Diz-me em que sonhas e dir-te-ei quem és... |
Continuando no seu aprofundamento dos mistérios do sonho, dos quais ainda hoje subsistem alguns apesar dos grandes progressos científicos e tecnológicos, na parte final do 2º capítulo da sua Psicologia da Alma, Teobaldo Miranda Santos aborda as sensações orgânicas ou excitações somáticas que desencadeiam tanto cenas ou dados por vezes absurdos e caóticos nos sonhos, como igualmente a tentativa de explicação racionalizante ou dramatizante. A confissão de Voltaire aduzida: "Eu disse em sonho, o que dificilmente diria em vigília. Tive pensamentos reflectidos, apesar de eu não ter tomado parte neles. Combinei ideias com sagacidade e mesmo com algum génio, e isto sem vontade nem liberdade», presta-se a considerarmos que ambos não conseguiram integrar o seu inconsciente com eles próprios, ignorando que os sonhos, quer como continuidade de experiências da vigília, quer como processo organizativo de conteúdos e aperfeiçoador de comportamentos futuros, quer ainda como vivências intensas originais, implicam ou envolvem sempre todo o ser, e logo alguma vontade e liberdade, pese certamente estar diminuída a racionalidade terrena e social patente no estado de vigília, e condicionada ainda pelo facto das memórias utilizadas provirem, cerebralmente, de três zonas especiais que as conservam e que hoje se vão compreendendo melhor: os gânglios basais e o cerebelo, para a memória implícita e profunda, ligada a emoções, aprendizagem e movimento; córtex pré-frontal, para a memória recente e activa (esquerdo-verbal, direito-espacial); e neo-córtex (actividades mais exigentes mentais), amígdala (conserva a emoção das memórias) e hipocampo (que é um depósito estratificado e indexado das memórias pronto a ser usado, quem sabe se por ordem alfabética, temática ou temporal...). As activações e germinações nos sonhos, utilizando material destas diferentes zonas, acontece certamente por subtis causalidades e intencionalidades anímicas...
Ora dos aspectos diminuídos, a atenção e a vontade foram consideradas por alguns como inexistindo nos estados de sono mais profundo, nomeadamente para Michel Foucault e Albert Kaploun, mas já Hervey de Saint Denis vivenciara e provara a possibilidade, muito bem explicada no seu incontornável livro Les rêves et les moyens de les diriger, de se manter uma grande capacidade de se orientarem as cenas e situações dos sonhos, para isso recomendando: 1º, escrever-se os sonhos, 2º, «associar certas lembranças a percepções sensoriais, de modo que a volta dessas sensações, provocadas durante o sono, introduza em nossos sonhos, as "ideias-imagens", com as quais se achem entrelaçadas», e finalmente, 3º, o pensar em tais "ideias-imagens" permitirá sonhar com elas. Anote-se que «Vaschide, director do Laboratório de Psicologia Patológica da Escola, reconhece o valor científico e a admirável subtileza psicológica das observações de Hervey de Saint Denis, mas as considera possíveis de crítica» e Teobaldo Miranda Santos vai seguir essa linha da influência da mera auto-sugestão, e admitir redutoramente que «a sistematização subconsciente do pensamento, às vezes, transforma-nos em comediantes sem que o apercebamos (...) e o observador, muitas vezes, prepara, imperceptivelmente, as soluções que pretende encontrar». Contudo, tal como Vaschide já comprovara com as pessoas que acordam às horas que querem, «uma ideia fixa [e diremos nós antes uma "ideia-imagem formulada com força de vontade e fé", em vez de se falar de mera "auto-sugestão"] pode alterar a natureza psico-fisiológica do sono, ao ponto de permitir a realização dos fenómenos motores da atenção», ou mesmo mais do que isso, como se observa nos conseguem desenvolver a sua auto-consciência e controle onírico, no que se denomina sonho lúcido.
Certamente que é complexo discernir o que é melhor para os diferentes fins ou objectivos dos sonhos em cada pessoa e a cada momento da sua vida, mas certamente que aumentar a auto-consciência, a atenção, a inteligência reflectiva nos sonhos é sempre valioso. Já a orientação deles e a introdução de meios para os alterar tem de nascer não do ego mas de uma aspiração e intencionalidade espiritual. E o conseguir-se mesmo os sonhos lúcidos, algo que não conheço bem, pode certamente impedir de se realizarem os sonhos catárticos ou eliminadores necessários, pois como se sabe cada vez melhor hoje há uma função de optimização tanto do inconsciente como do cérebro, com a eliminação de fragmentos de informação desnecessários e a integração de imagens, ideias ou sentimentos úteis à sobrevivência evolutiva individuante e integrante de cada ser.
No subcapítulo sobre a dificuldade por vezes de se distinguir o sonho da realidade, e em que o critério é simplesmente o de despertarmos dos sonhos, enquanto da vigília ou realidade não despertamos, como afirmou Schopenhauer, a não ser, acrescento eu, que aceitássemos as estados conscienciais de libertação denominados kaivalyam e mukti, de yogis, mestres zens e buddhas, Teobaldo Miranda Santos traça um resumo da visão vedântica, indiana, referenciando a p. 128 da obra Das System des Vedanta, de Paul Deussen, mas da qual não é uma tradução mas apenas sua limitada embora interessante tradução-(in)compreensão:«A psicologia hindu separa o sonho, considerado como ilusão, da realidade, pois naquele ficam suspensas as leis do espaço, do tempo, da causalidade. [Eis uma 1ª afirmação errada, pois a realidade referida é o absoluto não dual, a Divindade em si, Brahman] Ao lado da consciência vigilante [ou de vigília, jagrat] e da consciência do sonho [svapna], existe um terceiro estado de consciência, o sono profundo [sushupti], no qual é abolida a dupla ilusão da vigília e do sonho. Se no sonho intervém, em lugar do Eu, um "Si-do-sonho", como força ordenadora e formadora, o sono profundo é o desaparecimento do jivatman, do "Si-vivo" da existência individual, no Paramatman [supremo espírito ou] (Brahman) do Si-supremo; a centelha une-se passageiramente ao "fogo" [à fonte ígnea divina]. Outras compreensões erradas ou pouco claras, pois no sono profundo não há essa união com a fonte, mas apenas uma cessação das actividades mentais internas. O quarto estado de consciência, ou Turya, é apresentado como aquele da consciência pura, observadora e testemunha e não limitada pelos veículos de experiência, mantida a tempo inteiro como testemunha pura, saksin, e é referida em algumas Upanishads e nos tratados advaiticos ou não-duais, Ramana Maharishi sendo um dos últimos mestres indianos mais conhecidos a vivenciá-la. Há quem veja nesse estado consciência individual unificada com a vasta consciência universal, e diz-se de alguns yogis que atingiram em vida tal estado, como Ramakrisna Paramahansa. Refere ainda a interiorização da consciência e da mente no prana ou energia interna e logo nas funções vegetativas, ecoando talvez a noção de que há uma entrada para o coração das energias mentais.
No Capítulo III, a Função do Sonho, Miranda Santos passa brevemente por alguns aspectos ligado a sonhos nos povos da Antiguidade clássica, mostrando como eles acreditavam na interpretação dos sonhos, mas partilha uma crença céptica: «desses tempos recuados até aos nossos dias, a superstição dos sonhos premonitórios não desapareceu da imaginação humana. Ainda hoje persiste na credulidade fácil das multidões a concepção ilusória do valor profético dos sonhos». Apesar desta recusa em aceitar que possa haver pressentimentos e intuições do que se está a gerar, Teobaldo Miranda admite o contraditório, exemplarmente para os nossos dias de tentativas de imposição de narrativas oficiais e pensamento único, quando faz uma longa citação de Maurice Maeterlink: «Os sonhos provém de um órgão ou conjunto de órgãos que, na vigília, se acha quase completamente sob o controle de nossa consciência ou de nossa razão, isto é, dessa parte do eu que se encontra separada do resto do universo, e com o qual só mantém comunicações precárias e severamente vigiadas. No sono, esse órgão, do qual a razão nada mais seria, talvez, do que uma excrescência parasitária e tirânica, recupera, mais ou menos, a sua independência, escapa do império da personalidade, erra, à vontade e ao acaso, no plano do ilimitado, põe-se em contacto com tudo o que, na vigília, lhe é inacessível e perde, principalmente, as duas ilusões mais necessárias à nossa vida individual, ilusões que nos mascaram a realidade do eterno em tudo, o eterno presente e que nós chamámos o espaço e o tempo. Ora, continua Maeterlinck, experiências que se iniciam já permitem verificar que o espírito liberto pelo sono, no curso das suas peregrinações pelo eterno presente que é o tempo real, aí encontra tanto o futuro como o presente. Confunde-os. Não percebe mais a linha imaginária que os separa em nome da razão. Não distingue mais o que temos feito do que faremos, o que ainda está para se realizar do que já se realizou, e volta tão carregado de profecias, como de lembranças.»
Ora Teobaldo desvaloriza estas capacidades de clarividência e premonição pois para ele os sonhos têm origens sobretudo nas impressões cenestésicas e nas amplificações afectivas e coloridas que elas geram, admitindo de facto algum tipo de profecia quanto a doenças que se estavam a gerar, mas recusando o «prever acontecimentos futuros do mundo exterior», numa posição algo petrificante e limitadora, como se a psique humana só pudesse sentir e intuir o seu corpo, quando de facto a sua consciência não está tão limitada e fechada no corpo. Teobaldo é mesmo forte em tal crença errada:«Os psicólogos que têm estudado, cientificamente, o sonho são unânimes em afirmar que as imagens oníricas fornecem apenas conhecimentos do passado e se referem somente factos relacionados com a nossa personalidade, sem nenhuma projecção exterior. Para Freud, por exemplo, o sonho é, antes de tido, uma realização de desejos e constitui um processo regressivo, arcaico sempre relacionada com o passado».
E se de facto a descrição de Maeterlink também é, em sentido oposto, exagerada, ao admitir a capacidade do ser humano, no sonho, liberto dos condicionalismos da razão, estar no eterno presente e logo poder ora trazer lembranças do passado ora antecipar profeticamente acontecimentos futuros, isso não invalida o facto de que a psique e a visão interior do ser humano, expandida, consiga discernir as linhas de força que se estão a preparar para coalescerem num determinado acontecimento.
No 2º subcapítulo, após ter repudiado a capacidade de as pessoas durante a noite terem acesso a informações e a energias originais ou ao que lhes permita prever o futuro, aborda a crença comum nos grandes filósofos da Antiguidade de os sonhos servirem ao ser humano para se auto-conhecer melhor, nem que seja das suas zonas mais obscuras ou inconscientes, e cita Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles, Artemidoro (autor do 1º dicionário de sonhos, bem editado pela editora espanhola Gredos), Cícero e Lucrécio, dos quais transcrevemos o início: «Homero, por exemplo, foi um dos primeiros a entrever que o sonho poderia exprimir não só as forças irracionais que existem no ser humano, como o poder das suas faculdades racionais. O sonho, dizia ele, conduz a duas portas: uma, de chifre, é a porta da Verdade; outra de marfim, é a porta do Erro e da Ilusão (esses dois símbolos referem-se às propriedades de transparência do chifre e de opacidade do marfim). Sócrates, citado por Platão no Fedro, admite que o sonho é a voz da consciência e que, portanto, é da mais alta importância tomar essa voz a sério e seguir suas injunções.» Entre nós, no séc. XIX, Antero de Quental foi um forte propugnador da audição da voz da consciência (como já desenvolvi noutros textos, nomeadamente quando recomenda a Fernando Leal que a busque e siga), para além de um sonhador metafísico de elevada qualidade, como os seus sonetos partilham.
Quanto aos efeitos psíquicos ou efeito psicológico especial dos processos oníricos, que aborda no III subcapítulo, recolhe algumas visões ou compreensões valiosas discernidas e valorizadas por alguns pensadores e psicólogos e comenta-as com qualidade: Assim, Goethe: «vislumbra no sonho uma actividade útil à vida espiritual do ser humano. Na sua opinião, o sonho tem por fim despertar nossas tendências inatas para a saúde e felicidade», de modo a que se acorde ou «eu me levantava bem disposto e feliz».
De Burdach, uma visão bem descontraída e divertida dos sonhos: «para ele o sonho representa um estado no qual o espírito [ou a individualidade] se refaz e adquire forças para o trabalho de vigília. Por isso aceita a opinião de Novalis sobre a função dos processos oníricos."O sonho, diz este, nos defende contra a regularidade, a monotonia da vida; é um livre divertimento da nossa imaginação, que mistura, então, todas as imagens da vida e interrompe o ritmo sério da vigília para uma alegre recreação; certamente, envelheceríamos mais depressa sem os sonhos [eis uma boa razão para querer sonhar mais e melhor...]; se não consideramos o sonho com um dom imediato de Deus, pelo menos, o julgamos como um trabalho pitoresco e um companheiro cordial da existência».
Dois sábios ocidentais, Henry Corbin e C. G. Jung, em capa de um bom livro |
Para terminar este capítulo Teobaldo Miranda Santos confessa-se em cinco parágrafos finais, donde extraímos o mais significativo: «Na nossa opinião, o sonho parece representar, para a vida psíquica, o mesmo que o sono representa para a vida orgânica: um processo básico de repouso e recuperação». Bem lúcida é a sua desconfiança do esquematismo dos dicionários interpretativos: «Os símbolos não constituem uma linguagem universal, sempre com a mesma significação. Em cada pessoa os símbolos podem representar ideias ou sentimentos diversos, de acordo com história psicológica individual. O sonho de nudez por exemplo, que Freud interpreta como um símbolo de exibicionismo, pode, às vezes significar, como observa Erich Fromm, sinceridade e franqueza. Tudo depende dos motivos e intenções inconscientes que orientam os pensamentos do indivíduo. Nessas condições, os sonhos só podem ser interpretados depois de um conhecimento preciso da vida psicológica do sonhador. Jung critica, com razão, a monomania sexual e o simplismo técnico da interpretação freudiana. Na sua opinião, uma interpretação científica do sonho deve seguir as seguintes etapas: descrição do estado de consciência actual, descrição dos acontecimentos anteriores, inventário do contexto subjectivo, em caso de motivos arcaicos, recurso a paralelos mitológicos e, enfim, nas situações complicadas, recurso a informações objectivas junto a terceiros», e sobretudo, acrescentaremos nós, discernir os desejos, os receios, as aspirações e sobretudo as afinidades e linhas axiais que a integram enquanto corpo, alma e espírito e enquanto participando no corpo místico da humanidade, no (actualmente denominado) Campo (Field) unificado de energia informação e consciência, a panpsique ou alma mundo dos antigos.
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