segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Livros (3º) sobre Sonhos. O Mistério dos Sonhos, 3º cap. de Enigmas Ocultos, por Bô Yin Râ. Tradução e comentário de Pedro Teixeira da Mota.

O mestre alemão Bô Yin Râ, num dos seus livros pouco conhecidos, Okkulte Rätsel, em inglês Enigmas of Nature's Invisible Realm, ou entre nós Enigmas Ocultos, impresso em 1923, em Leipzig, na carismática Verlag Magische Blätter, deu a sua visão de alguns domínios do oculto, sendo um dos seis capítulos dedicado ao Mistério dos Sonhos. Como tenho estado a escrever sobre sonhos e livros de sonhos, eis um resumo com partes traduzidas e comentadas, sem prejuízo de podermos acrescentar posteriormente outras referências da sua tão valiosa obra e que tenho de algum modo divulgado, nomeadamente com a tradução e publicação do Livro do Deus Vivo, em 2010 e em Setembro de 2022,  A Oração, além de vários textos e vídeos neste blogue e no Youtube.

Diz-nos então que um tipo de experiência onírica ao longo dos séculos foi realçado e tratado com admiração respeitosa, mas em vez de referir o habitual sonho premonitório antes aponta aqueles em que nos sentimos despertos, activos e experienciando a vida, tal como no mundo externo familiar, embora o corpo físico esteja dormindo.
Ora se os dicionários ou vocabulários de sonhos de outrora ajudavam as pessoas a tentar interpretá-los de modos algo  esquemáticos, e hoje, diz-nos ele, se tenta mais  discernir no sonho os  desejos e sentimentos mais íntimos, as lutas e aspirações, ainda assim estas investigações e interpretações psico-fisiológicas não fazem luz sobre o domínio propriamente espiritual dos sonhos, ou seja, não consideram o processo onírico à luz da cognição espiritual pura.
É também importante compreendermos que mesmo que não nos lembremos dos sonhos eles deixam marcas ou sinais nos níveis profundos da memória, registados nas células e neurónios dos gânglios basais, os quais vão depois influenciar as nossas acções, desejos, pensamentos e força de vontade, pelo que quando sonhamos reforçamos os nossos pensamentos e sentimentos, e recebemos  por vezes compreensões ou intuições valiosas sobre nós próprios.
Também o aspecto libertador ou catártico do sonhos é valioso, pois por eles libertamos tensões e repressões internas, e não deveremos ficar com sentimentos de culpa por tais sonhos. 
Sodoma, pintura de Bô Yin Râ
  Distingue então dois  tipos principais de sonhos, Bô Yin Râ: o 1º quando  é basicamente a consciência física semi-adormecida a ter as suas percepções sob a forma de imagens mentais criadas no cérebro, pois as impressões do mundo exterior que chegam ao corpo adormecido são captadas enquanto efeitos internos e como que vistas de dentro, e dá exemplos disso: «alguém a dormir sente frio nos pés, e uma memória de refrescar-se com os pés na água torna-se viva a partir das células do seu corpo. E ao mesmo tempos que essa imagem de refrescar-se numa corrente de água é criada no cérebro, muitas outras são reactivadas. E essas imagens são sentidas com mais ou menos força, de acordo com a proximidade de conexão com a principal imagem mental». 

Cascata refrescante e revigorante, por Bô Yin Râ.
 Isto é reconhecido pela maioria dos estudiosos do sonho, constituindo a teoria da organogénese, ou a teoria de que são as sensações físicas ou cenestésicas que suscitam as ou muitas das  imagens mentais associadas nos sonhos. E assim acrescenta «a  presença de um órgão adoentado pode estimular imagens mentais de maleitas nas partes correspondentes do corpo de quem sonha, mesmo que a doença ainda não se tenha manifestado no estado de vigília. A pressão em alguns canais nervosos por causa da comida absorvida pelo estômago e intestinos, que poderiam estimular sentimentos de medo ou ansiedade acordados, ao dormir-se podem transformar em pesadelos terríveis. Estes são sonhos genuínos e não diluídos no sentido da minha definição inicial.»
Dirá porém que «enquanto que o sonho "real" só pode registar os efeitos das sensações que ocorrem dentro das células sob a forma de imagens mentais, é possível igualmente um intensificar das forças anímicas, cuja natureza é completamente não física, que tenta influenciar o cérebro durante o sonho, tal como o fazem habitualmente durante o tempo de vigília.
Contudo, as alterações fisiológicas que provocam o adormecimento isolam essas pontos de contacto pelos quais as forças da alma seriam capazes de livremente dirigir ou influenciar as actividades do cérebro. As forças anímicas (nossas) podem activar essas imagens mentais, latentes no cérebro, que são necessárias para se comunicar com o sonhador, mas  são impotentes quanto a outras imagens periféricas estimuladas no processo.

O sonho, sendo activado a partir de uma dimensão que em si é bem distinta do sonhar, pode apresentar-se à consciência  numa experiência estruturada muito racionalmente. Mas pode também transformar uma experiência noutra num modo caleidoscópico, ou apresentar tais experiências de um modo completamente caótico.»

Estes tipos de sonho permitem aos que os estudam mais cuidadosamente discernirem aspectos interiores que na vida real o que sonha não se consciencializaria. É este tipo de influência que permite também aos investigadores, artistas ou pessoas sob desafios, descobrirem as soluções ou ultrapassarem-se enquanto sonham. Porém, mesmo estes sonhos podem em última análise ser vistos como não trazendo para a consciência de quem sonha nada que não tivesse já sido assimilado de um modo ou outro pela psique ou alma e que com a ajuda as imagens conservadas no cérebro se pode transformar numa experiência onírica.»
Qual é então o tipo de sonho que Bô Yin Râ com a sua profunda experiência e gnose dos mundos subtis e espirituais, vai considerar como sendo o que já na antiguidade era valorizado e do qual nos ficaram testemunhos arqueológicos, artísticos e literários, referidos nomeadamente na famosa incubatio? - A inspiração pelos daimons, deusas e deuses, mestres, espíritos celestiais...

Sócrates e o seu daimon, um exemplo e mistério meditado por muitos, tal Plutarco, Apuleio, Porfírio, ou entre nós Antero de Quental, Fernando Pessoa, Dalila Pereira da Costa.
«Assim como as forças da alma, tanto na vigília como no sono, são capazes de influenciar as células cerebrais, ainda que de modos bastante diferentes, assim também as imagens mentais de outras entidades - seja seres humanos incarnados fisicamente; criaturas habitando o mundo físico invisível; ou seres sublimes do reino do espírito - conseguem alcançar o cérebro da pessoa que dorme ou está acordada. A capacidade cerebral de assimilação pode ser significativamente maior durante o sono do que enquanto se está acordado, se o cérebro não estiver ocupado com outros tipos de experiências oníricas.      
Os sonhos descritos previamente foram trazidos à existência pelas células corporais ou pelas forças anímicas da pessoa que sonha, enquanto que nos sonhos que estamos agora a discutir entram seres conscientes individuais distintos ou separados de quem sonha, tentando-a influenciar através da sua própria vontade e com intencionalidade consciente.
Nestes sonhos estabelece-se um contacto, com o cérebro a agir como um transmissor entre o sonhador e o agente exterior. A informação transmitida pode variar imenso em valor, desde sugestões aparentemente neutras até ordens quase hipnóticas. Conselhos espirituais profundos e compreensões podem ser transmitidas desde modo.

Para além disto os que partiram desta terra estão temporariamente capazes, com a ajuda de seres espirituais sublimes, de alcançar a consciência dos que vivem ainda no corpo físico.

                                                           
Todos os sonhos proféticos pertencem a esta categoria tal como todos os sonhos de advertências e de experiências espirituais profundas que podem ser interpretados como ajuda garantida. Todavia, do mesmo modo, influências malévolas podem também ouvir-se e sentir-se».
Não é difícil discernir as duas fontes de influências, sobretudo para quem vive com ética, e quem as recebe, ao acordar sente que foi mais do que um sonho, embora o sentido de tal sonho possa ser obscurecido pelo facto tanto das forças não controladas da própria alma se quererem afirmar, como, mais prosaicamente, as sensações corporais inserirem as suas próprias imagens mentais.
Contudo, apesar da interferência, muitas vezes a verdadeira mensagem consegue ser ainda assim discernida. Isto porque as imagens que emanam do reino pessoal de alguém são também mais ou menos alteradas quando a transmissão de imagens externas acontece ao mesmo tempo que tais imagens pessoais estão a formar-se.
Um tipo de tradução das imagens mentais exteriores em experiências simbólicas oníricas acontece então, frequentemente difícil de ser interpretada, todavia reconhecível como tal.
Cita então Bô Yin Râ os famosos sonhos de Nabucodonosor, rei da Babilónia, que chegaram até nós até pelas imaginativas interpretações de um Império mundial, o Quinto, cristão, português ou europeu, gizadas por P. António Vieira e Fernando Pessoa, entre outros, o que nunca acontecerá certamente, acentuando que havia nas cortes reais de então especialistas na arte de interpretar sonhos, mas que tal habilidade exige intuição, mais do que conhecimento de formulários simbólicos ou dicionários interpretativos, os quais estão baseados em símbolos típicos recorrentes nos sonhos e em padrões de transformação de compreensões oníricas em séries de imagens mentais correspondentes. Mas se o sentido do sonho não for bem evidente, aconselha a deixá-lo ficar em descanso. Recomenda
todavia aos que se sentem seguros, e de que não sucumbirão a superstições interpretativas, a analisarem e interpretarem os seus sonhos pois são possíveis compreensões valiosas, já que tudo na vida pode servir a nossa vida espiritual.
Quanto à ideia que os sonhos representam entradas nos planos espirituais Bô Yin Râ esclarece que isso é uma ilusão, embora de facto o corpo espiritual de uma pessoa, enquanto ela dorme profundamente, pode estar nos planos espirituais e recolher experiências, «contudo apenas uma pálida reflexão dessas experiências é traduzida em simbolismo onírico que chega à consciência terrestre. Esses símbolos oníricos são o meio pelo qual a nossa natureza espiritual, da qual podemos estar ainda inconscientes na vida de vigília, tenta comunicar-nos compreensões espirituais
profundas

O acto de se entrar conscientemente com o corpo espiritual próprio no mundo, plano ou reino espiritual é contudo algo que Bô Yin Râ reserva ou atribui a muito poucos seres, aos que já antes de incarnarem fisicamente foram preparados para tal. Só esses espíritos, escolhidos pela Luz Primordial, é que servem verdadeiramente de pontes para os seus irmãos e irmãs aprisionados nas limitações da percepção sensorial terrena. É verdade que certos sonhos das pessoas podem realmente passar-se num organismo real subtil e em mundos reais invisíveis fisicamente, mas serão sempre uma espécie de sombra reflectida do Ser espiritual.

O último parágrafo deste capítulo consagrado aos sonhos e que nos estimula a reforçarmos, pela nossa vida espiritual, a ligação aos antepassados, guias, santas, mestres, anjos, seres celestiais e à Divindade a fim de  sermos ajudados ou inspirados em compreensões e intuições nos sonhos, e daí a recomendada prática pitagórica e da Filosofia Perene da revisão do dia e das orações, meditações e cantos antes de adormecer, é o seguinte: 

«Os que conservarem na sua alma o que disse, enquanto procuram discernir melhor o mistério dos sonhos, poderão ganhar realmente compreensões intuitivas tanto sagradas como sublimes.» 

Que assim seja! Aum!

De Bô Yin Râ: Sieg, Vitória.

sábado, 22 de outubro de 2022

Livros (2º) sobre Sonhos. PSICOLOGIA DO SONHO, 4ª parte e final, de Teobaldo Miranda Santos. Bibliografia em português, comentada por Pedro Teixeira da Mota.

Diz-me em que sonhas e dir-te-ei quem és...

Continuando no seu aprofundamento dos mistérios do sonho, dos quais ainda hoje  subsistem  alguns apesar dos grandes progressos científicos e tecnológicos, na parte final do 2º capítulo da sua Psicologia da Alma, Teobaldo Miranda Santos aborda as sensações orgânicas ou excitações somáticas que desencadeiam tanto cenas ou dados por vezes absurdos e caóticos nos sonhos, como igualmente a tentativa de explicação racionalizante ou dramatizante. A confissão de Voltaire aduzida: "Eu disse em sonho, o que dificilmente diria em vigília. Tive pensamentos reflectidos, apesar de eu não ter tomado parte neles. Combinei ideias com sagacidade e mesmo com algum génio, e isto sem vontade nem liberdade», presta-se a considerarmos que ambos não conseguiram integrar o seu inconsciente com eles próprios, ignorando que os sonhos, quer como continuidade de experiências da vigília, quer como processo organizativo de conteúdos e aperfeiçoador de comportamentos futuros, quer ainda como vivências intensas originais, implicam ou envolvem sempre todo o ser, e logo alguma vontade e liberdade, pese certamente estar diminuída a racionalidade terrena e social patente no estado de vigília,  e condicionada ainda pelo facto das memórias utilizadas provirem, cerebralmente, de três zonas especiais que as conservam e que hoje se vão compreendendo melhor: os gânglios basais e o cerebelo, para a memória implícita e profunda, ligada a emoções, aprendizagem e movimento; córtex pré-frontal, para a memória recente e activa (esquerdo-verbal, direito-espacial); e neo-córtex (actividades mais exigentes mentais), amígdala (conserva a emoção das memórias) e hipocampo (que é um depósito estratificado e indexado das memórias pronto a ser usado, quem sabe se por ordem alfabética, temática ou temporal...). As activações e germinações nos sonhos, utilizando material destas diferentes zonas, acontece certamente por subtis causalidades e intencionalidades anímicas...

Ora dos aspectos diminuídos, a atenção e a vontade foram consideradas por alguns como inexistindo nos estados de sono mais profundo, nomeadamente para Michel Foucault e Albert Kaploun, mas já Hervey de Saint Denis vivenciara e provara a possibilidade, muito bem explicada no seu incontornável livro Les rêves et les moyens de les diriger,  de se manter uma grande capacidade de se orientarem as cenas e situações dos sonhos, para isso recomendando: 1º, escrever-se os sonhos, 2º, «associar certas lembranças a percepções sensoriais, de modo que a volta dessas sensações, provocadas durante o sono, introduza em nossos sonhos, as "ideias-imagens", com as quais se achem entrelaçadas», e finalmente, 3º, o pensar em tais "ideias-imagens" permitirá sonhar com elas. Anote-se que «Vaschide, director do Laboratório de Psicologia Patológica da Escola, reconhece o valor científico e a admirável subtileza psicológica das observações de Hervey de Saint Denis, mas as considera possíveis de crítica»  e Teobaldo Miranda Santos vai seguir essa linha da influência da mera auto-sugestão, e admitir redutoramente que «a sistematização subconsciente do pensamento, às vezes, transforma-nos em comediantes sem que o apercebamos (...) e o observador, muitas vezes, prepara, imperceptivelmente, as soluções que pretende encontrar». Contudo, tal como Vaschide já comprovara com as pessoas que acordam às horas que querem, «uma ideia fixa [e diremos nós antes uma "ideia-imagem formulada com força de vontade e fé", em vez de se falar de mera "auto-sugestão"] pode alterar a natureza psico-fisiológica do sono, ao ponto de permitir a realização dos fenómenos motores da atenção», ou mesmo mais do que isso, como se observa nos conseguem desenvolver a sua auto-consciência e controle onírico, no que se denomina sonho lúcido.

Certamente que é complexo discernir o que é melhor para os diferentes fins ou objectivos dos sonhos em cada pessoa e a cada momento da sua vida, mas certamente que aumentar a auto-consciência, a atenção, a inteligência reflectiva  nos sonhos é sempre valioso. Já a orientação deles e a introdução de meios para os alterar tem de nascer não do ego mas de uma aspiração e intencionalidade espiritual. E o conseguir-se mesmo os sonhos lúcidos, algo que não conheço bem, pode certamente impedir de se realizarem os sonhos catárticos ou eliminadores necessários, pois como se sabe cada vez melhor hoje há uma função de optimização tanto do inconsciente como do cérebro, com a eliminação de fragmentos de informação desnecessários e a integração de imagens, ideias ou sentimentos úteis à sobrevivência evolutiva  individuante e integrante de cada ser. 

No subcapítulo sobre a dificuldade por vezes de se distinguir o sonho da realidade, e em que o critério é simplesmente o de despertarmos dos sonhos, enquanto da vigília ou realidade não despertamos, como afirmou Schopenhauer, a não ser, acrescento eu, que aceitássemos as  estados conscienciais de libertação denominados   kaivalyam e mukti, de yogis, mestres zens e buddhas, Teobaldo Miranda Santos traça um resumo da visão vedântica, indiana, referenciando a p. 128 da obra Das System des Vedanta, de Paul Deussen, mas da qual não é uma tradução mas apenas sua limitada embora interessante tradução-(in)compreensão:«A psicologia hindu separa o sonho, considerado como ilusão, da realidade, pois naquele ficam suspensas as leis do espaço, do tempo, da causalidade. [Eis uma 1ª afirmação errada, pois a realidade referida é o absoluto não dual, a Divindade em si, Brahman] Ao lado da consciência vigilante [ou de vigília, jagrat] e da consciência do sonho [svapna], existe um terceiro estado de consciência, o sono profundo [sushupti], no qual é abolida a dupla ilusão da vigília e do sonho. Se no sonho intervém, em lugar do Eu, um "Si-do-sonho", como força ordenadora e formadora, o sono profundo é o desaparecimento do jivatman, do "Si-vivo" da existência individual, no Paramatman [supremo espírito ou] (Brahman) do Si-supremo; a centelha une-se passageiramente ao "fogo" [à fonte ígnea divina]. Outras compreensões erradas ou pouco claras, pois no sono profundo não há essa união com a fonte, mas apenas uma cessação das actividades mentais internas. O quarto estado de consciência, ou Turya, é apresentado como aquele da consciência pura, observadora e testemunha e não limitada pelos veículos de experiência, mantida a tempo inteiro como testemunha pura, saksin, e é referida em algumas Upanishads e nos tratados advaiticos ou não-duais, Ramana Maharishi sendo um dos últimos mestres indianos mais conhecidos a vivenciá-la. Há quem veja nesse estado consciência individual unificada com a vasta consciência universal, e diz-se de alguns yogis que atingiram em vida tal estado, como Ramakrisna Paramahansa. Refere ainda a interiorização da consciência e da mente no prana ou energia interna e logo nas funções vegetativas, ecoando talvez a noção de que há uma entrada para o coração das energias mentais.

No Capítulo III, a Função do Sonho, Miranda Santos passa brevemente por alguns aspectos ligado a sonhos nos povos da Antiguidade clássica, mostrando como eles acreditavam na interpretação dos sonhos, mas partilha uma crença céptica: «desses tempos recuados até aos nossos dias, a superstição dos sonhos premonitórios não desapareceu da imaginação humana. Ainda hoje persiste na credulidade fácil das multidões a concepção ilusória do valor profético dos sonhos».  Apesar desta recusa em aceitar que possa haver pressentimentos e intuições do que se está a gerar, Teobaldo Miranda admite o contraditório, exemplarmente para os nossos dias de tentativas de imposição de narrativas oficiais e pensamento único, quando faz uma longa citação de Maurice Maeterlink:  «Os sonhos provém de um órgão ou conjunto de órgãos que, na vigília, se acha quase completamente sob o controle de nossa consciência ou de nossa razão, isto é, dessa parte do eu que se encontra separada do resto do universo, e com o qual só mantém  comunicações precárias e severamente vigiadas. No sono, esse órgão, do qual a razão nada mais seria, talvez, do que uma excrescência parasitária e tirânica, recupera, mais ou menos, a sua independência, escapa do império da personalidade, erra, à vontade e ao acaso, no plano do ilimitado, põe-se em contacto com tudo o que, na vigília, lhe é inacessível e perde, principalmente, as duas ilusões mais necessárias à nossa vida individual, ilusões que nos mascaram a realidade do eterno em tudo, o eterno presente e que nós chamámos o espaço e o tempo. Ora, continua Maeterlinck, experiências que se iniciam já permitem verificar que o espírito liberto pelo sono, no curso das suas peregrinações pelo eterno presente que é o tempo real, aí encontra tanto o futuro como o presente. Confunde-os. Não percebe mais a linha imaginária que os separa em nome da razão. Não distingue mais o que temos feito do que faremos, o que ainda está para se realizar do que já se realizou, e volta tão carregado de profecias, como de lembranças.»

Apresentada como comentário a um sonho premonitório relatado por J. M. Dunes no seu valioso livro An Experience with Time,  a visão da capacidade da alma se libertar do corpo e ter clarividência graças a certos órgãos (e creio ser os centros energéticos ou chakras) da psique, partilhada por Maeterlink, é certamente demasiado optimista,  pelo menos para a humanidade no estado actual tão condicionada pela ignorância, a manipulação e a opressão,  as quais ainda seriam mais destrutivas se a razão não fosse também cultivada. Mas certamente que vencermos o condicionamento excessivo do tempo e do espaço e tentarmos viver mais seja no presente, seja em sintonia expansiva consciencial com o infinito, como as disciplinas ou práticas espirituais vão permitindo um pouco, é importante.

Ora Teobaldo desvaloriza estas capacidades de clarividência e premonição pois para ele os sonhos têm origens sobretudo nas impressões cenestésicas e nas amplificações afectivas e coloridas que elas geram, admitindo de facto algum tipo de profecia quanto a doenças que se estavam a gerar, mas recusando o «prever acontecimentos futuros do mundo exterior», numa posição algo petrificante e limitadora, como se a psique humana só pudesse sentir e intuir o seu corpo, quando de facto a sua consciência não está tão limitada e fechada no corpo. Teobaldo é mesmo forte em tal crença errada:«Os psicólogos que têm estudado, cientificamente, o sonho são unânimes em afirmar que as imagens oníricas fornecem apenas conhecimentos do passado e se referem somente  factos relacionados com a nossa personalidade, sem nenhuma projecção exterior. Para Freud, por exemplo, o sonho é, antes de tido, uma realização de desejos e constitui um processo regressivo, arcaico sempre relacionada com o passado».

 E se de facto a descrição de Maeterlink também é, em sentido oposto, exagerada, ao admitir a capacidade do ser humano, no sonho, liberto dos condicionalismos da razão, estar no eterno presente e logo poder ora trazer lembranças do passado ora antecipar profeticamente acontecimentos futuros, isso não invalida o facto de que  a psique e a visão interior do ser humano, expandida, consiga discernir as linhas de força que se estão a preparar para coalescerem num determinado acontecimento.

No 2º subcapítulo, após ter repudiado a capacidade de as pessoas durante a noite terem acesso a informações e a energias originais ou ao que lhes permita prever o futuro, aborda a crença comum nos grandes filósofos da Antiguidade de os sonhos servirem ao ser humano para se auto-conhecer melhor, nem que seja das suas zonas mais obscuras ou inconscientes, e cita Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles, Artemidoro (autor do 1º dicionário de sonhos, bem editado pela editora espanhola Gredos), Cícero e Lucrécio, dos quais transcrevemos o início: «Homero, por exemplo, foi um dos primeiros a entrever que o sonho poderia exprimir não só as forças irracionais que existem no ser humano, como o poder das suas faculdades racionais. O sonho, dizia ele, conduz a duas portas: uma, de chifre, é a porta da Verdade; outra de marfim, é a porta do Erro e da Ilusão (esses dois símbolos referem-se às propriedades de transparência do chifre e de opacidade do marfim). Sócrates, citado por Platão no Fedro, admite que o sonho é a voz da consciência e que, portanto, é da mais alta importância tomar essa voz a sério e seguir suas injunções.» Entre nós, no séc. XIX, Antero de Quental foi um forte propugnador da audição da voz da consciência (como já desenvolvi noutros textos, nomeadamente quando recomenda a Fernando Leal que a busque e siga), para além de um sonhador metafísico de elevada qualidade, como os seus sonetos partilham.

Poeta metafísico da noite e do sonho, da morte e do amor, e autor de uma antologia do conto infantil, com o seu belo poema as Fadas, já trabalhado neste blogue: Antero de Quental, "um génio que era um santo", no dizer de Eça de Queirós, seu imortal biógrafo no In Memoriam de 1896...

Quanto aos efeitos psíquicos ou efeito psicológico especial dos processos oníricos, que aborda no III subcapítulo, recolhe algumas visões ou compreensões valiosas discernidas e valorizadas por alguns pensadores e psicólogos e comenta-as com qualidade: Assim, Goethe:  «vislumbra no sonho uma actividade útil à vida espiritual do ser humano. Na sua opinião, o sonho tem por fim despertar nossas tendências inatas para a saúde e felicidade», de modo a que se acorde ou «eu me levantava bem disposto e feliz».

De Burdach, uma visão bem descontraída e divertida dos sonhos: «para ele o sonho representa um estado no qual o espírito [ou a individualidade] se refaz e adquire forças para o trabalho de vigília. Por isso aceita a opinião de Novalis sobre a função dos processos oníricos."O sonho, diz este, nos defende contra a regularidade, a monotonia da vida; é um livre divertimento da nossa imaginação, que mistura, então, todas as imagens da vida e interrompe o ritmo sério da vigília para uma alegre recreação; certamente, envelheceríamos mais depressa sem os sonhos [eis uma boa razão para querer sonhar mais e melhor...]; se não consideramos o sonho com um dom imediato de Deus, pelo menos, o julgamos como um trabalho pitoresco e um companheiro cordial da existência».

Dois sábios ocidentais, Henry Corbin e C. G. Jung, em capa de um bom livro

A compreensão, com citações de Carl Gustav Jung, a quem dedica duas páginas, é em algumas partes valiosa, nem que seja pelo que se discorda: «O indivíduo acorda e termina o seu sonho, continua Jung, quando o enredo deste atinge seu ponto culminante. O sonho, tendo esgotado seu tema, põe um ponto final no seu desenvolvimento. O despertar  é, provavelmente, devido à cessão repentina da fascinação [algo raro, pois em geral observamos e interagimos, com mais ou menos amor] exercida pelo sonho; a energia, assim liberada, acarreta a volta à vigília. Daí o habitual sobressalto que se experimenta ao fim de certos sonhos». Já de Adler realça a sua visão do sonho como uma manifestação do instinto do poder e partilha algumas das interpretações que faz, de facto bem discutíveis: «os sonhos de subir e voar seriam características das pessoas que aspiram uma posição superior à de todas as outras. Todavia, se sonham com isso é porque não estão seguras de sua capacidade para triunfar». Dá algumas linhas sobre a visão de «Paul Bjerre, que considera o sonho como uma actividade psíquica de assimilação. Essa função do drama onírico compreende uma série de operações», caracterizando-as como um processo  de liquidação, de despertar, de revisão de valores, de decisão, de modificação de vida afectiva, de élan e conquista e, finalmente, de assimilação e integração.

Para terminar este capítulo Teobaldo Miranda Santos confessa-se em cinco parágrafos finais, donde extraímos o mais significativo: «Na nossa opinião, o sonho parece representar, para a vida psíquica, o mesmo que o sono representa para a vida orgânica: um processo básico de repouso e recuperação». Bem lúcida é a sua desconfiança do esquematismo dos dicionários interpretativos: «Os símbolos não constituem uma linguagem universal, sempre com a mesma significação. Em cada pessoa os símbolos podem representar ideias ou sentimentos diversos, de acordo com  história psicológica individual. O sonho de nudez por exemplo, que Freud interpreta como um símbolo de exibicionismo, pode, às vezes significar, como observa Erich Fromm, sinceridade e franqueza.  Tudo depende dos motivos e intenções inconscientes que orientam os pensamentos do indivíduo. Nessas condições, os sonhos só podem ser interpretados depois de um conhecimento preciso da vida psicológica do sonhador. Jung critica, com razão, a monomania sexual e o simplismo técnico da interpretação freudiana. Na sua opinião, uma interpretação científica do sonho deve  seguir as seguintes etapas: descrição do estado de consciência actual, descrição dos acontecimentos anteriores, inventário do contexto subjectivo, em caso de motivos arcaicos, recurso a paralelos mitológicos e, enfim, nas situações complicadas, recurso a informações objectivas junto a terceiros», e sobretudo, acrescentaremos nós, discernir os desejos, os receios, as aspirações e sobretudo as afinidades e linhas axiais que a integram enquanto corpo, alma e espírito e enquanto participando no corpo místico da humanidade, no (actualmente denominado) Campo (Field) unificado de energia informação e consciência, a panpsique ou alma mundo dos antigos.


O IV capítulo e final, a Criança e o Sonho, apoia-se em Sílvio Barreto e Jean Piaget, para quem o animismo infantil é o resultado de uma confusão, ou, melhor, de uma falta de diferenciação entre o psíquico e o físico. Considerando pela sua experiência que há muita analogia entre processos mentais de sonho e os da criança, aduz que «Freud, o famoso criador da psicanálise, considera o sonho como uma regressão à vida mental da infância», e deixando-se influenciar por ele, Giessler e Havelock Ellis, ou apoiando-se neles, afirma, erradamente: «O sonho é uma regressão à mentalidade infantil. Quando sonhamos, voltamos a pensar, a agir e a sentir como crianças». Porque «a vida mental da criança é rica de actividade simbólica» e «a expressão simbólica é uma das formas mais comuns do pensamento onírico (...)» Não compreendeu como os símbolos servem de pontes entre a multidimensionalidade de planos de consciência e e de existência e como eles são moldes ou receptáculos de coisas, ideias, energias, seres, desse modo mais facilmente acessíveis.  Outra semelhança aponta: a crença das crianças nas suas ideias e « no sonho essa crença é também contínua e completa. A realidade dos factos é sempre admitida, mesmo quando esses factos não se subordinam aos princípios fundamentais da lógica». Ainda acrescentará mais dois aspectos semelhantes, o egocentrismo e o sincretismo («incluir num mesmo esquema  global e subjectivo, elementos diversos, sem subordinação ao critério da analogia e relações causais comuns»]  e  na vida mental das criança e dos sonhos, escrevendo em seu apoio:«Jean Piaget no seu magnífico [!] trabalho sobre Le Language et la Pensée chez l'enfant, estabeleceu uma comparação entre o pensamento autístico do psicótico e do homem primitivo, o pensamento egocêntrico da criança e o pensamento social do adulto».
Assim vê ele  o egocentrismo como uma tendência dominante no pensamento onírico. A  personalidade do sonhador é o centro de toda a actividade psicológica do sonho. Freud chama esses egocentrismo de "sacro-egoísmo". Todo o sonho é assim um reflexo da personalidade do sonhador. É, como diz, De Sanctis, "o espelho mais fiel de nós mesmos". A facilidade extraordinária com que o sonho funde e justapõe  imagens de origens diversas parece ser uma actividade muito próxima do sincretismo infantil. Krestener chama essa actividade do sonho de "aglutinação" e Freud de "condensação". E assim como a criança procura explicar, sob a influência do sincretismo, a seu modo, os dados da realidade exterior, que ela reúne arbitrariamente, o espírito [ou antes o eu] que sonha também busca justificar, de uma maneira sui-generis, as representações que se fundem na tela movediça de sua imaginação. E tanto na criança, como no sonho, essas tentativas de justificação racional são, geralmente, incongruentes, absurdas, ilógicas, e sempre relacionadas com a própria personalidade.» 
Vemos aqui de novo uma certa nivelação por baixo de todos os sonhos, pois se de facto devemos estar atentos, pelo conteudo dos nossos sonhos, para discernirmos se o nosso ego, ou mesmo o inconsciente, está demasiado egoísta ou egocentrista, tal não implica que tenhamos muitos sonhos de sociabilidade, diálogo, ensino e aprendizagem. Também o carácter lúdico e o tomar-se como real o que é onirico ou imaginativo, são realçados por ele na vida da criança, reconhecendo contudo acertada mas parcelarmente, que «os sonhos da criança, diz Sophie Morgestern, permitem à mesma exprimir suas angustias, seus temores, seus sentimentos de inferioridade, bem como vingar-se dos seus inimigos reais ou imaginários, executar uma auto-punição e desempenhar um papel importante». Parcelarmente, porque não refere os aspectos oníricos que testemunham o seu amor e dinamismo, e assinale-se uma certa contradição com a alogicidade ou irracionalidade atribuída em geral aos sonhos, pois vemos a criança a  gerar imagens e reacções a elas lógicas, necessárias e úteis. 
Na parte final há algumas aproximações aos contos de fadas e de heróis, vendo em tais «histórias maravilhosas nada mais que uma criação míticas dos povos primitivos, transfiguradas pela experiência milenar da humanidade para entreter os arroubos da fantasia infantil», o que é pouco e limitador, embora afirme, e logo reconheça, que as personagens do conto encarnam virtudes ou defeitos que são exaltados ao mais alto grau. Essas qualidades estão sempre em oposição e em conflito, o que empresta ao drama em acção um colorido emocional vivo e intenso (...) essas qualidades se acentuam pelo contraste, e os acontecimentos se desenrolam de maneira que, apesar das dificuldades, dos obstáculos e vicissitudes, a virtude triunfe sobre o vício, a bondade sobre a maldade», ecoando ou reflectindo o dito milenário indiano: "O Dharma prevalecerá",, isto é o Bem, a Ordem,  Justiça e Providência Divina triunfarão, certamente com a nossa luta e as inspirações e bênçãos dos que já partira, dos mestres e dos anjos, e que tanto na vida como nos sonhos intervêem.   Faltou-lhe referenciar ainda como os contos de fadas reflectem testes e provações,  protecções e iniciações que também que vivenciamos tanto na realidade física sensorial como nos sonhos e nos mundos subtis e espirituais.
Boas reflexões e meditações, valiosos realinhamentos, sonhos e imagens no olho interior, no Dharma divino...
 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Livros (2º) sobre Sonhos. PSICOLOGIA DO SONHO, 3ª parte, de Teobaldo Miranda Santos. Bibliografia em português, comentada por Pedro Teixeira da Mota.

Incubatio, dormir num local sagrado para se ser inspirado era comum na Antiguidade, e até entre nós em S. Miguel da Mota, no santuário de Trebaruna ou Endovélico.

Nos sub-capítulos seguintes do 2º capítulo  da sua obra Psicologia da Alma, Teobaldo Miranda Santos vai equacionar se durante toda a noite há actividade cerebral ou não, admitindo que sim, algo que hoje está comprovado, ainda que com níveis e ritmos diferentes, conforme as fases do sono. E considera que nos lembramos pouco dos sonhos na vigília devido a tal, e às suas características frequentemente alógicas e sem coordenadas espacio-temporais, para além da censura interna, por Freud considerada «sentinela psíquica que, mesmo no sonho, velaria os domínios da consciência contra a invasão dos desejos recalcados do inconsciente». Para Freud será o ego e o super-ego, reflexo da autoridade e do valores do pais e mestres, a actuar como tal nível repressivo moral,  embora seja bem complexo determinar como ele se forma e que auto-organização e determinação ele possui, ou se tal não será antes apenas um mecanismo de harmonia do sistema psico-fisiológico humano, com controles determinados pelo próprio inconsciente unido ao ego ou mesmo à individualidade (com os seus valores mais elevados) que o contém ou abrange, ou nele está envolvida ou condicionada. O nível de integração holística e racional, ou individuação de cada pessoa é portanto fundamental, pelo que especular-se em termos gerais pode ser bastante superficial. E essa «necessidade instintiva de racionalidade» patente nos sonhos leva Teobaldo a afirmar mesmo, em contradição com as suas primeiras descrições do inconsciente e do sonho como alógico, que «ainda que alterada pelas condições psico-fisiológicas do sono, essa tendência inata do psiquismo humano continua a influir sobre os pensamentos e é pela sua acção que se explica a coordenação lógica às vezes notável de certos sonhos».

 Quanto ao sentimento ou ideia que nos ocorre de que já sonhamos ou que já vimos, considera-os mais como arranjos da nossa necessidade de racionalizar ou coordenar, devido à função explicadora  do ego, que «inventará então os antecedentes adequados para justificar a situação presente, e por adesão intelectual acreditará que esses antecedentes realmente existiram». E logo a seguir desfere um ataque forte mas justo ao fundador da psicanálise: «Freud dá ao fenómeno uma explicação de uma originalidade absurda e desconcertante. "Há sonhos, diz ele, de paisagens ou localidades, que são acompanhados de uma afirmativa formulada no próprio sonho: "Já estive neste lugar". Mas esse já visto tem no sonho um sentido particular. Essa localidade é sempre o órgão genital materno; não existe outro lugar do qual se possa dizer, com tanta certeza, já ter sido permanecido" (Freud, p. 256). Esta explicação falsa e precipitada é um exemplo eloquente da preocupação de Freud de encaixar, de qualquer maneira, a realidade dentro dos seus esquemas preestabelecidos.» Contudo, Teobaldo, lúcido contra o reducionismo sexual freudiano,  não quer reconhecer a memória "interconsciente, ou que se preserva no sonho e que é quase ventre e útero dos sonhos, como me parece existir, e apoia-se antes em Yves Delage para justificar a origem de tal sensação ou apreciação onírica do "já sonhado" ou "já visto" em apenas sensações cenestésicas e em «encontrar-se em presença do mesmo estado afectivo que acompanhou uma percepção anterior da qual já não se recorda».

Quanto às linhas de força que ligam entre si as sucessivas imagens ou cenas dos sonhos, Teobaldo Miranda Santos apresenta algumas das hipóteses explicativas de diversos psicólogos: ou sem nexo e logo por simples assonâncias verbais, ou seja, conforme a semelhança dos sons de certas palavras, ou, como Strümpel, Wundt e Weygant consideram,  serem as leis ordinárias da associação de ideias que as encadeiam, evocando novas séries de imagens. Hervey de Saint Denis, um dos pioneiros de uma interpretação dos sonhos mais profunda, inclina-se mais para ver na ideia em si o motor determinante, a qual extrai do sub-consciente clichés-lembranças, em maior ou menor ordem. 

 

A estes factores associativos das cenas oníricas, acrescenta Teobaldo Miranda Santos as imagens mentais que existem em nós sobre ideias gerais, a que podemos adicionar hoje as que as televisões e narrativas oficiais injectam nas pessoas, e ainda as forças afectivas e sentimentais, sendo para Michel Foulcaut  a emoção "o poder organizador do sonho", a par da "força evolutiva de cada quadro ou cena" e, finalmente,  baseando-se em Freud, os complexos sexuais recalcados e não só, pois para ele «toda a actividade psíquica é símbolo do inconsciente, e assim lapsos, paixões, sonhos seriam apenas expressões do nosso Inconsciente, recalcante e recalcado».

Freud neste aspecto aprofundou bem nos sonhos a dramatização, elaboração ou manifestação dos conteúdos latentes em manifestos, sobretudo  por imagens concretas que são sinais ou símbolos dos complexos afectivos ocultos. Cita ainda Henry Ey, exagerado na sua acentuação da ficção patente nos sonhos como «o resultado da decomposição do pensamento, da regressão da consciência», embora reconheça nesse «trabalho imaginativo, a colaboração do sonho e o génio estético». Onde sai destas desvalorizações, é ao citar ainda Henry Ey, quanto este diz que «é o sonho para onde convergem todos os aspectos irreais ou superreais», dando-nos a hipótese de vermos a possibilidade da existência de níveis e capacidades mais elevadas dentro da entidade humana, superreais, que podem estar por detrás da gestação, visão ou interacção dos  sonhos mais sentidos, marcantes, maravilhosos, que nos alegram mesmo.

Para vários psicólogos e estudiosos são sobretudo as impressões sensoriais (externas e internas) a fonte ou causa imediata das imagens oníricas. Todavia a constante actividade onírica que levou Hervey de Sain Denis e Vaschide a afirmarem que não há sono sem sonho implica mais do que isso.  E assim Hervey notou que ao lembrar-se durante o dia dos sonhos, ocorria também nos sonhos uma lembrança do que já sonhara antes, o que de facto representa uma auto-consciência maior a permanecer ou a conseguir manter-se pelo eu nos dois mundos, o da vigília e do sonho, sem dúvida algo que mestres como Gurdjieff e Ouspensky, além dos indianos advaiticos e dos mestres persas, realçaram e trabalharam.

Gurdjieff (1866-1949): Não sejas um zombie ou um manipulado pelas narrativas e ordens oficiais: auto-consciencializa-te, desperta.

Este papel da memória, ou da reminiscência, acentuado por ele, foi também discernido por outros autores, levando por exemplo  Vaschide a afirmar que a memória «reproduz de preferência os acontecimentos da véspera ou dos dias precedentes», ou para Kaploum os três dias anteriores.  Já para Freud, e estranhamente dada a sua valorização da inteligência do inconsciente e das memórias da infância, a imediatidade era ainda maior: «Se procurando a origem os elementos do sonho, eu examino o que fornece a minha própria experiência, afirmarei logo que todo o sonho está ligado aos acontecimentos do dia que se acaba de escoar. Eu penso então que cada um dos nossos sonhos é provocado por um acontecimento, depois do qual não dormimos ainda uma noite». 

Não me parece acertada esta afirmação, pois dentro de nós existem tantos núcleos e níveis de interesses e de afectividade, que o seu crescimento e maturação (ou frutificação num sonho) não implica forçosamente uma impressão ou sensação obtida na véspera, e nisto distancio-me de Teobado que afirma, a partir da sua experiência pessoal, diz, que «o sonho pode tomar os seus elementos em qualquer época de nossa vida, contanto que uma associação de idéias os relacione com factos ou actividades da véspera

Teobaldo Miranda Santos, mostra ainda mais o posicionamento de Freud, «os acontecimentos da véspera influem sobre a génese do sonho, mas somente quando podem suscitar desejos de natureza sexual, inconscientes, reprimidos e de origem infantil. A realização disfarçada desses desejos é o que culmina cada sonho. Mas só os desejos inconscientes possuem energia psíquica capaz de engendrar o processo onírico.»  E o dito de Freud: «O desejo representado pelo sonho é necessariamente infantil», que Pierre Janet contestou, é também criticado por Teobaldo e com razão pois «o sonho pode exprimir, não apenas os desejos, mas também os receios, os temores, as preocupações, as inquietudes e as ansiedades conscientes e inconscientes». Ao que podemos acrescentar as aspirações, as crenças e esperanças, as viagens astrais e os encontros de almas, ou das suas energias psíquicas, nos mundos oníricos ou subtis, que existem tanto dentro como fora de nós. Sonhamos num universo subtil e interior mas também planetário e em que muitos interagem...

Também é discutível a desvalorização dos aspectos afectivos e emocionais nos sonhos, que seriam muito mais dependentes de cenestesias orgânicas, e de factos e ideias do dia anterior. Isto é como considerar que em cada noite somos apenas reflectores do dia que passou e não peregrinos já com uma longa viagem e passado, e com milhares de sonhos e milhares de aspectos que nos interessam e que amamos ou repudiamos, ou ainda com conexões a outros seres ou a outros planos.

Discutível também ser «uma ilusão supor que o sonho realize impulsos e desejos reprimidos pela educação. Sem dúvida, a dissociação e a regressão do psiquismo onírico permitem  que as pulsões do inconsciente e do instinto aflorem à tona da consciência. Mas quando aí surgem, se despem da sua carga afectiva e vestem o manto fantasmático da alucinação. O sonho é pura ficção, é simples fantasmagoria, embora reflicta, em seus quadros simbólicos e alucinatórios, os refolhos ocultos da personalidade e o drama existencial do ser humano».» Eis mais um compreensão limitadora de Miranda Santos: então não há sonhos com cargas emotivas fortes, seja de amor, seja de medo, seja de luta ou repulsa? Então não há efeitos catárticos nos sonhos?  Então não há visões iluminantes, ou encontros quase que reais de tão sentidos e vividos?

Miranda Santos erra quando não se apercebe que nos sonhos somos inteiros ainda que em certos aspectos, em relação à lucidez e capacidade intelectual do estado de vigília, diminuídos. Não faz sentido o que ele diz: «Na verdade não agimos no sonho. Somente os nossos pensamentos é que se exprimem, plasticamente no cenário da nossa imaginação. O sonho é apenas a representação alucinatória dos nossos pensamentos», pois no sonho todos os nossos níveis de ser coexistem e interagem em dinamismos e intencionalidades que escapam a quem não os observa e medita mais sensível e profundamente, e procura que a sua vida de acção, afecto, pensamento e intencionalidade esteja alinhada com a sua maior evolução consciencial e espiritual possível, para o qual os sonhos ou as imagens que recebemos ao acordar são vias de transmissão de forças e ensinamentos. 

De Bô Yin Râ...

Thierry Meyssan (do Reseau Voltaire). What Are the United States and Germany Playing At?

 What Are the United States and Germany Playing At?

                                   

What are the United States and Germany playing at?

Before our eyes, Germany, which has just lost its supply of Russian gas and will only be able to obtain at best a sixth in Norway, is sinking into the war in Ukraine. It has become the hub of the secret actions of NATO which acts, ultimately, against it. The current conflict is particularly opaque when one ignores the links between the US Straussians, the revisionist Zionists and the Ukrainian integral nationalists.

                                                       ****

The war in Ukraine is acting as a decoy. We see only it and have forgotten the major conflict in which it is situated. As a result, we do not understand what is happening on the battlefield, nor do we correctly perceive the way the world is reorganizing and particularly the way the European continent is evolving.

It all started with the arrival of Joe Biden in the White House. He surrounded himself with former collaborators he had known during his vice-presidency: the Straussians  [ 1 ] . This small sect varies in political color, either Republican or Democrat, depending on the party of the incumbent president. Its members, almost all Jews, follow the oral teaching of the late Leo Strauss. They are convinced that men are wicked and democracies are weak. Plus: they weren’t able to save their people from the Holocaust and won’t be able to next time. They think they can only survive by constituting a dictatorship themselves and maintaining control. In the 2000s, they formed the Project for a New American Century. They had called for a “New Pearl Harbor” that would shock the minds of Americans so much that they would manage to impose their views on them. These were the attacks of September 11, 2001.

This information is shocking and difficult to accept. There are, however, many works considered serious on this subject. Above all, the progression of the Straussians since 1976, date of the appointment of Paul Wolfowitz  2 ] to the Pentagon, until today largely confirms the worst concerns. In Europe, the Straussians are not known, but the journalists who support them are. They are called “neo-conservatives”. It must be recognized that Jewish intellectuals have never supported this tiny Jewish sect.

Let’s get back to our story. In November 2021, the Straussians sent Victoria Nuland to summon the Russian government to stand behind them. But the Kremlin answered them by proposing a Treaty guaranteeing peace, that is to say by contesting not only the Straussian project, but also the alleged security policy of the United States  [ 3 ]. President Vladimir Putin has questioned the extension of NATO to the East, which threatens his country, and the way in which Washington continues to attack and destroy States, in particular in the “Broader Middle East”.

The Straussians then deliberately provoked Russia to get it out of its hinges. They encouraged the Ukrainian “integral nationalists” to bombard their compatriots in Donbass and to prepare a simultaneous attack on Donbass and Crimea  [ 4 ]. Moscow, which had no confidence in the Minsk Accords and had been preparing for a global confrontation since 2015, felt that the time had come. 300,000 Russian soldiers entered Ukraine to “denazify” the country  [ 5 ]. The Kremlin rightly considers that the “integral nationalists”, who had made an alliance with the Nazis during the Second World War, still share their racial ideology.

Again, what I write is shocking. The reference books of Ukrainian nationalists have never been translated into Western languages, including Dmytro Dontsov’s Nationalism. If no one knows what Dontsov did during World War II, everyone knows the crimes of his followers, Stepan Bandera and Yaroslav Stetsko. These people were devoted to Chancellor Adolf Hitler. They encouraged and sometimes supervised the murder of at least 1.7 million of their compatriots, including 1 million Jews. At first glance, it seems difficult to believe them allied with the Straussians and the Jewish President Zelensky, as declared by the Russian Minister of Foreign Affairs, Sergei Lavrov. Indeed, Israeli Prime Minister Naftali Bennett immediately took a stand against them  [6 ]. He even advised President Zelensky to help the Russians cleanse his country of them. The balance of power is such that his successor, Yaïr Lapid, while sharing Bennett’s ideas and refusing to supply arms to Ukraine, maintains an Atlanticist discourse. However, we remember that Paul Wolfowitz chaired an important congress in Washington with Ukrainian ministers, pledging to support the fight of the nationalists against Russia  [ 7 ] .

Yet the links between the Ukrainian “integral nationalists” and the “revisionist Zionists” of the Ukrainian Vladimir Jabotinsky are historic. They negotiated an agreement, in 1921, according to which they would unite against the Bolsheviks. Given the long succession of pogroms which the “Ukrainian nationalists” had already perpetrated, the revelation of this agreement, once Jabotinsky had been elected to the Board of Directors of the World Zionist Organization, provoked a unanimous rejection from the Jewish Diaspora. They took over Jabotinsky’s militia in Palestine, calling him a “fascist” and a “possible Nazi”. Subsequently, Jabotinsky went into exile in New York where he was joined by another Pole, Bension Netanyahu, the father of Benjamin Netanyahu, who became his private secretary [8].

After World War II, the mastermind Dontsov and the two chief assassins, Bandera and Stetsko, were picked up by the Anglo-Saxons. The first was exiled to Canada, then to the United States despite his past as administrator of the Reinhard Heydrich Institute in charge of coordinating the “final solution”  [ 9 ], while the other two were in Germany to work on the CIA’s anti-communist radio  [ 10 ]. After Bandera’s assassination, Stetsko became co-chairman (with Chiang Kai-shek) of the Anti-Communist World League in which the CIA unites its favorite dictators and criminals, including Klaus Barbie.

Back to our topic. The Straussians have nothing to do with Ukraine. What interests them is the domination of the world and therefore the lowering of all the other protagonists: of Russia [of China] and of the Europeans. This is what Wolfowitz wrote in 1992, calling these powers “competitors”, which they are not  [ 12 ].

The Russians are not mistaken. That is why they sent very few troops to Ukraine. Three times less than the Ukrainian army. It is therefore stupid to interpret their slowness as a disappointment when they reserve themselves for the direct confrontation with Washington.

                        
Speaking on October 16 at a volunteer swearing-in, Hungarian Prime Minister Viktor Orbán said: “Anyone who thinks that this war will end with Russian-Ukrainian negotiations does not live in this world. The reality is different”. According to him, only a US-Russian negotiation can put an end to it.

Today, the Straussians pushed for the sabotage of the Nord Stream gas pipelines. Contrary to what some claim, it is not a question of breaking the Russian economy, which has other customers, but German industry, which cannot do without it  [ 13 ]Normally Berlin should have reacted to the crime of its overlord. Nay! It’s quite the opposite. As soon as Olaf Scholtz arrived in the Chancellery, his government set up a vast system aimed at “harmonizing the news”  [ 14 ]. It is supervised by the Minister of the Interior, the Social Democrat Nancy Faeser. All Russian media aimed at Western audiences were banned by the “democracies” from February 24, 2022, i.e. from the application by the Russian army of Council Resolution 2202 of security. From now on, in Germany, quoting this resolution and sharing the Russian interpretation is likened to “propaganda”. It is very surprising to see the Germans scuttle their institutions themselves. In the 20th century, Germany, which had been the beacon of Science and Technology before the First World War, became in a few years a blind country which committed the worst crimes. In the 21st century, when its industry was the most efficient in the world, Germany is blind again for no reason. The Germans themselves are ratifying their fall to Poland, the fall of the European Union to the Three Seas Initiative (Intermarium) [15].

For their part, the Straussians use their privileges in Germany. The US military bases there have complete extraterritoriality and the federal government has no right to limit their activity. Thus, when in 2002 Chancellor Gerhard Schröder opposed the Straussian war in the Middle East, he could not prevent the Pentagon from using its facilities in Germany as rear bases for its invasion and destruction of Iraq.

It was in Ramstein (Rhineland-Palatinate) that the Defense Contact Group of Ukraine met. The delegates of the fifty or so invited states, after having been extorted for providing Kyiv with a multitude of weapons, were entitled to explanations on the Resistance Operating Concept (ROC). It is a question of reactivating for the umpteenth time the stay-behind networks set up at the end of the Second World War (ER: Gladio)  [ 16 ]. At the time, they were first created by the American CIA and the British MI6, before being integrated into NATO. The former Nazis and the Ukrainian “integral nationalists” were the main component.

The current stay-behind network has been coordinated since 2013 by NATO at its base in Stuttgart-Vaihingen (Baden-Württemberg) where the US Special Forces for Europe (SOCEUR) reside. It is a question of creating a government in exile and of organizing sabotage on the model of what General Charles De Gaulle and the prefect Jean Moulin did during the Second World War. Otto C. Fiala added to this the non-violent demonstrations tested by Professor Gene Sharp in the Eastern bloc, then during the “colored revolutions”  [ 17 ]. Remember that, contrary to what he claimed, Gene Sharp has always worked for the Atlantic Alliance  [ 18 ]. The first manifestation of the Ukrainian Stay-behind took place on October 8 with the sabotage of the Crimean Bridge over the Kerch Strait.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Livros (2º) sobre Sonhos. PSICOLOGIA DO SONHO, 2ª parte, de Teobaldo Miranda Santos. Bibliografia em português, comentada por Pedro Teixeira da Mota.

Ao iniciar a Natureza do Sonho, 2º capítulo ou parte da sua obra Psicologia da Alma, o notável pedagogo brasileiro Teobaldo Miranda Santos dá-nos uma visão algo assustada do inconsciente, talvez  influenciado por sua formação cristã metodista, pois afirma a passagem da etapa oscilante e espectacular do estado hipnagógico, com imagens isoladas, independentes e caleidoscopias, para um encadeamento das «cenas do romance onírico. A desintegração mental produzida  pelo relaxamento progressivo do sono, torna o espírito [a alma semi-consciente] escravo [!!] das imagens, que ele mesmo cria [!!], e fá-lo regredir a formas psíquicas primitivas e tumultuárias onde dominam, omnipotentes, o inconsciente e o instinto. Quase todas as funções mentais, que asseguravam o equilíbrio da consciência e da personalidade e permitiam a sua adaptação ao mundo das realidades e dos valores se desarticulam, se fragmentam se dissolvem, de modo mais ou menos completo, conforme a curva do sono.» 

E sobretudo, acrescentaremos, conforme o grau evolutivo ou a auto-consciência das pessoas. Basta pensar se há pessoas em que os sonhos são um afogamento interior, para outras eles são sonhados mais ou menos racionalmente ou mesmo como sonhos lúcidos ou dirigidos voluntariamente. Ora a visão negativizante e  diminuidora do eu ou espírito que se conserva durante os sonhos vai ser ainda mais dramaticamente pintada por Teobaldo Miranda Santos: 

«Sem o apoio da síntese mental, sem o auxilio da massa organizada dos conhecimentos, o espírito volta a estádios arcaicos, confusos e sincréticos do pensamento, e entra em acção uma consciência elementar, obscura e indiferenciada, jungida às pulsões grosseiras do instinto e inteiramente hipnotizada pela marcha alucinatória das imagens». 

Francisco Goya, pesadelos nos sonhos, ou os seres atemorizadores ou "monstruosos" que karmicamente atraímos ou geramos....

Que visão mais negativa dos sonhos, diremos, que erro em não distinguir o nível psíquico integrado ou individuado de uma pessoa, pelo que se torna impossível aplicar a descrição anterior a seres que tem uma vida já controlada ou integrada quanto às suas pulsões básicas e que portanto não regridem para uma consciência elementar, presa a pulsões grosseiras e hipnotizada pelas imagens. E discordamos também que seja uma marcha alucinatória de imagens, antes a vendo eu como um desenrolar de uma vivência interior convocada ou gerada de diversas influências a qual o eu onírico observa e vivencia com certa lucidez, consciência e contextualização ambiental.

E toca de citar em confirmação Henri Ey, Études Psychiatriques, algo diminuidor das capacidades humanas nos sonhos, pois vê no sonho apenas uma redução das estruturas racionais do eu, quando elas são apenas vivenciadas com outra fluidez e menos dependência dos quadros sensoriais do espaço e do tempo que nos conformam na vigília quotidiana: «O sonho exige como condição mesma da sua produção, a abolição da reflexão [algo absurdo, pois muitas vezes nos sonhos reflectimos], dos esquemas temporo-espaciais, da previsão, da crítica [tantas vezes que ela se exerce no sonho], isto é, de todas as operações que situam a nossa vida psíquica numa perspectiva, numa ordem de subordinação, que faz de cada instante uma fase de um processo contínuo em sua intencionalidade». Mais à frente, com uma citação de Freud, auto-arrasa esta visão limitadora do sonho e do inconsciente.

E continuando numa visão algo limitadora dos conteúdos e capacidades, e por vezes até contraditória, já que não aponta os diálogos e os actos valiosos que realizamos,  as belezas que se conjuram, contemplam ou mesmo fotografam, afirma que, em resultado das forças reprimidas soltas e que passam a dominar o cenário mental, o «mundo do sonho é o próprio mundo do inconsciente, mundo lúdico, mágico e primitivo, com suas pulsões violentas e irracionais, com suas emoções desordenadas e alógicas, com as suas formas de expressão simbólicas e fantásticas.» E aqui sentimos que lhe faltou mais leitura de Jung (ainda assim citado por um livro na bibliografia final), com o inconsciente colectivo, linguagem alquímica e arquétipa dos sonhos, ou das tradições indianas e persas, com os seus níveis subtis e espirituais da super-consciência, tal como mais modernamente Sri Ramakrishna, Guru Ranade, Shudhananda Bharati vivenciaram, entre tantos outros mestres, ou Sri Aurobindo profetizou e teorizou.


Heinrich Khunrath (1560-1605), o Alquimista no seu laboratório: Ora et Labora.

Já na influência das memórias, também parece limitada a sua asserção de que «quando não conseguimos relacionar os quadros oníricos com os fatos de vigília» e cremos então que está «o sonho dotado de uma capacidade criadora excepcional», estamos simplesmente a não discernir que se trata de se estar a «reviver lembranças completamente esquecidas pela memória da vigília,» o denominado "poder hipermnésico", que certamente existe e se comprova muitas vezes mas que de modo algum esgota a génese psíquica onírica.

A ideia  que aceita de que «não são os acontecimentos mais importantes da nossa vida que merecem a preferência da memória onírica mas sim os factos mais insignificantes, os pormenores mais banais da nossa existência diárias», e que me parece errada, leva-o a apoiar-se numa explicação rebuscada mas valiosa, embora condicionada pelos hipotéticos traumas de infância, do psiquiatra de Viena: «Para Freud, esse tropismo da memória onírica para os fatos sem importância da vida diária é condicionado por processos inconscientes.Os complexos psíquicos da origem infantil, recalcados no inconsciente, utilizariam esses pormenores insignificantes da vigília para, com eles, iludir a acção repressora da "Censura", enfraquecida pelo sono, e atingir o plano da consciência, visando a sua realização alucinatória. Essa capacidade de disfarce e que faz do inconsciente uma entidade lúcida e genial, dotada de mil recursos, é um dos postulados mais desconcertantes da doutrina do mestre de Viena (*).»

Depois de confessar o desconcerto da sua compreensão limitada do inconsciente tosco e primitivo  face à visão muito mais experiente de Freud que lhe reconhece lucidez e genialidade,Teobaldo Miranda  remete para nota de rodapé uma valiosa compreensão de Freud: «O sonho, diz Freud, não é um caso de sons discordantes, não é desprovido de sentido, não é absurdo; não é necessário, para explicá-lo, supor o adormecimento de uma parte de nossas representações e o despertar de uma outra. É um fenómeno psíquico em toda a acepção do termo, é a realização de um desejo. Deve ser situado na sequência intelegível das acções psíquicas da vigília: a actividade intelectual que o constrói é uma actividade elevada e complicada» (Sigmund Freud, Die Traumdentung, Leipzig, 1900, p.  113).

Mais valiosa que a mera insignificância dos acontecimentos a que não ligamos em vigília, encontramos em Robert a tese catártica, de «que os estímulos dos nossos sonhos não são nunca os factos sobre os quais reflectimos demoradamente, mas somente os que ficaram inacabados em nosso espírito ou os que foram pensados fugazmente», e em geral do dia precedentes, concebendo assim o sonho como um processo de eliminação dos pensamentos [ou de transmutação energética de pensamentos e emoções] que são inibidos ou recalcados ao se formarem».

Quanto à génese psíquica onírica cita ainda  com interesse Yves Delage, para quem «as ideias possuem um coeficiente de energia psíquica que tende a ser despendido. Se esse coeficiente de energia não é totalmente despendido no trabalho mental pela inibição produzida pela interferência de outras ideias, permanece uma energia residual potencial, que determina o reaparecimento da ideia no sonho.» Esta observação é muito certeira e o mestre espiritual Bô Yin Râ estendeu-a para a vida depois da morte: as impulsões anímicas que geramos ou iniciamos em nós e que não realizamos em vida e na terra, continuarão a tentar realizar-se na terra por outros seres que poderão receber ou sentir tais impulsões, e só quando elas estiverem realizadas, é que nós próprios enquanto almas espirituais e no além, nos sentiremos mais livres.

Yves Delage, 1854-1920.

E continuando a resumir o notável biólogo e zoologista, um dos pioneiros da autenticidade do santo sudário, escreve com valor: «Partidário da psicologia mecanicista, Delage acha que a imagem inicial do sonho é produzida por modificações químicas do sono ou por certos movimentos vibratórios dos neurónios que, inibidos, na vigília, pela vibração de outros neurónios, não despenderam toda a sua carga energética.»

Nesta linha  apresenta ainda as ideias de Michel Foulcaut: as imagens mentais tem uma capacidade de evolução espontânea, que lhe é própria, e que ele denomina «de força evolutiva», sendo tal carga energética mais forte, e logo com reaparecimento onírico,  nas imagens mais recentes, nas percepções que nos impressionaram de maneira pouco viva ou que a atenção não se exerceu, ou finalmente «as imagens provenientes de percepções antigas, evocadas pela consciência, durante a vigília, [que] adquirem com isso, uma força nova, como que um rejuvenescimento, que as torna mais aptas para reaparecer no sonho».

Esta realização de que as ideias possuem um "coeficiente energético", ou uma "energia residual potencial" ou uma "força evolutiva", tudo caracterizações da energia psíquica, será ainda aproximada em termos animistas dos objectos e imagens, por Anatole France no seu romance Le Lys Rouge: «O que nós vemos de noite, é o que negligenciamos na vigília. O sonho é frequentemente a vingança das coisas que desprezamos ou dos seres abandonados», mas, cremos, com algum exagero, pois mais do que vinganças há equilíbrios homeostáticos regulados seja pelo inconsciente, seja pelo eu ou o espírito, que regem o cérebro e a psique, seja pela Ordem do Universo ou Providência divina. E tendo tais sonhos  intencionalidades catárticas, harmonizadoras ou mesmo aperfeiçoadoras.

O ilustre pedagogo Teobaldo Miranda Santos vai fechar este 1º subcapítulo da 2ª parte, com alguns exageros dessa capacidade de lembranças, ou hipermnésica do sonho, citando duas atribuições causais a um sonho que todos já tivemos, com mais ou menos regularidade, e que tem recebido numerosas interpretações: «Stantley Hall chega ao absurdo de considerar o sonho de voar como uma reminiscência ancestral da época pré-histórica, em que o mar cobria a maior parte da Terra. [O contemporâneo de Wenceslau de Morais, e como ele japonizado, Lafcadio] Hearn vai mais longe. Para este campeão da fantasia, o sonho de voar representaria a lembrança ontogênica da vida nos planetas de fraca gravitação». 

É pena que não apresente a sua hipótese explicativa, quiçá a de vermos aves e aviões, paraquedistas e parapentes, antes de adormecermos. Ou será que deveremos antes admitir que ela assinala uma estação na nossa vida em que estamos a controlar bem as pulsões mais terrenas, instintivas, egoístas, materialistas e conseguimos que a nossa alma, também fortificada pela meditação expansiva, se desprenda dos extractos mais densos do planeta quando dorme e assim, mais leve e eterizada, sonhe, se sinta a voar e a elevar-se no seu corpo energético-psíquico e espiritual?

Cara alma leitora, reflicta, medite, investigue, sonhe ou contemple e evolua ou realize-se mais... Aum, Amen, Amin...

Pintura de Bô Yin Râ...