos nossos esforços de conseguirmos a adorar, sentir e amar a Divindade seja por que forma ou concepção for, admitindo que nada se perde e que havendo a aspiração do coração a sermos melhores, a Divindade inspira-nos na sua providência omnipresente, por vezes até através dos mestres, santos e santas, guias, anjos, musas, inspiradoras, ou agracia-nos...
Continua Louis de Milloué: «Encontramos mesmo em certos livros, o Shiva Jnana Siddhi, por exemplo, a teoria da graça com a sua subtil distinção entre graça eficaz e graça suficiente, que nos fez pôr [católicos ocidentais] tanta tinta no papel no séc. XVII. Qualquer que seja, com efeito, a piedade, a devoção dum sábio, quaisquer que sejam as austeridades a que ele se entrega, qualquer que seja mesmo o seu amor por Shiva, nada disso se lhe será de qualquer utilidade se ele não conhecer Shiva, e ele não o conhecerá a não ser pela graça de Shiva, que se revelará então, e nele penetrará, o fará semelhante a ela, e estabelecerá a sua morada, e viverá eternamente em íntima união com o eleito, o Shiva bhakta, o devoto de Shiva, qualquer que seja a sua condição, mesmo que sendo um pária. Esta concepção destrói o princípio das Castas, ao menos do ponto de vista religioso [ou seja, mesmo que não tanto na sociedade e no acesso aos bens]; o grau [hierárquico na sociedade] do Brâmane permanece uma vantagem considerável, sobretudo em função do conhecimento ou ciência em que ele é suposto, mas já não é o estágio indispensável para chegar ao Moksha [à salvação ou libertação da ignorância]».
Comentário nosso: Realce-se a bela descrição da graça divina que permite ao devoto-a, amante ou yogi sentir a presença divina dentro de si. E de igual modo, na tradição complementar dos devotos de Vishnu (os Vaishnavas), quem quer que seja que pronuncie os mantras dos nomes divinos (tais como Narayana, Krishna, Rama e Sita), não importando a sua condição social, pode alcançar a graça de certa ligação ou união com a sua ishta Devata, a Divindade interna, ou como eu digo, a Face Divina, a qual na Bhagavad Gita, cap. 7 v. 21-22, e cap. 18. v. 61, é apontada como estando no coração ou graal de cada ser, e portanto em potencial luminoso e amoroso para as consciências mais peregrinas e devotas e para as quais se desvendará conforme a fé e a adoração...
Sem comentários:
Enviar um comentário