Incubatio, dormir num local sagrado para se ser inspirado era comum na Antiguidade, e até entre nós em S. Miguel da Mota, no santuário de Trebaruna ou Endovélico. |
Nos sub-capítulos seguintes do 2º capítulo da sua obra Psicologia da Alma, Teobaldo Miranda Santos vai equacionar se durante toda a noite há actividade cerebral ou não, admitindo que sim, algo que hoje está comprovado, ainda que com níveis e ritmos diferentes, conforme as fases do sono. E considera que nos lembramos pouco dos sonhos na vigília devido a tal, e às suas características frequentemente alógicas e sem coordenadas espacio-temporais, para além da censura interna, por Freud considerada «sentinela psíquica que, mesmo no sonho, velaria os domínios da consciência contra a invasão dos desejos recalcados do inconsciente». Para Freud será o ego e o super-ego, reflexo da autoridade e do valores do pais e mestres, a actuar como tal nível repressivo moral, embora seja bem complexo determinar como ele se forma e que auto-organização e determinação ele possui, ou se tal não será antes apenas um mecanismo de harmonia do sistema psico-fisiológico humano, com controles determinados pelo próprio inconsciente unido ao ego ou mesmo à individualidade (com os seus valores mais elevados) que o contém ou abrange, ou nele está envolvida ou condicionada. O nível de integração holística e racional, ou individuação de cada pessoa é portanto fundamental, pelo que especular-se em termos gerais pode ser bastante superficial. E essa «necessidade instintiva de racionalidade» patente nos sonhos leva Teobaldo a afirmar mesmo, em contradição com as suas primeiras descrições do inconsciente e do sonho como alógico, que «ainda que alterada pelas condições psico-fisiológicas do sono, essa tendência inata do psiquismo humano continua a influir sobre os pensamentos e é pela sua acção que se explica a coordenação lógica às vezes notável de certos sonhos».
Quanto ao sentimento ou ideia que nos ocorre de que já sonhamos ou que já vimos, considera-os mais como arranjos da nossa necessidade de racionalizar ou coordenar, devido à função explicadora do ego, que «inventará então os antecedentes adequados para justificar a situação presente, e por adesão intelectual acreditará que esses antecedentes realmente existiram». E logo a seguir desfere um ataque forte mas justo ao fundador da psicanálise: «Freud dá ao fenómeno uma explicação de uma originalidade absurda e desconcertante. "Há sonhos, diz ele, de paisagens ou localidades, que são acompanhados de uma afirmativa formulada no próprio sonho: "Já estive neste lugar". Mas esse já visto tem no sonho um sentido particular. Essa localidade é sempre o órgão genital materno; não existe outro lugar do qual se possa dizer, com tanta certeza, já ter sido permanecido" (Freud, p. 256). Esta explicação falsa e precipitada é um exemplo eloquente da preocupação de Freud de encaixar, de qualquer maneira, a realidade dentro dos seus esquemas preestabelecidos.» Contudo, Teobaldo, lúcido contra o reducionismo sexual freudiano, não quer reconhecer a memória "interconsciente, ou que se preserva no sonho e que é quase ventre e útero dos sonhos, como me parece existir, e apoia-se antes em Yves Delage para justificar a origem de tal sensação ou apreciação onírica do "já sonhado" ou "já visto" em apenas sensações cenestésicas e em «encontrar-se em presença do mesmo estado afectivo que acompanhou uma percepção anterior da qual já não se recorda».
Quanto às linhas de força que ligam entre si as sucessivas imagens ou cenas dos sonhos, Teobaldo Miranda Santos apresenta algumas das hipóteses explicativas de diversos psicólogos: ou sem nexo e logo por simples assonâncias verbais, ou seja, conforme a semelhança dos sons de certas palavras, ou, como Strümpel, Wundt e Weygant consideram, serem as leis ordinárias da associação de ideias que as encadeiam, evocando novas séries de imagens. Hervey de Saint Denis, um dos pioneiros de uma interpretação dos sonhos mais profunda, inclina-se mais para ver na ideia em si o motor determinante, a qual extrai do sub-consciente clichés-lembranças, em maior ou menor ordem.
A estes factores associativos das cenas oníricas, acrescenta Teobaldo Miranda Santos as imagens mentais que existem em nós sobre ideias gerais, a que podemos adicionar hoje as que as televisões e narrativas oficiais injectam nas pessoas, e ainda as forças afectivas e sentimentais, sendo para Michel Foulcaut a emoção "o poder organizador do sonho", a par da "força evolutiva de cada quadro ou cena" e, finalmente, baseando-se em Freud, os complexos sexuais recalcados e não só, pois para ele «toda a actividade psíquica é símbolo do inconsciente, e assim lapsos, paixões, sonhos seriam apenas expressões do nosso Inconsciente, recalcante e recalcado».
Freud neste aspecto aprofundou bem nos sonhos a dramatização, elaboração ou manifestação dos conteúdos latentes em manifestos, sobretudo por imagens concretas que são sinais ou símbolos dos complexos afectivos ocultos. Cita ainda Henry Ey, exagerado na sua acentuação da ficção patente nos sonhos como «o resultado da decomposição do pensamento, da regressão da consciência», embora reconheça nesse «trabalho imaginativo, a colaboração do sonho e o génio estético». Onde sai destas desvalorizações, é ao citar ainda Henry Ey, quanto este diz que «é o sonho para onde convergem todos os aspectos irreais ou superreais», dando-nos a hipótese de vermos a possibilidade da existência de níveis e capacidades mais elevadas dentro da entidade humana, superreais, que podem estar por detrás da gestação, visão ou interacção dos sonhos mais sentidos, marcantes, maravilhosos, que nos alegram mesmo.
Para vários psicólogos e estudiosos são sobretudo as impressões sensoriais (externas e internas) a fonte ou causa imediata das imagens oníricas. Todavia a constante actividade onírica que levou Hervey de Sain Denis e Vaschide a afirmarem que não há sono sem sonho implica mais do que isso. E assim Hervey notou que ao lembrar-se durante o dia dos sonhos, ocorria também nos sonhos uma lembrança do que já sonhara antes, o que de facto representa uma auto-consciência maior a permanecer ou a conseguir manter-se pelo eu nos dois mundos, o da vigília e do sonho, sem dúvida algo que mestres como Gurdjieff e Ouspensky, além dos indianos advaiticos e dos mestres persas, realçaram e trabalharam.
Gurdjieff (1866-1949): Não sejas um zombie ou um manipulado pelas narrativas e ordens oficiais: auto-consciencializa-te, desperta. |
Este papel da memória, ou da reminiscência, acentuado por ele, foi também discernido por outros autores, levando por exemplo Vaschide a afirmar que a memória «reproduz de preferência os acontecimentos da véspera ou dos dias precedentes», ou para Kaploum os três dias anteriores. Já para Freud, e estranhamente dada a sua valorização da inteligência do inconsciente e das memórias da infância, a imediatidade era ainda maior: «Se procurando a origem os elementos do sonho, eu examino o que fornece a minha própria experiência, afirmarei logo que todo o sonho está ligado aos acontecimentos do dia que se acaba de escoar. Eu penso então que cada um dos nossos sonhos é provocado por um acontecimento, depois do qual não dormimos ainda uma noite».
Não me parece acertada esta afirmação, pois dentro de nós existem tantos núcleos e níveis de interesses e de afectividade, que o seu crescimento e maturação (ou frutificação num sonho) não implica forçosamente uma impressão ou sensação obtida na véspera, e nisto distancio-me de Teobado que afirma, a partir da sua experiência pessoal, diz, que «o sonho pode tomar os seus elementos em qualquer época de nossa vida, contanto que uma associação de idéias os relacione com factos ou actividades da véspera.»
Teobaldo Miranda Santos, mostra ainda mais o posicionamento de Freud, «os acontecimentos da véspera influem sobre a génese do sonho, mas somente quando podem suscitar desejos de natureza sexual, inconscientes, reprimidos e de origem infantil. A realização disfarçada desses desejos é o que culmina cada sonho. Mas só os desejos inconscientes possuem energia psíquica capaz de engendrar o processo onírico.» E o dito de Freud: «O desejo representado pelo sonho é necessariamente infantil», que Pierre Janet contestou, é também criticado por Teobaldo e com razão pois «o sonho pode exprimir, não apenas os desejos, mas também os receios, os temores, as preocupações, as inquietudes e as ansiedades conscientes e inconscientes». Ao que podemos acrescentar as aspirações, as crenças e esperanças, as viagens astrais e os encontros de almas, ou das suas energias psíquicas, nos mundos oníricos ou subtis, que existem tanto dentro como fora de nós. Sonhamos num universo subtil e interior mas também planetário e em que muitos interagem...
Também é discutível a desvalorização dos aspectos afectivos e emocionais nos sonhos, que seriam muito mais dependentes de cenestesias orgânicas, e de factos e ideias do dia anterior. Isto é como considerar que em cada noite somos apenas reflectores do dia que passou e não peregrinos já com uma longa viagem e passado, e com milhares de sonhos e milhares de aspectos que nos interessam e que amamos ou repudiamos, ou ainda com conexões a outros seres ou a outros planos.
Discutível também ser «uma ilusão supor que o sonho realize impulsos e desejos reprimidos pela educação. Sem dúvida, a dissociação e a regressão do psiquismo onírico permitem que as pulsões do inconsciente e do instinto aflorem à tona da consciência. Mas quando aí surgem, se despem da sua carga afectiva e vestem o manto fantasmático da alucinação. O sonho é pura ficção, é simples fantasmagoria, embora reflicta, em seus quadros simbólicos e alucinatórios, os refolhos ocultos da personalidade e o drama existencial do ser humano».» Eis mais um compreensão limitadora de Miranda Santos: então não há sonhos com cargas emotivas fortes, seja de amor, seja de medo, seja de luta ou repulsa? Então não há efeitos catárticos nos sonhos? Então não há visões iluminantes, ou encontros quase que reais de tão sentidos e vividos?
Miranda Santos erra quando não se apercebe que nos sonhos somos inteiros ainda que em certos aspectos, em relação à lucidez e capacidade intelectual do estado de vigília, diminuídos. Não faz sentido o que ele diz: «Na verdade não agimos no sonho. Somente os nossos pensamentos é que se exprimem, plasticamente no cenário da nossa imaginação. O sonho é apenas a representação alucinatória dos nossos pensamentos», pois no sonho todos os nossos níveis de ser coexistem e interagem em dinamismos e intencionalidades que escapam a quem não os observa e medita mais sensível e profundamente, e procura que a sua vida de acção, afecto, pensamento e intencionalidade esteja alinhada com a sua maior evolução consciencial e espiritual possível, para o qual os sonhos ou as imagens que recebemos ao acordar são vias de transmissão de forças e ensinamentos.
De Bô Yin Râ... |
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